quinta-feira, 24 de junho de 2010

UM EXEMPLO DE CARTA COM O EMPREGO DE MÁSCARA

Santana do Agreste, 1 de Dezembro 1991.

Ao Senhô presidente da República

Aqui quem vos fala é um humirde trabaiadô da roça. Me descurpe o mal jeito de escrevê mais é que eu não pude estudá pruque o meu pai disse que eu tinho "aquilo roxo" e como macho divia di trabaiá pra ajudá em casa.
Um dia assistino a televisão, vi o senho dizê qui o vosso pai disse que o senhô tamém tem "aquilo roxo", e o senhô além disso ainda pode estudá, sabe falá bunito, come bem, é atreta. Por causa disso, deve di sê trabaiadô e vai podê fazê muita coisa pur nóis.
Sabe excelença, eu trabáio i num tenho tempo di assisti televisão i nem tenho dinheiro pra pagá a conta de luis qui a televisão gasta, mais quando eu sei que vosmecê vai falá eu largo tudo pra vê vosmecê. Só que eu fico muito aperriado quando vejo que o senhô feis nóis perdê nosso tempo pra expricá qui num vai si separa da sua muié i qui oceis vivi bem.
Ixi Cólo, isso é pobrema vosso, pur acaso nóis dá satisfação da nossa vida particulá.
Então presidente cuide mais do Brasil e guarde os seus pobremas com sua muié pra resorvê em vossa casa.
Eu ispero qui memo com toda minha inguinorança o senhô tenha intindido qui o qui nóis qué é tê o qui comê, o qui visti, inducação prus nossos filios pra quando eles fô agradecê pru sinhô tê atendido meu pidido, eles saibam escrevê mio qui eu i então não dê trabáio pru sinhô lê.
É isso qui nóis quéi não sabê da vida dus otros.
Aproveitano fala pra Zélia qui si ela tivesse si preocupado mais cum Brasil qui nem cum o caso dela cum ome casado nóis tava muito mio i qui já qui ela féis essa bestera divia di pelo menos sê moça direita i num fala pra ninguém.

Brigado, excelênça

J.C. (seu criado).

COMENTÁRIO DA UNICAMP - Como você deve ter percebido durante a leitura, a "máscara" criada pelo candidato é a de um trabalhador rural, inculto, e que, portanto, utiliza uma modalidade desprestigiada da língua portuguesa. Para dar a entender ao leitor (um corretor de vestibular) de que a carta ao presidente Collor teria sido escrita por um "caipira"; para dar maior verossimilhança a essa máscara criada com a função de fortalecer a sua argumentação, o candidato reproduziu, em seu texto, a imagem que se tem da fala de uma pessoa como essa (se você conhece as revistinhas do Chico Bento, sabe do que estamos falando). O que fez a banca corretora diante de uma redação como essa para avaliar a adequação à modalidade escrita do português? Embora fosse evidente que se tratava de um exemplo em que houve trabalho cuidadoso com relação à criação da máscara proposta e, por conseguinte, com relação aos aspectos gramaticais da língua escrita, constatou-se, da leitura das respostas que o candidato apresentou para as 12 questões da prova de primeira fase, que ele conhecia e dominava as regras aparentemente "ignoradas" em sua redação. Dirimidas todas as dúvidas, reconheceu-se um uso bastante interessante (e por que não criativo?) da modalidade escrita da língua. Para que você também não tenha dúvidas quanto ao que afirmamos, transcrevemos abaixo a resposta dada pelo mesmo candidato para a questão número 10 da prova de Literaturas de Língua Portuguesa da segunda fase do Vestibular Unicamp/92:

a) Aurélia e seu marido Fernando. A relação entre eles é de amor, acompanhada de ódio e sede de vingança. Mais tarde, sobrando só o amor e necessidade do perdão.

b) Aurélia disse ao seu marido que o casamento deles era só de fachada (aparências). Ele se vendeu e portanto agora era sua mercadoria.

c) A partir do dia em que Aurélia se diz "dona" do marido, ele passa a atendê-la, recebe ironias, calado. Junta o dinheiro do dote para devolvê-lo à Aurélia. A relação entre as duas cenas é de oposição, pois na primeira ela o humilha, enquanto na segunda implora seu perdão e amor.

A LIBERDADE DE FAZER MAL A SI MESMO







Filosofia Ciência e vida Nº 47 - Ano 2010