segunda-feira, 27 de junho de 2011

TEMA: LIMITES E POSSIBILIDADES DAS RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS NO CONTEXTO DE INTERESSES PARTICULARES E GERAIS DA NOVA ORDEM MUNDIAL

O Mundo pós-Guerra Fria


O mundo que se constituiu no último decênio do século XX apresentou-se totalmente diferente das décadas anteriormente conhecidas. O Grande Cisma que separou a Terra em dois blocos ideológicos rivais cessou de existir em 1989 e a palavra globalização correu pelo planeta quase como um efeito mágico.
Pela primeira vez na história moderna um cenário político mostrou-se favorável à integração de boa parte da humanidade num sistema econômico,político e social em comum. Todavia se está ainda bem longe de entender a Era pós-Guerra Fria como um jardim florido crescendo em paz a sombra de um sol universal, generoso e igualitário.


Os Efeitos da Revolução Russa


Alemães durante a queda do Muro de Berlim em 1989


A Revolução Russa de 1917 provocou uma enorme cisão na história contemporânea, um abismo que separou por quase setenta anos o mundo em dois hemisférios hostis que quase o levaram a uma hecatombe nuclear. Parecia que desde aquela época um outro Tratado de Tordesilhas havia sido traçado separando o capitalismo do socialismo.

Primeiramente, a fim de evitar um possível contágio revolucionário, as Potências Ocidentais impuseram a então República dos Sovietes a política do "cordão sanitário"(expressão de Georges Clemenceau, presidente da França). Desde o Outubro Vermelho a Rússia revolucionária foi transformada numa nação de parias, numa casta de intocáveis ideológicos.

Durante os primeiros anos da década de 1920 nenhum país do concerto ocidental estava autorizado a estabelecer qualquer tipo de relação diplomática ou comercial com a URSS. Isolamento esse que fez a Rússia mergulhar numa política paranóica que conduziu à tirania stalinista e a uma industrialização forçada que esmagou os desejos de liberdade despertados em 1917.

Depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), derrotadas as forças do Nazi-fascismo e do Mikado japonês, foi à vez da URSS tomar a iniciativa de apartar-se.

Temerosa da nova coligação ocidental formalizada pela criação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que desde 1948 englobava a maioria dos países da Europa Ocidental liderados pelos Estados Unidos, Stalin fez baixar sobre o território controlado pelo Exército Vermelho uma "Cortina de Ferro" (expressão usada por Winston Churchill, num discurso feito em Fulton, nos EUA, em 1946).

Deste modo, ampliou-se o perímetro do seu isolamento, incluindo-se nele, além da União Soviética, parte da Alemanha, as fronteiras da Tchecoslováquia e da Hungria.

A formação dos dois blocos, o Ocidental e o Soviético, depois da Segunda Guerra Mundial, provocou como conseqüência uma temerária corrida armamentista entre ambos, cada um deles com mortíferos arsenais atômicos, gerando gastos bélicos estimados em U$ 17 trilhões de dólares, entre 1948-1988. Parecia que o planeta terra havia se tornado as duas faces da lua, uma desconhecendo a outra.


O Fim da Corrida Atômica


Todavia, uma série de acordos acertados desde 1961 entre o presidente John Kennedy e o primeiro-ministro soviético Nikita Kruschev, conduziram aos grandes tratados antiatômicos dos anos oitenta assinados entre o presidente Ronald Reagan e o presidente da URSS Mikhail Gorbachov que puseram fim a Guerra Fria.

O regime comunista, debilitado internamente e sem recursos materiais para continuar na corrida armamentista e tecnológica, havia jogado a toalha no chão do ringue. Ainda assim calcula-se que existam entre 12 a 19 mil armas nucleares nos diversos arsenais espalhados pelo mundo(metade delas pertencente aos EUA)

Não só isso. Antecedido pela derrubada do Muro de Berlim, ocorrida em novembro de 1989 (linha de tijolos, cimento e arame farpado que separava a cidade de Berlim em duas áreas hostis), o até então tido como sólido Império Soviético, começou a se desmantelar. Em 1991, ele deixou de existir pulverizado em 16 países independentes, sendo que a República Federativa da Rússia continuou com sua posição proeminente dentro de um contexto de derrota ideológica e moral.

Paralelamente a isso, os países satélites, a Polônia, a Hungria, a Romênia, a Bulgária, a Tchecoslováquia e a Alemanha Oriental (oficialmente designada como República Democrática da Alemanha), viram-se livres da tutela militar soviética, exercida desde 1945, depois que poderosas manifestações de massa dominaram as capitais do Leste europeu.

As multidões saíram às ruas a favor da democracia e para por um término no monopólio político exercido pelo partido comunista.


O Colapso do Socialismo Real


O aquecimento global: novo inimigo da sociedade industrializada


Deste modo conseguiram sepultar no Leste europeu o regime dito do Socialismo Real (designação cunhada pelo secretário-geral do Partido Comunista da URSS Leonid Brejnev).

Façanha vitoriosa que foi possível em vista da retirada das tropas soviéticas do Afeganistão, onde estavam lutando contra os mujahideen, os guerreiros muçulmanos, desde 1980 (recuo esse que foi uma confissão pública do fracasso militar do Exército Vermelho).

O afrouxamento da tensão mundial, que já vinha se manifestando desde a segunda metade dos anos 70, acelerou-se ainda mais com o término da Guerra Fria. Situação que em larga parte deveu-se à adoção da política da Glasnost e da Perestroika, as reformas liberalizantes e democratizantes comandadas por Mikhail Gorbachov na União Soviética, a partir de 1986.

Com o colapso do sistema coletivista naufragaram as doutrinas vindas dos tempos de Karl Marx, morto em 1883, que apostavam na construção de sociedades igualitárias por meio de uma economia planificada e sob controle de um partido único.

No seu lugar difundiram-se a partir dos Estados Unidos as teorias da Escola Neoliberal a favor do mercado, inspiradas em economistas como Friedrich Hayek (A Estrada da Servidão, 1944), filósofos como Karl Popper (A Sociedade Aberta e seus Inimigos, 1945), e cientistas como Michael Polanyi (A Lógica da Liberdade, 1951) que se opunham à presença do estado na economia e nos mais diversos aspectos da vida em sociedade.



O Fim das Ditaduras


Desde então, encerrado o Grande Cisma ideológico entre Ocidente e Oriente, as ditaduras caíram como castelos de cartas (Anastácio Somoza, na Nicarágua, Erich Honecker, na Alemanha Oriental, Nicolau Ceausescu na Romênia,General Leopoldo Galtieri na Argentina, General Augusto Pinochet no Chile, General Haji Suharto na Indonésia, Ferdinando Marcos nas ilhas Filipinas, o General Mobutu Sese Seko no Zaire, e assim por diante).

Por igual, teve fim o Regime Militar no Brasil, em 1986, e a "Ditadura Perfeita" exercida pelo Partido Revolucionário Institucional no México, de 1929 a 2000. Regimes de exceção esses que antes eram apoiados por uma ou outra superpotência passaram a não ter mais razão de ser.

Naqueles decênios de 80 e 90 ocorreu a maior conversão à democracia em toda a história da humanidade. Desde a queda do Muro de Berlim uma onda de liberdade varreu o globo em todos os sentidos, fazendo com que a Casa da Liberdade (expressão de Timothy Garton Ash) saltasse dos 35 estados democráticos existentes em 1975 para 112 em pouco mais de vinte anos.

Todavia, além da débâcle soviética, o que causou maior repercussão internacional foi o abandono da economia coletivista por parte da China Comunista e sua adesão ao sistema capitalista. O líder dessa radical reorientação modernizadora foi o secretário-geral do Partido Comunista Deng Xiaoping que, a partir de 1980, determinou a fixação de cinco Zonas Especiais (nas cidades de Shenzhen, Zhuhai, Shantou, Xiamen e província de Hainan. Shenzhen), que passaram a acolher as grandes corporações capitalistas ocidentais.

Desde então a nação chinesa apresentou índices espantosos de desenvolvimento, integrando no universo do consumo mais de 350 milhões dos seus habitantes. Seguramente a economia do mundo inteiro sentiu fortemente os efeitos daquela ampliação do mercado.



Globalização


O desmantelamento da URSS e a capitulação da China Comunista promoveu a líder mundial à única superpotência que restou: os Estados Unidos da América, transformados numa hiperpotência desses Novos Tempos do pós-Guerra Fria.

O desaparecimento das fronteiras ideológicas e econômicas, com a subseqüente absorção das antigas potências comunistas pelo mercado internacional, promoveu Washington como a sede da hegemonia dos norte-americanos sobre o mundo inteiro.

O país que antes reinava sobre a metade do planeta, passou a comandá-lo quase que por inteiro, tanto assim que o dispêndio norte-americano para a guerra (armas convencionais, táticas e estratégicas), chegou a mais de 40% do que o restante dos países até então gastavam.

Abriam-se deste modo os caminhos para uma acelerada globalização econômica e cultural sob a égide do capitalismo anglo-saxão. Nunca como desde então os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, e a Austrália estiveram tão alinhados aos mesmos propósitos.

Um cenário inédito na história da humanidade então se formou num repente, nos quais os capitais e investimentos passaram a trafegar por todos os lados sem se arrepiarem frente a quaisquer barreiras. Uma rede de bolsas de valores interligadas estabeleceu um eficiente colar sobre o mundo negociando bilhões de dólares diariamente.

Estende-se de Nova York à Londres e à Frankfurt, indo até Tóquio no Japão e Xangai na China. Simultaneamente a isso, a essa liberdade universal dos capitais, a industria da informática assumiu a vanguarda das inovações, tendo como seu motor impulsionador o computador e a Internet.



O novo ordenamento econômico


Desaparecido o "ódio ideológico" que opunha o capitalismo ao comunismo, ou a democracia liberal à ditadura soviética, as nações espalhadas pelo globo trataram de compor-se segundo sua proximidade geográfica.

Os estados europeus apressaram os seus processo de unificação por meio da União Européia (hoje composta por 27 países). Os da América do Norte (EUA-Canadá-México), por sua vez, se acertaram pelo Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (North American Free Trade Agreement) ou Nafta, enquanto que os do continente sul-americano associaram-se pelo Mercosul (Argentina-Brasil-Paraguai e Uruguai).

O mesmo ocorrendo com a formação da União Africana (com 53 membros), e assim por diante. Esta nova composição internacional na busca da formação de mercados mais amplos, liberou as energias nacionais para que uma integração universal mais eficaz e lucrativa tivesse início, crescendo por igual a interdependência entre os países de um modo geral.

As antigas bases de soberania absoluta exercida pelo Estado-Nacional como se conhecia desde os tempos da Paz de Westfália, de 1648, começaram a ruir, assim como as decisões políticas plenamente autônomas.

Nenhum governante dos dias de hoje pode tomar decisões sem levar em conta os estados que lhe são próximos e os interesses gerais da ordem mundial que hoje temem os efeitos da expansão industrial pelo planeta. Nunca as diferentes partes do mundo se pareceram tanto entre si como agora.



Resumo dos Novos Tempos


Geopolítica: o encerramento da Guerra Fria entre 1989 e 1991 alçou os EUA como a única hiperpotência, tendo como conseqüência a hegemonia do capitalismo norte-americano sobre todos os demais, ao tempo que dólar, ainda que tenha que rivalizar-se com o euro da União Européia, firmou-se como moeda internacional.

Ideologia: o colapso ideológico do Marxismo, que acompanhou o fim da União Soviética, e a paralisia da social-democracia européia daí decorrente, promoveu o Neoliberalismo como nova ideologia do capitalismo pós-Guerra Fria. Isso trouxe como conseqüência a repulsa à presença estatal na vida econômica, dando ensejo a uma generalizada política de privatizações das empresas públicas, adotada em larga parte do mundo.

Democracia: regimes democráticos sucederam as ditaduras em praticamente todos os continentes, fazendo com que pela primeira vez na história o número de regimes baseados no sufrágio universal e nos direitos do homem superassem as tiranias e os regimes de partido único.

Economia: o processo de Globalização Econômica, iniciado de fato com as Grandes Descobertas e Navegações do século XV, se acelerou ainda mais, promovendo um elevado patamar de bem estar social na maioria dos paises. Países vizinhos do mesmo continente passaram a conformar blocos econômicos: União Européia, Nafta, Mercosul, União Africana, etc.)

Internacionalização: ocorreu a ampliação da interdependência entre as nações e povos, acompanhada pelo enfraquecimento do Estado-Nacional e da política local, dando lugar a proeminência das instituições supranacionais (ONU, União Européia, Otan, OMC, FMI, etc.)

Cultura: a língua inglesa virou língua franca, difundindo-se ainda mais graças à nova linguagem da informática, ao tempo em que a cultura norte-americana (cinema, vídeos, música, moda, etc.) se expandiu ainda mais rapidamente pelo mundo. O computador ligado à Internet tornou-se o novo veiculo da globalização, permitindo comunicações intercontinentais entre empresas e entre indivíduos sem nenhuma intervenção do estado ou das autoridades.

Ecologia: as políticas ambientalistas passaram a rivalizar com as imposições do desenvolvimento econômico e social, questionando as medidas voltadas para a industrialização e consumo de massa. A Ecologia tornou-se uma espécie de religião universal de preservação da natureza, enquanto o "aquecimento global" , com seus possíveis desastres climáticos, é a nova preocupação das entidades preservacionistas.

Crise: o Oriente Médio (com as tradicionais desavenças entre o Estado de Israel e seus vizinhos árabes, atraindo os EUA e a União Européia como co-participantes dos litígios), se converteu num Novo Bálcãs, fonte permanente de instabilidade e de guerras, enquanto o Islamismo ocupa o lugar do comunismo como "novo inimigo do Ocidente", sendo que a luta contra o terrorismo serve como bandeira para a mobilização permanente dos Estados Unidos e seus aliados para intervirem no Oriente Médio e na Ásia Menor.



http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/2007/10/22/000.htm

(LEITURA IMPORTANTE) PANDORA E STRADIVARIUS (ENERGIA NUCLEAR)

Pandora e Stradivarius


Conta o mito grego que Epimeteu ganhou dos deuses uma caixa que continha todos os males. Advertiu a mulher, Pandora, que de modo algum a abrisse. Mordida pela curiosidade, ela desobedeceu e os males escaparam.

Hoje, uma das caixas de Pandora mais ameaçadoras são as usinas nucleares – 441 em todo o mundo. Por mais que os Epimeteu das ciências e dos governos apregoem serem seguras, os fatos demonstram o contrário. As mãos de Pandora continuam a provocar vazamentos.

O vazamento da usina nuclear de Chernobyl, em 1986, na Ucrânia, afetou milhares de pessoas, sobretudo crianças, e promoveu séria devastação ambiental. Calcula-se que Chernobyl provocou a morte de 50 mil pessoas.

Agora temos o caso da usina japonesa de Fukushima, atingida pelo tsunami. Ainda é cedo para avaliar a contaminação humana e ambiental provocada por vazamento de suas substâncias radioativas, mas o próprio governo japonês admite a gravidade. Se o Japão, que se gaba de possuir tecnologia de última geração, não foi capaz de evitar a catástrofe, o que pensar dos demais países que brincam de fogo atômico?

No Brasil, temos as três usinas de Angra dos Reis (RJ), construídas em lugar de fácil erosão por excesso de chuva, como o comprovam os desmoronamentos ocorridos na região a 1o de janeiro de 2010.

Ora, não há risco zero em nenhum tipo de usina nuclear. Todas são vulneráveis. Portanto, a decisão de construí-las e mantê-las é de natureza ética. Acidentes naturais e falhas técnicas e humanas podem ocorrer a qualquer momento, como já aconteceu nos EUA, na União Soviética e no Japão.

Em 1979, derreteu o reator da usina de Three Mile Island, nos EUA. Em Chernobyl, o reator explodiu. Em Fukushima, a água abriu fissuras. Portanto, não há sistema de segurança absoluta para essas usinas, por mais que os responsáveis por elas insistam em dizer o contrário.

Ainda que uma usina não venha a vazar, não são seguros os depósitos de material rejeitado pelos reatores. E quando a usina for desativada, o lixo atômico perdurará por muitas e muitas décadas. Haja câncer!

No caso de Angra, se ocorrer algum acidente, não há como evacuar imediatamente a população da zona contaminada. A estrada é estreita, não há campo de pouso para aviões de grande porte e os navios demorariam para aportar nas proximidades.
Cada usina custa cerca de US$ 8 bilhões. O investimento não compensa, considerando que a energia nuclear representa apenas 3% do total de modalidades energéticas em operação no Brasil. Nosso país abriga 12% da água potável do planeta. Com tantos recursos hídricos e enorme potencial de energias solar e eólica, além de energias extraídas da biomassa, não se justifica o Brasil investir em reatores nucleares.

Na Itália, eles foram proibidos por plebiscito. A Suécia agora desativa suas usinas, e a Alemanha decidiu, em maio deste ano, fechar todas as suas usinas nucleares.

Usinas nucleares são como violinos Stradivarius. Antônio Stradivari (1648-1737), italiano, construiu os mais perfeitos violinos. Mais de mil unidades, das quais restam 650. Hoje, um Stradivarius vale, no mínimo, R$ 5 milhões. Um violino nunca é exatamente igual ao outro. As madeiras utilizadas possuem diferentes densidades, a radiação sonora e a vibração diferem e podem ser percebidas por um bom ouvido. Todos os Stradivarius foram feitos por artesãos que souberam guardar os segredos de sua fabricação.

Assim são as usinas nucleares. Não existe uma exatamente igual à outra. Não é previsível o que pode ocorrer no núcleo de uma delas se houver um acidente, incidente ou crise. Assim como se reconhece a qualidade de um violino pelo seu som, apenas por sinais externos se pode avaliar a gravidade de um vazamento nuclear, verificando a temperatura, a radiação e emissão de isótopos radioativos como iodo 131, césio 137, estrôncio 90 e plutônio 238.

Um detalhe da caixa de Pandora: só não escapou o único bem que se misturava aos males – a esperança. E a ela nos atemos neste momento em que, em todo o mundo, há mobilizações pela desativação de usinas nucleares. É hora de o povo brasileiro reagir, antes que se rompam as cordas do violino e as malditas mãos de Pandora venham a abrir de novo a caixa nuclear.


(BRASIL DE FATO. DE 16 A 22 DE JUNHO DE 2011)

quinta-feira, 23 de junho de 2011

ESCREVER É FÁCIL?

ESCREVER É FÁCIL?

Gustavo Bernardo







Para estimular crianças e jovens a escrever, há quem diga que escrever é fácil: basta pôr no papel o que está na cabeça. Na maioria das vezes, porém, este estímulo é deveras desestimulante.

Há boas explicações para o desestímulo. Primeira: se a pessoa não consegue escrever, convencê-la de que escrever é fácil na verdade a convence apenas da sua própria incompetência, a convence apenas de que ela nunca vai conseguir escrever direito. Segunda: não se escreve pondo no papel o que está na cabeça, sob pena de ninguém entender nada. Terceira: quem escreve profissionalmente nunca acha que escrever é fácil, nem mesmo quando escreve há muito tempo – a não ser que já escreva mecanicamente, apenas repetindo frases e fórmulas.

Via de regra, nosso pensamento é caótico: funciona para alimentar nossas decisões cotidianas, mas não funciona se for expresso, em voz alta ou por escrito, tal qual se encontra na cabeça. Para entender o nosso próprio pensamento, precisamos expressá-lo para outra pessoa. Ao fazê-lo, organizamos o pensamento segundo um código comum e então, finalmente, o entendemos, isto é, nos entendemos. Não à toa o jagunço Riobaldo, narrador do romance “Grande sertão: veredas”, dizia: “professor é aquele que de repente aprende”.

Todo professor conhece este segredo: você entende melhor o seu assunto depois de dar sua aula sobre ele, e não antes. Ao falar sobre o meu tema, tentando explicá-lo a quem o conhece pouco, aumento exponencialmente a minha compreensão a respeito. Motivado pelas expressões de dúvida e até de estupor dos alunos, refino minhas explicações e, ao fazê-lo, entendo bem melhor o que queria dizer. Costumo dizer que, passados tantos anos de profissão, gosto muito de dar aula, principalmente porque ensinar ainda é o melhor método de estudar e compreender.

Ora, do mesmo jeito que ensino me dirigindo a um grupo de alunos que não conheço, pelo menos no começo dos meus cursos, quem escreve o faz para ser lido por leitores que ele potencialmente não conhece e que também não o conhecem. Mesmo quando escrevo um diário secreto, o faço imaginando um leitor futuro: ou eu mesmo daqui a alguns anos, ou quem sabe a posteridade. Logo, preciso do outro e do leitor para entender a mim mesmo e, em última análise, para ser e saber quem sou.

Exatamente porque esta relação com o outro, aluno ou leitor, é tão fundamental, todo professor sente um frio na espinha quando encontra uma nova turma, não importa há quantos anos exerça o magistério. Pela mesma razão, todo escritor fica “enrolando” até começar um texto novo, arrumando a escrivaninha ou vagando pela internet, não importa quantos livros já tenha publicado. Pela mesmíssima razão, todo aluno não quer que ninguém leia sua redação enquanto a escreve ou faz questão de colocá-la debaixo da pilha de redações na mesa do professor, não importa se suas notas são boas ou não na matéria.

Porque escrever definitivamente não é fácil, expondo-nos no momento mesmo de fazê-lo. Como diz João Cabral de Melo Neto, num dos poucos poemas que sei de cor e de coração:



Escrever é estar no extremo

de si mesmo, e quem está

assim se exercendo nessa

nudez, a mais nua que há,

tem pudor de que outros vejam

o que deve haver de esgar,

de tiques, de gestos falhos,

de pouco espetacular

na torta visão de uma alma

no pleno estertor de criar.



Quem escreve põe o pé na beira do seu próprio abismo, porque abala suas certezas e multiplica suas dúvidas.

Quem escreve despe mais do que as próprias roupas, porque enquanto escreve ainda não sabe o que mostra para os outros.

Quem escreve sente de repente todas as suas hesitações, lacunas e omissões, percebendo como o seu próprio pensamento é incompleto e o quanto ainda precisa pensar.

Quem escreve de repente entende o quanto a sua própria pessoa é incompleta e fraturada, o quanto ainda precisa se refazer, se inventar, enfim: se reescrever.

In: Revista Eletrônica do Vestibular da UERJ, 14/03/2011



http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a704.htm

POR QUE O PROFESSOR NUNCA ACEITA MINHA OPINIÃO?

POR QUE O PROFESSOR NUNCA ACEITA A MINHA OPINIÃO?

Gustavo Bernardo







In: Revista Eletrônica do Vestibular da UERJ, 21/10/2009







Quando peço um trabalho discursivo, não é incomum, na hora de entregar as notas, aparecer um aluno perguntando por que a opinião dele não foi aceita. Reservo para esses momentos uma contra-pergunta cruel: “tinha alguma?”

É maldade, reconheço, ainda mais com alunos que já se encontram fragilizados, quiçá revoltados, com a nota obtida. Mas essa pergunta surpreende e serve para desestabilizar as expectativas possíveis: de que o professor fique envergonhado por não aceitar a opinião do aluno e volte atrás, ou de que tente sustentar a sua própria opinião como melhor e mais correta do que a do aluno.

No primeiro caso, confesso minha incompetência; no segundo, exponho minha prepotência.

É claro que a correção e a avaliação podem ser mal feitas, quer por o professor se encontrar com a mão pesada demais, quer por a proposta inicial não ser clara. Além disso, toda avaliação envolve um forte componente de subjetividade de quem avalia. Ora, na redação esse componente se multiplica por dois ou três.

Além da pergunta cruel acima, eu também costumo assumir em sala que a avaliação, por considerar apenas o produto final e a perspectiva do professor, e por não poder levar em conta as condições de produção do aluno nem compará-lo com ele mesmo, implica forte possibilidade de injustiça.

A minha avaliação não é diferente: as chances de ser injusto sempre são grandes. No entanto, é preciso avaliar, e de um lugar de autoridade, para que o aluno receba um retorno sobre o valor do que está fazendo. A nota, justa ou injusta, é a moeda de troca da escola. Para minimizar a possibilidade de injustiça, abro espaço para reclamações, mas sugiro que o aluno elabore cuidadosamente tais reclamações, de preferência também por escrito.

Quando o aluno não está apenas reagindo para “ver se cola”, portanto, quando ele tem certeza de que foi injustiçado e resolve argumentar por escrito, muitas vezes não só ele está certo em algum aspecto, forçando-me a rever a nota, como ainda escreve muito melhor do que no trabalho que originou a reclamação. Por quê?

Porque no trabalho original ele atende a uma demanda do professor e da escola, enquanto na reclamação ele defende o seu interesse. A segunda redação atende a uma necessidade e a um desejo pessoais, levando-o a caprichar muito mais. Acabo criando um exercício menos artificial do que o primeiro, permitindo-me mostrar para o aluno que, quando ele quer e precisa, pode fazer muito melhor.

Resta explicar a crueldade da pergunta “tinha alguma?”.

Além de desestabilizar as expectativas reativas, ela denuncia a supervalorização fetichista da “opinião pessoal” na nossa cultura. A todo instante, na televisão, nos jornais, nas mesas de bar, nas eleições, somos convocados a “dar” a nossa opinião a respeito de tudo e mais alguma coisa, como se tivéssemos no bolso uma coleção de opiniões.

O verbo “dar”, associado ao objeto direto “opinião”, sugere que opinião é uma “coisa” concreta que se tem ou não se tem. Transforma-se assim a opinião num fetiche, numa coisa – num objeto simples e não numa ideia complexa. Entretanto, se observarmos a nós mesmos com honestidade, “temos” opinião própria sobre pouquíssimos assuntos. Aquilo que chamamos de “nossa opinião” é em geral uma costura frágil de opiniões alheias, entremeando o que ouvimos ali e lemos acolá.

É muito difícil “ter” uma opinião porque uma opinião verdadeiramente pessoal se constrói com cuidado e com tempo. Não se pode sacar do bolso uma opinião adequada a tudo quanto seja tema. Por isso, pergunto ao aluno, que reclama de sua opinião não ter sido levada em conta, se ele de fato tinha alguma. Atrás da aparente maldade, há uma lógica.

Não critiquei a redação desse aluno por causa da sua opinião ou porque não concordava com ele, mas devido à fraqueza dos seus argumentos, argumentos estes típicos de opiniões apressadas, confusas e incoerentes. Como professor, pouco me interessam alunos que repitam o que digo, mas sim alunos que construam argumentos fortes, capazes de sustentar quaisquer teses.

Algumas vezes, ao coordenar bancas de correção de redações em concursos vestibulares, lembrei aos professores que, caso não concordassem ou se indignassem com a opinião externada por algum candidato, pensassem que seria bastante provável que aquela redação estivesse muito boa, e não muito ruim! Por quê? Porque, se incomodou o leitor-avaliador a ponto de irritá-lo, os argumentos deveriam ser fortes o bastante.

Fora da situação de concurso, em sala de aula, procuro lembrar-me desse alerta. Um trabalho que me incomode tem grandes chances de ser bom, no mínimo porque saiu da mesmice. Logo, tendo a avaliá-lo positivamente, sem me abster de discutir depois com o aluno as suas ideias. Indico que o respeito avaliando-o positivamente e, ao mesmo tempo, expressando minha discordância. Esse aluno constrói verdadeiramente uma opinião própria, e isso deve ser destacado.

Dei o exemplo de como tento avaliar, mas confesso que nem sempre consigo ser tão “democrático” ou tolerante. Tantas vezes percebo que fui injusto e, pior do que injusto, arrogante, quando é tarde demais. Sinto-me como o médico que comete um erro grave, capaz de custar até a vida do seu paciente. Meus erros não matam pessoas, mas podem machucar bastante. Como aquele médico, no entanto, preciso aprender com o erro e continuar, se essa é a minha profissão.

“Eu” sou menos importante do que o que eu faço, e posso fazê-lo bem se ficar menos preocupado comigo, com a minha imagem, com a minha opinião, enfim. Reza a filosofia oriental que “um sábio não tem ideia”, isto é, não tem opinião. Não sou esse sábio, é claro, mas o ponho no horizonte como um ideal capaz de regular a minha prática cotidiana.

Esse sábio procura apenas pensar e especular, ou seja, procura apenas duvidar e explorar a fundo as suas dúvidas. É o que uma boa redação, um bom trabalho discursivo também pode fazer, desistindo de procurar no bolso a “opinião certa”.



http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a449.htm

PODE-SE USAR DEUS EM REDAÇÃO?

DEUS É ARGUMENTO?

Gustavo Bernardo





In: Revista Eletrônica do Vestibular da UERJ, 09/09/2009





É comum se dizer: “mulher, futebol e religião não se discutem” ou “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Trata-se de dois bons exemplos de como as frases feitas podem virar rematadas besteiras.

Se a briga entre o marido e a mulher chega às vias de fato, alguém tem de meter a colher (e os braços) para apartar, porque provavelmente a mulher está tomando uma surra de um homem covarde. Às vezes, acontece o contrário, reconheço, mas nesse caso também é necessário separar o casal para salvar o coitado...

Do mesmo modo, os três assuntos “que não se discutem” são os que mais se discutem, precisamente por não ser possível determinar a mulher mais bonita, o melhor time de futebol ou a única religião válida. A dúvida que constitui os três assuntos torna-os um excelente e interminável campo de discussão.

Dessa conclusão não se segue, entretanto, que Deus em pessoa (ou melhor, em espírito) possa entrar na conversa para decidir a questão em favor daquele que O invocou.

Um dos argumentos indutivos válidos é o argumento do testemunho autorizado e pertinente, quando se cita alguém que ou observou os fatos de perto ou é uma autoridade no assunto em tela. No entanto, trazer Deus para a redação é, para quem acredita Nele, covardia, já que Ele tudo vê e tudo sabe, e, para quem não acredita, apelação pura.

O testemunho autorizado só vale se quem escreve e quem lê concordam que aquele testemunho tem autoridade. Se o leitor pode não aceitar aquele testemunho, faz-se necessária uma discussão preliminar: se o autor citado tem ou não autoridade no assunto.

Se o autor citado é nada menos do que Deus, faz-se necessária aquela discussão preliminar e milenar: Deus existe?

Supondo que exista: eu realmente sei o que Ele pensa para falar em nome Dele?

Ora, tais discussões não podem ser decididas com argumentos. Não posso provar que Deus exista ou que não exista, para começar. Mesmo que por absurdo conseguisse provar Sua existência, não conseguiria mostrar a procuração que Ele teria assinado em meu nome. Logo, não posso recorrer à suprema divindade nem para sustentar meus argumentos, nem para fechar minha redação com chave de ouro, afirmando, por exemplo, que “apesar de tudo Deus é fiel”.

Não se trata de ironia: a expressão acima, comum em adesivos de automóvel, apareceu em quase uma centena de redações num concurso vestibular recente. Se o tema da redação fosse sobre religião, essa expressão seria pertinente e então eu poderia criticá-la: não lhes parece uma heresia atribuir a qualidade humana da fidelidade à própria divindade? O fiel pode ser fiel a Deus e à sua crença, mas Deus seria fiel a quê ou a quem? A um Meta-Deus?

Todavia, nenhuma banca de concurso ousaria propor um tema religioso. Consequentemente, uma ideia religiosa como essa se mostra impertinente para construir um argumento sobre qualquer outro assunto. Entretanto, isto, que me parece lógico, não é óbvio, como prova a recorrência da expressão “apesar de tudo Deus é fiel” em tantas redações de vestibular.

Essa recorrência atesta não apenas o recrudescimento da fé religiosa e a multiplicação de religiões diferentes, como ainda lembra que, para boa parte da população, o único discurso articulado e inteligível é o do pastor do templo. Não me cabe de modo algum menosprezar esse discurso, mas devo contextualizá-lo.

O discurso religioso é extremamente rico. Com a autoridade de ateu convicto, posso dizer que o discurso religioso é a origem dos demais: dele derivam os discursos artístico e científico, nada menos. Mas o discurso religioso é por definição dogmático, ou seja: ele sempre parte de alguns dogmas que naturalmente não estão em discussão.

Em contrapartida, o discurso científico, que modela toda argumentação acadêmica, por definição não pode ser dogmático: tudo pode e deve ser discutido, tudo pode e deve ser objeto de argumentação e de constestação, até porque sempre se pressupõem réplica e tréplica, argumentação e contra-argumentação, por parte de todos os interlocutores e leitores envolvidos.

No contexto de um templo religioso, o pastor, o padre, o rabino ou o pai-de-santo consideram que todos os presentes partilham dos mesmos dogmas. No contexto de uma redação acadêmica ou de um concurso vestibular, quem escreve não pode supor que seu leitor partilhe da sua fé. Em consequência, deve utilizar argumentos que sejam compreensíveis para quem crê neste ou naquele deus, e ainda para quem não crê em qualquer deus.

Meu argumento aqui não é pragmático nem oportunista: não afirmo que não se deva usar a autoridade divina porque o avaliador talvez seja um infiel “que vai baixar a minha nota”. Afirmo algo diferente: que não se pode usar o nome de Deus porque o território simbólico da redação acadêmica é laico, logo, todos os interlocutores possíveis devem ser respeitados.

Afirmo também que não se pode usar o nome de Deus para não cair no pecado estilístico da incoerência. Há muitos anos atrás, quando eu dava aula de redação num colégio católico da zona sul do Rio de Janeiro, conhecido por abrigar muitos professores de esquerda, recebia centenas de textos com uma análise marxista e materialista da conjuntura, seguidos por uma conclusão religiosa do tipo “mas no final Deus resolve”. A incoerência entre os argumentos era gritantemente alta; a nota das redações, em compensação, vinha forçosamente baixa.

Alguns alunos reclamavam, mas eu conseguia lhes explicar que ainda não estavam pensando por conta própria mas simplesmente “copiando” os argumentos opostos a que eram submetidos. Havia outros alunos, porém, que abandonavam tanto Deus quanto Marx para sustentarem que eu não podia lhes dar menos do que o grau máximo porque os seus pais pagavam nada menos do que a mensalidade inteira – bem, esse era realmente o pior de todos os argumentos, ou a maior de todas as falácias (assunto da próxima crônica).

Eu ainda poderia acrescentar à minha tese que não se deve usar o nome de Deus à toa, em vão, justamente para não diminui-Lo, mas acabaria recorrendo a um argumento religioso calcado no segundo mandamento (de acordo com católicos e luteranos) das leis divinas. Se caminhar por essa senda, eu é que incorro no pecado da incoerência.

Isso não significa, no entanto, que não se possa argumentar recorrendo a trechos da Bíblia. Na literatura brasileira, o escritor que mais citou a Bíblia, e o fez sempre muito bem, foi Machado de Assis – o que não impediu que ele, às portas da morte, recusasse a extrema-unção: “melhor não”, afirmou, coerente com seu discreto agnosticismo, porque “seria hipocrisia”.

A Bíblia, o Alcorão e outros livros religiosos são produtos fundamentais da cultura humana, e como tal podem ser utilizados com pertinência e eficiência, isto é, podem convencer o leitor, independentemente da sua convicção religiosa. A Bíblia fornece excelentes argumentos para qualquer discussão desde que não seja usada como a palavra de Deus, uma vez que ninguém pode apresentar a procuração a que me referi acima.

Deus não vale. Deus não é argumento.




http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a442.htm

PODE-SE ESCREVER REDAÇÃO EM 1ª PESSOA DO SINGULAR?

Posso escrever na 1ª pessoa do singular?


Gustavo Bernardo





Publicado originalmente na Revista do Vestibular da UERJ
em 13/05/2009; Ano 2, n. 3, 2009





O aluno do ensino fundamental e médio reclama de não poder escrever na 1ª pessoa, de não poder usar na redação expressões da sua fala normal como “eu acho que”. Alguns professores de português costumam apresentar a seguinte justificativa para a regra: quem escreve precisa levar seu argumento a conclusões gerais compreensíveis para toda a gente, ou seja, não pode se limitar à sua vivência particular. Se o assunto é “violência urbana”, por exemplo, quem escreve não pode se limitar àquele assalto que a sua irmã sofreu na semana passada. Usando a 1ª pessoa, quem escreve corre o risco de falar mais de si mesmo e menos do tema, o que por sua vez o leva a um registro mais informal da língua, inadequado para situações formais tais como redação escolar e redação de concurso.

Os argumentos são válidos isoladamente, mas não me parecem pertinentes – tanto não me parecem que, como o leitor deve ter observado, eu estou aqui usando a 1ª pessoa e até escrevendo “eu”. É válido afirmar para o aprendiz que sua redação deve chegar a conclusões gerais, que ele deve falar do tema ao invés de fazer confissões pessoais, e que ele deve procurar ser formal como se estivesse se candidatando a um emprego, e não informal como se estivesse conversando com um colega ou escrevendo num chat de bate-papo.

Se tudo isso é válido, por que não seria pertinente? Porque uma coisa não se deduz da outra: eu posso restringir-me ao tema sem fugir dele para dar detalhes da minha vida, posso levar meu argumento a conclusões bem gerais, posso manter a formalidade adequada e ainda assim escrever na 1ª pessoa do singular. Se observarmos artigos assinados de jornal e ensaios acadêmicos contemporâneos, veremos que é absolutamente corrente esse uso, mostrando-se mesmo de melhor leitura do que aqueles que optam pelo anacrônico plural majestático, afirmando que “nós pensamos” quando apenas uma pessoa está formulando aquelas ideias.

A restrição da escola se torna mais grave quando, a pretexto de evitar que fique rodando à volta do próprio umbigo, alerta-se o aluno de que ele não deve emitir “opiniões pessoais”. Como não fazê-lo, se o gênero de escrita predominante na escola é o dissertativo e a dissertação se define como “a defesa de uma opinião”? O que o aluno e toda a gente têm de aprender é a defender bem suas próprias opiniões. Inibir o uso da 1ª pessoa antes atrapalha do que ajuda a atender a este objetivo.

Claro está que, se o aluno começa a redação com “eu acho que”, lhe empresta um tom de informalidade um pouco perigoso no contexto em que escreve: ele será lido por pessoas mais velhas para avaliá-lo, muito mais do que por prazer ou para se informarem. No entanto, a substituição por “parece-me” já me parece (vejam só) adequada e suficiente. Do mesmo modo, se o aluno escreve “eu acho que” ou até “me parece” a cada duas linhas, ele força uma recepção negativa por parte do leitor, passando a impressão de que, ao contrário de ter “achado” alguma coisa, se encontra na verdade bastante perdido.

Logo, a preocupação dos professores de redação e das outras disciplinas com o uso da 1ª pessoa do singular tem fundamentos válidos, mas se exagerada provoca efeito contrário ao desejado: não apenas não ensina a escrever e argumentar melhor como ainda atrapalha, bloqueando a formação de opiniões próprias que sejam ao mesmo tempo bem pensadas e bem articuladas – objetivo maior de qualquer educação que se preze.




http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a357.htm

MAGRITTE - CACHIMBO, OVO, MULHERES

atenção: As imagens que acompanham o texto abaixo podem ser vista em:

http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a448.htm






O OVO DE MAGRITTE

Gustavo Bernardo





Publicado originalmente na revista GHREBH nº 13, outubro de 2009







O pintor belga René Magritte, no quadro “A Perspicácia” (“La Clairvoyance”, de 1936), pinta a si mesmo olhando para um ovo, mas pintando na tela (dentro da tela) um belo pássaro alçando voo. Depois, ele se deixa fotografar pintando a tela em que pinta a si mesmo pintando um ovo – na tela dentro da tela (e dentro da foto), porém, continuamos a ver o belo pássaro alçando voo.







Olhar um ovo sobre a mesa e “ver” um pássaro voando não é em si um esforço mental extraordinário, mas pintar a si mesmo efetuando esses dois movimentos simultâneos e depois fotografar a si mesmo pintando a si mesmo enquanto efetua aqueles dois movimentos simultâneos, sem dúvida o é. A imagem dentro da imagem, seguida da imagem dentro da imagem dentro da imagem, provoca no espectador uma sensação mista de vertigem e de obviedade, como se o pintor tivesse posto o ovo em pé, quer dizer, como se o pintor tivesse redescoberto o ovo de Colombo – mas sem quebrá-lo.

Há muito de didatismo “do bem” nessa sucessão de imagens. Digo “do bem” porque qualquer tipo de didatismo associado a obras de arte implica usualmente uma designação pejorativa, como se o artista se tornasse menos artista por tentar ensinar alguma coisa com a sua arte. A intenção didática supõe linearidade e univocidade, consequentemente, ausência de ambiguidade, ambiguidade esta que caracterizaria a melhor arte.

No entanto, há um outro tipo de educação e ensino que vai muito além da transmissão linear de verdades estabelecidas e perspectivas oficiais que não admitem quaisquer outras. Desde Sócrates, ao menos, é possível educar e ensinar por perguntas verdadeiras e provocações desestabilizadoras. Chamo de “perguntas verdadeiras” aquelas em que quem pergunta não sabe a resposta, por oposição às perguntas retóricas das provas escolares, aquelas em que o interrogador-professor não só já sabe a resposta como exige do aluno que lhe devolva a resposta que ele, professor, já sabe e já tem. As perguntas das provas escolares são, nesse sentido, falsas perguntas, isto é: não são perguntas mas armadilhas – em especial se vêm formuladas como “múltipla escolha”, quando o aluno não tem escolha nenhuma: há apenas uma resposta supostamente certa entre três ou quatro definitivamente erradas.

O quadro de Magritte, não por acaso intitulado “Perspicácia”, bem como o quadro dentro do quadro de Magritte, bem como a fotografia de Magritte pintando o seu quadro, revelam-se didáticos “do bem” porque fazem ao menos uma pergunta “verdadeira”: a verdade se encontra no ovo ou no pássaro? Como nesse caso não se trata de “escolher” entre “A” ou “B”, a verdade depende ora da perspectiva, ora da circunstância.

Em outras palavras, ela pode se encontrar tanto no ovo quanto no voo do pássaro – ou quanto em qualquer instante entre o ovo e o voo, a tal ponto que o voo do pássaro não precise necessariamente ter estado contido no ovo, mas quiçá na sombra do belo corpo nu de uma mulher, como no quadro “Le Principe d’Incertitude” (1944 — “O Princípio da Incerteza”), sugerindo ao espectador tantas outras possibilidades para a compreensão do voo (como, por exemplo, a de um momento de êxtase) e ainda o levando a tomar o princípio da incerteza, de Heisenberg, como ideal regulador da arte e também da vida.

Segundo afirma o próprio Magritte, comentando este quadro, “não podemos dizer com certeza, a partir da sombra de um objeto, o que este é na realidade” (Magritte, 1978: 260 — “On ne peut pas dire avec certitude, d’après l'ombre d’un objet, ce que celui-ci est en réalité”). Mas a lição do pintor não se esgota na assunção da concomitância de verdades e perspectivas, porque o ovo remete à metaficção e, portanto, à busca interminável e agônica da identidade do que quer ou do quem quer que seja: da mesma forma que o belo voo do pássaro se encontrava dentro do ovo que o gerou, uma tela se encontra dentro da outra, uma imagem se encontra dentro da outra, uma ficção se encontra dentro da outra – e uma nunca é a simples reprodução da outra, mas outra coisa.

A beleza da obra de arte, de um quadro, por exemplo: ela não será, segundo Stendhal, outra coisa senão a promessa de uma felicidade (em Magritte, 1978: 14 – “La Beauté n'est que la promesse d’un bonheur”). Diz-se “A”, a beleza visível, para se dizer “B”, a felicidade prometida, dizendo-se tanto “A” quanto “B”. Como determina a precisa definição de Aristóteles, “a metáfora é uma coisa no lugar de outra coisa”, ou seja: a metáfora é uma fábula de verdade no lugar da verdade que não sabemos e não podemos saber. Ou, como diria o pintor, enigmaticamente: “a poesia é um cachimbo” (Magritte, 1978: 59 – “La poésie est une pipe”).

O enigma retoma sua visualidade se lembramos as diversas versões da célebre pintura de René Magritte em que ele lembra ao espectador o fato óbvio, mas óbvia e frequentemente esquecido, de que a pintura de um cachimbo não é um cachimbo. Dois dos quadros da série do cachimbo são os mais conhecidos e os mais importantes: “La Trahison des Images”, pintado em 1928, e “Les Deux Mixtères”, pintado trinta e oito anos depois, em 1966.







Em ambos os quadros, as palavras comparecem não somente graças aos títulos significativos, mas também por meio de uma mesma frase completa: “Ceci n'est pas une pipe” – “Isto não é um cachimbo”. A presença de uma frase como esta dentro de uma pintura equivale a uma subversão estética de tal magnitude que repercute até hoje, gerando outros tantos quadros, artigos e livros. Mal comparando, “ceci n'est pas une pipe” corresponde ao verso de Carlos Drummond de Andrade, “tinha uma pedra no meio do caminho”, que também gerou reações e comentários suficientes para serem recolhidos em livro. O poeta brasileiro, porém, recorreu apenas a seu instrumento, a palavra, enquanto o pintor belga trouxe a palavra para dentro da sua pintura, dizendo que “isto”, um cachimbo, não era um cachimbo. Por isso Virgínia Figueiredo, em artigo provocantemente intitulado “Isto é um cachimbo” (2005), considera Magritte “o pintor das palavras e das coisas”.

A frase “isto não é um cachimbo”, debaixo de uma pintura convencional de um cachimbo, formula uma série de ironias ao mesmo tempo. Ironiza, por exemplo, o hábito de tomar as palavras pelas próprias coisas que as palavras designam, gerando equívocos em cascata. Ironiza, ainda, a reação frente às artes em geral daquele que o pintor mesmo chama de “l'homme de la rue”: o tal do “homem da rua” exige realismo rasteiro e não admite o exercício da imaginação nem ao artista nem a si mesmo. A ironia se estende se pensarmos que a frase “isto não é um cachimbo” poderia ter sido dita pelo próprio homem da rua, frustrado por não poder pegar o cachimbo do quadro para tirar umas baforadas. A frase “isto não é um cachimbo” ironiza, por fim, e dessa maneira múltipla, a pretensão absurda do realismo de mostrar a vida como ela é e as coisas como elas são.

A ironia toma nova forma com a capa que o pintor fez para o número 1 do London Gallery Bulletin, publicado em 1938: um personagem fuma um cachimbo que, antropomorfizado, fuma um cachimbo menor, o qual, por sua vez, também fuma um cachimbo menor ainda que, por seu turno, fuma outro cachimbo ainda menor, assim, ad infinitum, numa variação sagaz do mote meta e intraficcional das babuskhas tchecas, ou seja, da boneca dentro da boneca dentro da boneca.

A ironia dos quadros de 1928 e de 1966, no entanto, não reside somente nas imagens deles, porque se amplifica com os seus títulos. O quadro de 1928 tem por título “A traição das imagens”: esse título chama a atenção para a circunstância de as coisas não serem o que parecem ser e, em particular, para o fato, que deveria ser óbvio mas não é, de que a representação de uma coisa nunca será mais do que isto: a representação de uma coisa e não a própria coisa. Não sabemos como as coisas são em si, apenas como elas aparecem aos nossos limitados sentidos e à nossa limitada mente em dado momento limitado. Por isso, precisamos representar as coisas e precisamos nos reapresentar às coisas. Ora, as imagens das coisas nos traem antes, quando estas nos aparecem e mal as vemos (ou as vemos mal), e nos traem depois, quando as representamos e nos reapresentamos a elas: elas se tornam outras, jamais aquelas a que na verdade nunca tivemos acesso pleno.

O quadro de 1966 tem por título “Os dois mistérios”: esse título mostra que o pintor não ficou contente com um mistério “só” e resolveu duplicá-lo, décadas depois do primeiro quadro e de toda a repercussão que ele sofreu. Nesse quadro ele põe o primeiro quadro num cavalete e o pinta, fazendo babuskhamente um quadro do quadro, e ainda acrescenta outro cachimbo, solto no ar ou quiçá pintado na parede (por sua vez, pintada no quadro). Agora a frase “ceci n'est pas une pipe” está dentro do quadro que está dentro do outro quadro.

O primeiro mistério é o da traição das imagens, que são imagens das coisas e não as próprias coisas que imaginamos; o segundo mistério é o da explicitação da metaficção que, paradoxalmente, tanto revela quanto esconde o labirinto vertiginoso em que o pintor vem nos metendo há tanto tempo. O quadro dos dois mistérios (ou dos dois cachimbos) como que faz a figura do comentário irônico do próprio Magritte: “O famoso cachimbo... Como fui censurado por isso! E, entretanto... Vocês podem encher de fumo o meu cachimbo? Não, não é mesmo? Ele é apenas uma representação. Portanto, se eu tivesse escrito no meu quadro: ‘isto é um cachimbo’, eu teria mentido” (em Figueiredo, 2005: 447).

No entanto, aquele cachimbo no quadro não deixa de ser e de ser visto como um cachimbo, embora o seja “como nenhum cachimbo no mundo pode ser. Qualquer outro cachimbo no mundo será insuficiente para ser no sentido que só a obra de arte pode reivindicar ser” (Figueiredo, 2005: 456). Assim, os quadros do cachimbo não sossegam, forçando-nos a pensar a respeito e a partir deles. Pensar, por exemplo, por que um cachimbo e não outro objeto? Há outro quadro de Magritte, de 1964, com uma maçã no lugar do cachimbo e a frase “ceci n'est pas une pomme” no lugar da outra frase, mas foram as imagens do cachimbo e a primeira frase que se impuseram.

Duas explicações se podem levantar para a força do cachimbo: primeiro, trata-se de um símbolo fálico óbvio, pela forma, pelo uso e pela fumaça que exala; segundo, trata-se de um objeto absolutamente gratuito (como a arte, talvez), já que se fuma cachimbo para tão-somente se fumar cachimbo. As duas explicações seriam liminarmente rejeitadas por René Magritte, se ele não queria explicar nada nem aceitava quaisquer explicações para o que fazia: lhe interessava, apenas, pensar e pintar – criar pinturas e provocar pensamentos. Para quem tentasse interpretá-lo, ele gostava de retrucar ironicamente: “você é mais feliz do que eu” (em Gablik, 1970: 9 – “You are more fortunate than I am”).

Uma das interpretações que mais o incomodava era aquela que associava suas pinturas a sonhos ou pesadelos. Desta interpretação, aliás, padeciam todos os surrealistas. Magritte, porém, rejeitava a explicação do sonho como fonte de suas pinturas: “A palavra ‘sonho’ é sempre mal usada em relação à minha pintura. Nós certamente vemos o reino dos sonhos como respeitável – mas nossos trabalhos não são oníricos, ao contrário. Se ‘sonhos’ são pertinentes nesse contexto, o são de maneira muito diferente daquilo que temos quando dormimos. É uma questão antes de sonhos rebeldes e com vontade própria, nos quais nada é vago como aquelas sensações que nos escapam nos sonhos... Meus ‘sonhos’ não pretendem fazê-lo dormir, mas despertá-lo” (em Hammacher, 1985: 18).

Entretanto, dizer, como disse acima, que Magritte não aceita os ditames da pintura realista, não é apenas uma interpretação. Em entrevista a Suzi Gablik, o pintor afirma explicitamente: “O realismo é algo vulgar e ordinário, mas para mim a realidade não se alcança facilmente. Por isso eu digo ‘surrealista’ referindo-me à realidade mesma que percebemos em certos momentos privilegiados nos quais temos presença de espírito” (Magritte, 1978: 684 — no original em inglês: “Realism is something vulgar, ordinary, but for me reality is not easily attained. And that’s why I say surrealist to mean this reality we perceive at certain privileged moments when we have presence of mind”). Presença de espírito que teve o fotógrafo Chema Madox, em 1999, quando, em homenagem a Magritte, transformou um cachimbo em uma flauta e o fotografou.

O surrealismo de Madox, Magritte e tantos outros configura exatamente a reação da arte à anti-arte representada pelo realismo do dezenove: ao invés de fingirem que não estão fingindo, ou seja, que não estão fazendo literatura ou pintura, os surrealistas expõem-se fingindo através da conversa com sua própria linguagem, por exemplo colocando telas de pintura dentro de telas de pintura, como babuskhas bidimensionais e, ao mesmo tempo, multidimensionais. Forma-se, é claro, um paradoxo parecido com o célebre paradoxo do mentiroso: quando artistas como Magritte assumem que fingem (que fazem ficção) nas suas próprias obras, portanto não fingem que não estão fingindo, eles de fato acabam por não fingir – embora o continuem fazendo...

Há uma conhecida e divertida definição para o surrealismo que se adequa bem ao jogo visual de Magritte: “o encontro casual de um guarda-chuva com uma máquina de costura numa mesa de dissecação” (Paglia, 1998: 69). As coisas se tornam sempre outras coisas, se observadas atentamente. Em outras palavras, as coisas se tornam sempre metáforas, jamais elas mesmas. Ao não aceitar os ditames da pintura realista, Magritte não aceita o gosto estreito do “homem da rua”, cuja crença simplória toma “a representação do objeto pelo objeto mesmo, mostrando-se inepto para levar em conta ou pensar em outras percepções do objeto” (Magritte, 1978: 181 – “L'homme de la rue n'est sensible qu’à cette représentation picturale; la croyance simple qu’il a de prendre l'apparence d’un objet pour l’objet lui-même, le rend inapte à envisager ou à penser à d’autres perceptions de l'objet”). Não perceber que a palavra não é a coisa que designa e que a imagem não é o objeto que se pinta, em suma, não perceber como ficção as ficções entre as quais transitamos, seriam sintomas flagrantes de indigência não somente intelectual, mas também moral.

O enigma magritteano prova, para o pintor, sua ruptura “com o conjunto de absurdos costumes mentais que geralmente ocupam o lugar de um sentimento autêntico da existência” (Magritte, 1978: 109 — “Quant au mystère, à l'énigme que mes tableaux étaient, je dirai que c’était la meilleure preuve de ma rupture avec l'ensemble des absurdes habitudes mentales qui tiennent généralement lieu d’un authentique sentiment de l'existence”). Nossa própria felicidade depende “de um enigma unido ao homem e nosso único dever é o de tentar conhecê-lo” (Magritte, 1978: 113 — “notre bonheur dépend lui aussi d’une énigme attachée à l'homme et que notre seul devoir est d’essayer de la connaître”). Tentar, sim, mas sabendo da impossibilidade de afinal conhecer, porque “a imbecilidade consiste em crer que compreendemos o que não compreendemos” (Magritte, 1978: 433 — “L'imbécillité consiste à croire comprendre ce que l'on ne comprend pas”).

Ele busca sistematicamente, com seus quadros, “um efeito poético perturbador” (Magritte, 1978: 110 — “un effet poétique bouleversant”), para devolver à existência o sentimento de autenticidade que os costumes burgueses escamoteiam. Este sentimento é propriamente a dúvida, a ser protegida com unhas, dentes e metáforas pela arte — protegida contra a ciência, contra a escola e contra a sociedade “em geral”, ou seja, contra aqueles que recalcam a dúvida como se fosse possível saber o que não se sabe. Para alcançar aquele efeito poético e perturbador, o pintor contrasta seu traço, intencionalmente figurativo e acadêmico, com associações inusitadas que garantem seu conteúdo provocador.

Por isso, podemos considerá-lo um pintor pensador: “a marca do filósofo residia no ato de duvidar de tudo aquilo que fosse usualmente dado por suposto” (Gablik, 1970: 10 — “the mark of the philosopher is to doubt what is usually taken for granted”). Toda a sua vida foi pautada pelo solitário e gigantesco esforço de “derrubar nosso senso do familiar, sabotar nossos hábitos, pôr o mundo real à prova”, representando “uma revolta permanente contra os lugares comuns da existência” (Gablik, 1970: 9 — “to overthrow our sense of the familiar, to sabotage our habits, to put the real world on trial” [...] “it represented a permanent revolt against the commonplaces of existence”).

Por isso, é parte integrante de seus quadros, portanto, dos seus enigmas visuais, os títulos com que os batiza. Esses títulos provocam o debate e a conversação, mas não são de modo algum explicações, como enfatiza: “Os títulos dos quadros não são explicações e os quadros não são ilustrações dos títulos. A relação entre o título e o quadro é poética, isto é, esta relação só retém dos objetos algumas das características normalmente ignoradas pela consciência, mas pressentidas, às vezes, por ocasião de acontecimentos extraordinários que a razão não consegue esclarecer” (Magritte, 1978: 259 – “Les titres des tableaux ne sont pas des explications et les tableaux ne sont pas des illustrations des titres. La relation entre le titre et le tableau est poétique, c’est-à-dire que cette relation ne retient des objets que certaines de leurs caractéristiques habituellement ignorées par la conscience, mais parfois pressenties à l'occasion d’événements extraordinaires que la raison n'est point encore parvenue à élucider”).

O título poético “não nos informa de nada, mas deve nos surpreender e nos encantar” (Magritte, 1978: 263 – “Le titre poétique n'a rien à nous apprendre, mais il doit nous surprendre et nous enchanter”). O pintor belga não gosta de explicações e interpretações: elas se destinam a domesticar seus quadros, tirando-lhes toda a força provocativa. Tantas vezes, os títulos não são suficientes e ele precisa inserir palavras e frases dentro do quadro, como na longa série do cachimbo que não é um cachimbo, exercitando um outro tipo de metaficção interna, a saber, o diálogo entre a linguagem verbal e a linguagem visual.

No desenho das três mulheres, de 1929, ele sobrepõe ao púbis da primeira mulher, em pé, a palavra “arbre” (“árvore”); ao torso da segunda mulher, ainda em pé, a expressão “ombre portée” (“sombra projetada”); e finalmente, ao ventre da terceira mulher, sentada no chão, relaxada, a palavra “mur” (“muro”).

As interpretações possíveis não são simples nem fáceis, talvez porque o pintor não as deseje. Como as figuras femininas, desenhadas de maneira muito econômica, se encontram nuas, as expressões designariam tipos de mulher? Ou obstáculos para acesso ao sexo da mulher? Ou provas insofismáveis de que as palavras não se grudam às coisas, não importa o quanto se tente grudá-las? Ou é preciso tão-somente intrigar, sem que a intriga possa se desfazer? De todo modo, a relação entre a palavra e a coisa, entre a língua e a realidade, fica comprometida.

Na verdade, Magritte não aceita “nenhuma explicação do mundo, quer através do acaso quer do determinismo. Não sou responsável por minhas crenças. Nem mesmo sou eu quem decide que não sou responsável, e assim infinitamente. Sou obrigado a não crer. Não há nenhum ponto de partida” (Magritte, 1978: 646 — no original em inglês: “The problem lies precisely in not accepting any explanation of the world either through chance or determinism. I am not responsible for my belief. It is not even I who decides that I am not responsible – and so on to infinity – I am not obliged not to believe. There is no point of departure”).

Para criar, portanto para pensar, somos obrigados a não crer – é o que nos ensina o pintor. O pensador dentro do pintor, no caso, reconhece a necessidade de suspender não apenas a descrença, para fruir melhor a obra de arte, mas principalmente toda e qualquer crença. Essa suspensão, que desde os gregos chamamos de “epoché”, mostra-se em três níveis que, de certo modo, estamos percorrendo.

O primeiro nível é o da célebre suspensão amorosa da descrença, formulada há tempos por Samuel Coleridge: lemos um livro ou vemos um quadro “como se” o que lemos ou vemos fosse real, para podermos efetivamente viver a experiência estética, que não deixa de ser uma das experiências afetivas mais fortes por que podemos passar. Aceitamos então, provisoriamente, o “como se” como um “aqui e agora”.

No segundo nível, fazemos da leitura e da observação da arte nosso ofício; logo, precisamos também efetuar uma espécie de “suspensão da suspensão da descrença”, para entendermos o processo que não só faculta como provoca aquela suspensão da descrença e, em consequência, aquela experiência tão forte. Falha o teórico que pula o primeiro nível e não suspende a sua descrença (ele se torna uma espécie de crítico profissional, aquele que só gosta dos filmes que ninguém gosta), assim como falha se fica preso na primeira leitura, quando ainda não pode haver teoria.

Mas há ainda um terceiro nível, o da “suspensão da crença”: da crença nos mapas, nas explicações, nos sistemas, vale dizer: na teoria, na filosofia, na ciência. Esse exercício de suspensão da crença é vertiginoso mas necessário, se não quisermos reificar toda a teoria. Como seria essa suspensão? Primeiro, tenta-se pôr momentaneamente entre parênteses a crença de que o mundo natural existe; depois, tenta-se pôr também entre parênteses a crença de que as proposições decorrentes daquela crença sejam verdadeiras.

Falo aqui de uma espécie de redução fenomenológica: desistimos de apreender e de descrever a essência das coisas para tomá-las somente como aparecem a cada um de nós – e não necessariamente a todos nós. Em palavras kantianas, desistimos do númeno para nos deleitarmos com o fenômeno. No processo, deixamos de dirigir o nosso olhar para os objetos tomados em si mesmos em seu ser inacessível (a árvore, a sombra, o muro) para dirigir a atenção para os atos da consciência que nos permitem chegar até eles (nossa visão da árvore, nossa lembrança da sombra, nossa imaginação do muro). Chegamos à coisa, então, vivendo-a segundo seu sentido para nós, segundo o valor que lhe atribuímos e sobre o qual não negamos nossa responsabilidade.

Trata-se de instaurar um regime crítico de pensamento que é seu próprio fim. Trata-se de, metafilosoficamente, pensar sobre o próprio pensamento. Ao contrário do que possa parecer, esse regime surge menos de uma teoria ou de uma filosofia bem amarrada do que da arte de um de um Magritte. Esse regime abre campo para a epoché, ou seja, para aquela espécie de eclusa reflexiva que bloqueia a atitude ingênua e permite, ao olhar, olhar o próprio olhar.

Olhar o próprio olhar, no entanto, é impossível, a menos que pensemos em semelhante gesto como um gesto regulador, posto no horizonte para ser perseguido calmamente: sem esperança de alcançar, sem parar de andar na sua direção. Ora, na arte, a metaficção, que faz ficção da ficção, representa justamente a tentativa de olhar o próprio olhar. Toda a obra de René Magritte, como estamos vendo, brinca com essa possibilidade, ou melhor, com essa impossibilidade de olhar o próprio olhar.

Em “A Perspicácia”, de 1936, ele não pintou a si mesmo olhando para um ovo, mas pintando na tela (dentro da tela) um belo pássaro alçando voo? E depois não se deixou fotografar pintando a tela em que pintava a si mesmo pintando um ovo, embora, na tela dentro da tela (que por sua vez estava dentro da foto), porém, continuássemos a ver o belo pássaro alçando voo? Pois fez isso tantas outras vezes, a ponto de intitular uma de suas telas de “Tentative de l'Impossible” (1928 — “Tentando o Impossível”).

No quadro, um pintor (sempre parecido com o pintor do pintor, isto é, com Magritte) pinta um belo nu de mulher. Mas nem pinta sobre uma tela nem sobre a pele de uma mulher “de verdade”: ele pinta no ar, como que criando a mulher em três dimensões, com seu pincel e com sua paleta. A criação tridimensional da mulher é naturalmente ilusória, uma vez que o quadro continua a se nos mostrar em duas dimensões apenas. No entanto, essa ilusão promove um diálogo metaficcional da pintura com a escultura, reforçando a circunstância, também metaficcional, de um pintor pintar um pintor pintando, ou melhor: pintar a si mesmo pintando uma mulher. O diálogo, todavia, não se dá apenas com a escultura em geral, mas também com determinada escultura mítica: a de Galateia.

Conta a lenda que Pigmalião, rei de Chipre e escultor renomado, se apaixonou por uma de suas estátuas de mármore, a que chamou Galateia. Louco de desejo por ela, suplicou a Afrodite que lhe concedesse esposa igual à sua obra. Afrodite atende o seu desejo e anima a própria estátua. Pigmalião casa-se com Galateia e tem com ela uma filha, Pafos (Brandão, 1991: 275). Magritte retoma portanto o mito do amor impossível de Pigmalião e pinta um pintor pintando uma bela mulher nua, como se a estivesse criando para si mesmo.

Para completar a “brincadeira”, de maneira semelhante ao que voltaria a fazer com o quadro do pintor pintando um ovo, na verdade um pássaro, Magritte deixa-se fotografar pintando não essa tela, mas sim sua própria mulher, que muitas vezes posou para ele.

Assumia-se assim como um novo Pigmalião, criando vida do nada e da matéria inerte – sem deixar de proteger e preservar o seu enigma original.













Referências Bibliográficas



BRANDÃO, Junito (1991). Dicionário Mítico-Etimológico: volume II. Petrópolis: Vozes, 1997.

FIGUEIREDO, Virgínia (2005). “Isto é um cachimbo”. In: Revista Kriterion nº 112. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia da UFMG, dezembro de 2005.

GABLIK, Suzi (1970). Magritte. London: Thames & Hudson, 2003.

HAMMACHER, Abraham Marie (1985). Magritte. Translated by James Brockway. New York: Abrams, 1995.

MAGRITTE, René (1978). Écrits complets. Paris: Flammarion, 2001.

PAGLIA, Camille (1998). Os pássaros de Hitchcock. Tradução de Jussara Simões. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.




http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a448.htm

terça-feira, 21 de junho de 2011

SIMULADO - 1º SEMESTRE DE 2011

SIMULADO DE REDAÇÃO – 1º SEMESTRE DE 2011

1. Valor: qualidade que confere a um objeto material a natureza de bem econômico, trocável por outros bens; medida variável de importância que se atribui a um objeto ou serviço, que, embora condicione o seu preço monetário, frequentemente não lhe é idêntico; qualidade humana física, intelectual ou moral, que desperta admiração ou respeito (Ex.: o valor inestimável daquele cientista) // Preço: quantidade monetária que se atribui à troca por um bem ou serviço. (Dicionário Houaiss)


2. Van Gogh conseguiu vender em vida apenas um quadro seu (Vinhas Vermelhas – 1888) para um amigo, o qual lhe pagou uns 30 dólares (cerca de 400 francos). Hoje os quadros de Van Gogh têm um preço de mercado que oscila de 60 mil a 4 milhões de dólares (Em 1990, 100 anos após sua morte, seu quadro Retrato de Dr. Gachet foi arrematado por US$ 82,3 milhões.). Onde estava esse valor?


3. Um ser humano, do ponto de vista da matéria-prima que o constitui, isto é, ferro, sal, sódio, manganês, cálcio, vale um punhado de dólares, mas se considerarmos as conexões neuroniais, as quais ultrapassam de longe o mais sofisticado computador, este aparelho – o cérebro – não sairia por menos de 500 milhões de dólares.


4. Uma floresta de jacarandá da Bahia tem um preço altíssimo no mercado mundial de madeira, pois é uma das melhores do mundo; como se trata de uma mata nativa, imagine que as árvores foram derrubadas e seu proprietário recebeu o valor correspondente. Acontece que uma floresta desse tipo demora 200 anos para ser formada, atravessando gerações futuras e, portanto, seu valor ultrapassa seu preço.
Uma cachoeira magnífica, formada por dobramentos de centenas de milhões de anos atrás. Imagine que essa queda d’água desaparecerá encoberta por um lago artificial de uma usina hidroelétrica. Seu valor estético ficará para sempre submerso nas águas, mas a energia elétrica gerada produzirá alguns milhões de dólares.


5. O oceanógrafo francês Jacques Cousteau (1910-1997), em entrevista publicada em O Estado de São Paulo, em sua edição do dia 22 de setembro de 1996, fez críticas aos modelos econômicos que privilegiam apenas o mercado (“concepção das relações comerciais baseada essencialmente no equilíbrio de compras e vendas, segundo a lei da oferta e da procura; lugar teórico onde se processam a oferta e a procura de determinado produto ou serviço” – Dicionário Houaiss) e alertou para os perigos que eles representam para o futuro ambiental do planeta. Disse ele: “Uma economia liberal é boa, mas há uma grande diferença entre uma economia liberal – ou empresa livre que atende às leis da oferta e da demanda – e um sistema de mercado. O sistema de mercado, em que estamos vivendo atualmente, está trazendo mais danos ao planeta do que qualquer outra coisa, pois tudo tem um preço, mas nada tem valor. (...) O valor real é derrotado no jogo. A realidade não é mais considerada. Assim, não só estamos destruindo a diversidade de espécies nas florestas tropicais ou no oceano, que levou um milênio para se formar, mas também estamos vendendo o futuro em nome do lucro imediato. A calota de gelo polar, por exemplo, está derretendo como consequência do aquecimento global. Isso resulta da queima de combustíveis fósseis a um preço que não inclui o valor da calota polar em manter uma temperatura estável e o nível do mar, o que permite que a vida ao longo das costas deste planeta de água – onde está concentrada a maioria das pessoas – seja viável.”


6. Em 1855, o Chefe índio Sioux, Nuvem Vermelha, enviou esta carta ao presidente dos Estados Unidos (Franklin Pierce), depois de o Governo haver dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aqueles índios: “O Grande Chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar nossa terra. O Grande Chefe assegurou-nos também sua amizade e benevolência. Isto é muito gentil da sua parte, pois sabemos que ele não precisa da nossa amizade. Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra. (...) Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo. Cada folha reluzente de pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência de meu povo. (...) Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar a teus filhos que é sagrada e que cada reflexo espectral na água límpida dos lagos conta os eventos e as recordações da vida de meu povo. (...) Os rios são os nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se te vendermos nossa terra, terás de te lembrar e ensinar a teus filhos que os rios são irmãos nossos e teus, e terá de dispensar aos rios a afabilidade que darias a um irmão. Sabemos que o homem não compreende o nosso modo de viver. Para ele um lote de terra é igual a outro, porque ele é um forasteiro que chega na calada da noite e tira da terra tudo que necessita. A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de conquistar, ele vai embora. (...)”




TEMA: Enfim, como estabelecer a relação entre valor e preço? As coisas que mais têm valor são as que custam mais? Ou o valor é algo intrínseco no homem e o preço nada mais é que a quantidade monetária de sua sobrevivência?
Redija uma dissertação argumentativa, em prosa, relacionando esses conceitos sob o título: “Os valores e os preços para a sociedade”.

SOCIEDADE FRACTAL (TEXTO EXCELENTE)

domingo, 19 de junho de 2011

CASO CESARE BATTISTI - TEMA DA PRÓXIMA AULA DE REDAÇÃO

CASO CESARE BATTISTI DIVIDE OPINIÕES NO BRASIL


Poucas vezes na história do Brasil um julgamento atingiu a dimensão política alcançada pelo caso Cesare Battisti. Militante comunista na Itália dos anos 1970, Battisti foi preso em junho de 1979 e sentenciado a pena de 12 anos, acusado de participação em grupo armado, assalto e receptação de armas. Escapou em outubro de 1981, e passou a viver na França, protegido pela Lei Mitterrand, que concedia refúgio a "pessoas envolvidas em atividades terroristas na Itália até 1981 e que tivessem abandonado a violência".
O caso Battisti foi reaberto na Itália, e novas acusações se somaram contra ele, todas baseadas unicamente em depoimentos de testemunhas, sem apresentação de provas materiais. Em outubro de 2004, as leis mudaram na França e o governo Chirac aprovou a extradição de Battisti, insistentemente pedida pela Itália. Com auxílio da própria polícia francesa, Battisti fugiu novamente, agora para o Brasil, onde foi detido (no Rio de Janeiro) em outubro de 2007. A partir daí começou a batalha jurídica entre os favoráveis e os contrários à sua extradição, exigida pelo governo italiano.
Dada a relevância histórica do caso, reproduzimos nesta edição a opinião de dois expoentes da batalha em curso; o professor Carlos Lungarzo e o jornalista Mino
Carta, o primeiro contrário e o segundo favorável à extradição. (...)


Carlos Lungarzo, representante da seção brasileira da organização Anistia Internacional, assumiu um lugar de destaque na luta contra a extradição de Cesare Battisti. Ele afirma que Battisti foi condenado por um processo irregular e repleto de erros, num momento em que a Itália vivia sob estado de exceção. Diz, que não foi apresentada contra Battisri nenhuma prova material, mas apenas "delações premiadas" (em que as supostas testemunhas de determinado crime recebem benefícios em troca de seus depoimentos).

Publicamos em seguida um artigo de Lungarzo escrito com exclusividade para Mundo. Carlos Lungarzo foi professor titular da Unicamp e da UERJ, e pesquisador do CNPq na área de ciências exatas. Desde 1981 militou em diversas seções de Anistia Internacional. Vive definitivamente no Brasil desde 1976. Para os interessados, ele deixa o seu e-mail: carlos.lungarzo@gmail.com.


"EXTRADIÇÃO É UMA FARSA"

Tenho pouco espaço para dizer muito; então, vou ser curto. Tudo o que digo aqui e muito mais pode ser totalmente comprovado com documentos italianos e brasileiros que estão no site: http://sites.google.com/site/lungarbattisti. Vocês podem baixar, copiar, distribuir livremente, citar, publicar. Dos documentos italianos temos apenas seis volumes com as sentenças de 1981,1983,1988, 1990 e 1993 e o histórico, conseguidos com dificuldade. A Itália não permitiu o acesso aos relatórios de provas que eles dizem ter nem aos depoimentos das testemunhas.
A Itália acusa Battisti de ter matado quatro pessoas; dois empresários e dois policiais. Na sentença de 1981, Battisti foi julgado por guardar armas, por estar num grupo guerrilheiro, e por furtar alguns valores para uso político. Nunca se fala de que matasse alguém. Aliás, já nessa data, os verdadeiros assassinos eram conhecidos, e seus nomes aparecem na sentença: Pietro Mutti, Sante Fatone, Giuseppe Memeo, Sebastiano Masala, Lavazza e Grimaldi. Todos eles cumpriram penas médias ou curtas, salvo Lavazza que foi capturado na Espanha.
Na sentença de 1988, o Tribunal de Milão quer passar a culpa a Battisti, porque Mutti e Fatone o acusam dos quatro crimes. Isso se chama delação premiada. Os juízes preferiram colocar todas as culpas em Battisti, porque queriam salvar os delatores. A justiça italiana não tem provas nem testemunhas contra Battisti. Eles mencionaram várias pessoas como testemunhas só pelo sobrenome, mas não dão nenhum outro dado: primeiro nome, sexo, profissão, idade, domicílio. Essas pessoas são chamadas Ronco, Menegon, Linassi, Suriano, Zampieri, Pagano, mas jamais foram entrevistadas por jornalistas e suas fichas não estão publicadas na sentença de 1988. As descrições que eles fazem do homem que encontraram "perto" do lugar do crime não coincidem: eles discrepam na cor do cabelo, altura, complexão física, etc. Ninguém descreve o rosto. Só dizem que tem uns 25 anos.
Na sentença de 1988 há contradições: numa parte diz que a primeira vítima foi morta por dois tiros, em outra parte diz que foram três. Numa folha dizem que a arma era uma pistola Glisenti, propriedade de Battisti. Em partes anteriores se diz que Battisti tinha só duas pistolas (Beretta e Browning). Uma "testemunha" diz que viu o atirador de outro crime, que era loiro e alto. Battisti é castanho e não é alto.
O tribunal de Milão recusou-se a nos deixar ver os relatórios das provas de balística, as perícias dos carros dos matadores, provas de sangue e outras provas físicas. Mas tampouco os verdadeiros matadores poderiam ser extraditados porque nenhum país civilizado extradita autores de crimes políticos. Isso está na Constituição Brasileira. Na sentença de 1988, o tribunal enumera os delitos em que interveio Battisti (posse de armas, subversão, oposição ao estado, propaganda política, etc.). Em total, a sentença repete 33 vezes que os crimes foram políticos e não comuns. Por isso, o ex-ministro da Justiça Tarso Genro deu o refúgio, que não pode ser negado a preso político. A Itália diz agora que os crimes foram comuns.
A Itália diz que sua soberania foi agredida. Ridículo. O Brasil não está dentro da jurisdição italiana. Eles agridem o Brasil, porque pretendem arrancar de solo brasileiro uma pessoa que está aqui. Pessoas não são propriedades de seus países. A Itália proferiu graves insultos contra o presidente, os ministros, os juristas e outros, que foram relatados durante o processo pelo juiz Marco Aurélio. Temos o direito de submeter Battisti a nossas leis. Qualquer pessoa que vá voluntariamente a outro país se está submetendo a essas leis. Isso é lei e praxe internacional.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil aprovou a extradição de Battisti no dia 9 de setembro de 2009, por cinco votos contra quatro, mas no dia 16 de novembro também aprovou, também por cinco a quatro, que a decisão de aplicar ou não a extradição depende do Poder Executivo. Em todos os países de Ocidente, e até na própria Itália, o Tribunal diz se o governo pode ou não pode extraditar. Se o STF diz, que não pode, o presidente deve obedecer. Se diz que pode, então apenas está permitindo, mas não obrigando. Juízes não podem expulsar um estrangeiro. É o presidente ou o primeiro-ministro que pode fazê-lo.
No relatório do juiz Peluso, favorável à extradição, há várias inverdades. Na página 53, por exemplo, Peluso diz que Battisti atirou no açougueiro, enquanto um colega o protegia. Na página 102, diz que o colega foi quem atirou. Este colega era Giacomini, e ele confessou ter matado o açougueiro, mas nunca disse que Battisti era o seu acompanhante. Peluso nega que a Itália dos anos 1970 estivesse controlada pelo fascismo. Mas, isto é bem conhecido e está atualmente em dúzia de livros e artigos. O atual ministro de Defesa foi um importante dirigente fascista juvenil.
Peluso e outros juízes negam que a pena esteja prescrita. Mas, para estes supostos crimes, a pena prescreve aos 20 anos. A sentença foi proclamada em 1988. Battisti deveria ter sido libertado nesse ano.


*************************************************************************************


O jornalista Mino Carta é um dos mais eloquentes entre os que defendem a extradição de Cesare Battisti. Para ele, Battisti é um criminoso comum, e o governo Lula errou ao tratar o caso como se fosse uma batalha para afirmar a soberania do Brasil diante das pressões pela extradição feitas pelo governo italiano. Além disso, Mino Carta afirma que a Itália é um estado de direito e não uma ditadura, visão compartilhada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e outros favoráveis à extradição de Cesare Battistii.

Reproduzimos, em seguida, um artigo escrito por Mino Carta sobre o tema e publicado na revista Carta Capital em 1O de janeiro. Além de ser fundador e ocupar o cargo de diretor de redação da revista, Mino Carta criou as revistas Quatro Rodas e Veja e o Jornal da Tarde.


"A INJUSTIÇA DÓI"

Ao negar a extradição de Cesare Battisti, Lula conseguiu reunir a direita italiana à sombra de uma única bandeira, como se deu em manifestações de protesto encenadas em Roma diante da embaixada do Brasil e em Milão em frente ao consulado. Os direitistas viviam desavenças de diversos matizes, a ponto de pôr em xeque a maioria parlamentar de Silvio Berlusconi, agora marcham juntos, contra aquela que consideram afronta à nação e à pátria.

Enredo penoso, nutrido em grande parte por ignorância, incompreensão, hipocrisia, recalques e retórica. Há “patriotas”, e ponho a palavra entre aspas de caso pensado, dos dois lados. Dar guarida a um delinquente comum em nome da soberania nacional é patético. Quanto à afronta que na Itália inflama ânimos reacionários, existe quando se pretende que Battisti, caso extraditado, sofreria perseguição política e correria risco físico. Ou seja, o Estado italiano, democrático e de Direito, não tem condições de garantir a segurança dos seus presos. Ora, em relação ao ex-terrorista só haveria uma certeza: devolvido à Itália, iria para a cadeia. Certamente, com a pena sensivelmente reduzida.

Escreve Sergio Romano, historiador e ex-diplomata de valor: “Gostaria de acreditar que Lula julga a Itália com os óculos de sua experiência brasileira”. Aprecio a definição, mas dia 31 de dezembro o presidente agiu ao sabor da sua índole e a alegada soberania de fato é a visão de um grupelho de correligionários mais ou menos milenaristas, e nem todos de boa-fé. Lula, que diz nunca ter sido de esquerda, quis agradar a um grupelho de fanáticos do Apocalipse distante da compreensão do papel que hoje cabe a um verdadeiro esquerdista em um país ainda humilhado por graves diferenças sociais e por uma lei da anistia imposta pela ditadura.

O caso nasce do erro clamoroso de Tarso Genro, à época ministro da Justiça, ao enxergar em Battisti um foragido político, com a pronta adesão de quantos, poucos felizmente, mas influentes, não percebem a diferença entre quem pega em armas para enfrentar a ditadura e quem as pega com o propósito declarado de derrubar um Estado Democrático de Direito. Sustentava então o professor Dalmo Dallari que a Itália dos anos de chumbo estava entregue a um governo de extrema-direita, para espanto até mesmo daqueles que têm conhecimento apenas superficial da história recente. Governava a península uma coligação de centro-esquerda, o presidente da República era o socialista Sandro Pertini e dois líderes do porte de Aldo Moro, democrata­ cristão, e Enrico Berlinguer, comunista, preparavam-se a selar um grande entendimento dito compromesso storico.

A este gênero de ignorância juntavam-se a manifesta intenção de pôr em julgamento as sentenças dos tribunais italianos, cominadas em três instâncias à revelia, pois Battisti estava foragido. Ouvi do próprio Genro a afirmação de que, em outras circunstâncias, o ex-terrorista teria sido absolvido. Compete ao ministro da Justiça do Brasil discutir as decisões das cortes de um Estado Democrático de Direito? Na Itália, a Justiça é até hoje um poder independente e não hesita em causar notáveis dissabores ao premier Berlusconi, este sim tão diferente dos líderes da década de 70. E foi em 1978 que Moro foi assassinado pelas Brigadas Vermelhas em um cenário de terrorismo até o último sangue em que se infiltravam os serviços secretos das potências de então, a começar pelos EUA, tão escassamente inclinados a aceitar a ideia do compromisso histórico.

Triste episódio, o caso Battisti, qualquer que venha a ser seu desfecho. A Itália mantém polpudos interesses no Brasil, onde suas multinacionais faturam alto. E o nosso país é um emergente de futuro certo, aposta de olhos fechados. Donde a previsão de que a questão se componha sem maiores sequelas é possível, se não provável. Sobraria uma inevitável ponderação: a injustiça dói.

Claudio Magris, que concorreu ao Nobel com Doris Lessing em 2007, diz em um artigo publicado pelo Corriere della Sera: “O presidente Lula, que continuaremos a admirar pela inteligência e pela coragem com que enfrentou tantos problemas cruciais do seu país, manchou o fim do seu excelente mandato com ofensas gratuitas à Itália e com a proteção oferecida ao pluriassassino Cesare Battisti”. Magris professa ideais de esquerda.





Mundo - Geografia e Política Internacional. março/2011.




ENTENDA A POLÊMICA





STF nega extradição de Cesare Battisti e italiano é libertado


09/06/2011

STF nega extradição de Cesare Battisti e italiano é libertado

Da redação

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu negar a extradição de Cesare Battisti na segunda vez em que deliberou sobre o destino do italiano, na quarta-feira, dia 8 de junho. Com isso, o escritor foi finalmente liberado em Brasília.

No ano passado, a instância havia deliberado que a decisão sobre o pedido de extradição feito pela justiça italiana cabia ao presidente brasileiro e, no último dia de seu mandato, Luiz Inácio Lula da Silva determinou a liberação de Battisti, preso desde 2007 no Brasil.

Apesar do desfecho, Battisti seguiu detido, aguardando um novo julgamento do STF sobre seu caso, uma vez que o governo italiano pediu a revisão da decisão de Lula. Desta vez, o Supremo avaliou que a decisão de um chefe do Executivo não poderia ser contestada por um governo estrangeiro, considerando que isto colocaria a soberania nacional em risco.

Numa votação polêmica, os ministros Luis Fux, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Marco Aurélio Mello votaram a favor da libertação de Battisti, enquanto Gilmar Mendes, relator do processo, e Ellen Gracie e Cezar Peluso votaram por sua extradição. Mendes defendeu a extradição imediata de Battisti e afirmou que o Supremo teria autonomia para descumprir a decisão de Lula, sendo criticado pelo Ministro Luis Fux.

Entenda a polêmica

A condenação de Battisti a prisão perpétua na Itália é permeada de contradições, considerada por alguns como uma decisão mais política do que de fato judicial.

As falhas apontadas no processo foram retratadas em reportagem publicada na edição 168, de janeiro de 2011, da Revista Caros Amigos. Confira abaixo a reportagem na íntegra:



Cesare Battisti: o eterno fugitivo

Condenado num processo cheio de falhas, e até falsificações, que correu à sua revelia, o escritor italiano se tornou alvo do ódio da direita mundial e passou a vida sendo perseguido pelo Estado italiano e, nos últimos anos, pelo judiciário brasileiro. Conheça os detalhes do caso Battisti.

Por Débora Prado

Amplamente divulgado na grande mídia de diversos países, o debate acerca da extradição de Cesare Battisti se tornou tema de discussão no Brasil e na comunidade internacional. O Estado e a justiça italiana, o judiciáio brasileiro, a extrema direita e os reacionários de plantão se empenham na campanha pela entrega dele ao sistema penitenciário italiano para que permaneça encarcerado até o fim de sua vida. No Brasil, a propaganda contra o escritor e ex-militante de extrema esquerda também é intensa e, apesar do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter decidido negar sua extradição no último dia de mandato, Battisti continua preso, ilegalmente, e vai passar por novo julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Condenado durante processo que correu à sua revelia por quatro assassinatos cometidos na década de 1970, o que pouca gente sabe é que Battisti já havia passado por um julgamento na Itália. Neste primeiro julgamento, sentenciado em 1981, foi condenado a 13 anos e alguns meses de prisão por suas atividades militantes, ou ‘crime de subversão’ e por porte de armas. Não houve, no entanto, qualquer condenação ou sequer citação dos quatros assassinatos que lhe são atribuídos hoje em dia. Quase ninguém diz ainda que seu segundo julgamento na Itália está permeado de contradições (ver Box), assim como o relatório do STF brasileiro, de autoria do Ministro Cezar Peluso.

Na verdade, a condenação a prisão perpétua - reivindicada agora pelo governo italiano para justificar a extradição – só aconteceu no segundo processo, de 1988, baseado numa prática chamada ‘delação premiada’. “Durante o primeiro processo, houve muitas torturas, são 13 casos declarados. Mas, mesmo sob a tortura, ninguém nunca pronunciou o nome de Battisti” explica Fred Vargas, historiadora, arqueóloga e escritora francesa, complementando: “Em troca das acusações no segundo processo, outros presos ganharam consideráveis reduções na pena. Nenhum dos arrependidos e dissociados teve prisão perpétua, o único membro do grupo com essa condenação foi o ausente: Battisti”.

Em suas pesquisas sobre o caso, ela constatou ainda que as procurações supostamente assinadas por Battisti para os advogados que o representaram no segundo processo são falsas. “Ele foi representado falsamente durante os onze anos do processo. Isso já seria suficiente para anular sua condenação” diz. Com tanta sujeira embaixo do tapete, fica evidente que os motivos para a condenação de Battisti são muito mais políticos do que de fato judiciais.

Dalmo de Abreu Dallari, jurista e professor emérito da USP (Universidade de São Paulo), explica que se fossem considerados apenas os aspectos legais, Battisti já deveria estar em liberdade. “A prisão de uma pessoa cuja extradição o foi pedida tem caráter preventivo, visando garantir a execução da decisão do Chefe do Executivo, caso este decida favoravelmente ao pedido. A partir do momento em que o Presidente decidiu não conceder a extradição, já não havia motivos para manter Cesare Battisti preso, não havendo qualquer fundamento legal para essa tremenda restrição de seus direitos fundamentais, avalia o jurista, concluindo: “Assim, não há dúvida de que a motivação não foi jurídica, mas influenciada por outras determinantes”.

Para Carlos Alberto Lungarzo, professor titular da Unicamp aposentado e militante da Anistia Internacional (AI), é totalmente impossível que Battisti tenha cometido algum assassinato e, além de injustiçado, sua extradição pode representar uma sentença de morte. “Se ele voltar à Itália e ficar vivo durante um tempo seria um milagre. O sentimento de rancor contra ele já existia antes, mas a agitação do caso na França e no Brasil está deixando em evidência a enorme corrupção da justiça italiana e a falta de seriedade e dos políticos” afirma.

O professor conta que a perseguição tomou tamanha proporção que uma região da Itália está proibindo os livros de centenas de escritores que assinaram um manifesto pela não extradição de Battisti. “É necessário entender um ponto sensível da cultura italiana, pelo menos nos últimos dois séculos: o sentimento de vingança muito generalizado. O Tribunal precisava dar uma satisfação aos parentes e ter um culpado universal. Claro que também há interesses políticos fortes: ameaçar a pouca esquerda que resta na Itália, mas que vai crescendo, fazer o papel de vítima no cenário europeu e por aí vai” diz. Os estudiosos do caso apontam mais de uma justificativa para a perseguição de Battisti. Para Lungarzo, é simplista dizer que Berlusconi quer ocultar seu fracasso político e seus escândalos sexuais, uma vez que a campanha contra o escritor aumentou a medida que seus livros críticos ficaram mais conhecidos.

“Inicialmente, tudo indica que os magistrados italianos carregaram todos os assassinatos em Battisti, porque ele estava longe e não poderia se defender. Ele foi apenas um bode expiatório. Quando ele voltou à França, em 1990, a Itália tentou extraditá-lo - ‘por que não mais um?’. Mas, a extradição foi recusada e não se fez nenhum alvoroço. Então surgiu a verdadeira razão: Battisti se tornou um escritor de sucesso, com 15 livros publicados antes de vir ao Brasil. Suas histórias sobre perseguição, exílio e fascismo são romances lidos por pessoas que nunca leriam um livro de história. Há uma prova que eu acho muito clara disso: em quase todas as mensagens e comentários de ódio de leitores de jornais que se publicam na Itália sempre se fala que ele é um ‘afrancesado’, um rebelde, um homem que pinta uma imagem horrível da Itália, que não é católico, e coisas assim. Isso é muito duro para um país onde domina a Máfia, o fascismo e a Igreja” avalia Lungarzo.

De acordo com o filósofo e professor da USP aposentado Paulo Arantes, no governo italiano a extradição de Battisti se tornou um ponto de honra, assim como um ponto de honra para o aparato repressivo brasileiro e seus aliados impedir qualquer tipo de julgamento público das atrocidades cometidas pela Ditadura Militar. “Óbvio que se trata de um ponto de honra para a magistratura e para o Estado italiano, porque ele é fugitivo há 20 anos. E na Itália há uma unanimidade sobre isso entre a direita e a esquerda, se é que essa distinção ainda faz sentido lá”, avalia. Ele explica que, apesar de seu passado glorioso, o Partido Comunista italiano sujou as mãos durante a repressão italiana. “Muitos dos magistrados implicados nos julgamentos, na tortura e na repressão ou eram filiados ou gravitaram na ordem do Partido Comunista”, complementa Arantes.

Segundo a historiadora Fred Vargas, existe ainda uma relação importante entre o caso de Battisti e a participação italiana na Guerra do Iraque para preparar a população italiana - que era contra a entrada da Itália na Guerra. “O governo quer fabricar um amálgama entre os antigos ‘terroristas’ dos anos de chumbo, e o novo terrorismo” explica.

Outros países já negaram a extradição de Battisti, como a Grécia, Suíça, França, Inglaterra, Canadá, Argentina, Nicarágua e Japão. “Talvez por causa dessas negativas e porque pretendem usar Cesare Battisti como um troféu, alguns Ministros do governo italiano agridem tão violentamente o Brasil”, analisa Dalmo Dallari. Ele identifica também uma forte motivação política, “bastando lembrar que o atual Ministro da Defesa da Itália, Ignazio La Russa, foi militante ativo da Aliança Nacional, organização neofascista. A par disso, é público e notório que a Itália vem enfrentando uma crise política, tendo havido várias manobras legislativas e judiciárias, visando impedir que o Primeiro Ministro Silvio Berlusconi seja processado criminalmente. Battisti vem sendo usado também em manobra para distrair a atenção do povo”, diz.

Extradição

A perseguição a Battisti na Itália respingou no STF, que ignorou as contradições no julgamento italiano que condenou Battisti. Na instância máxima da justiça brasileira, o pedido de extradição ganhou com 5 a favor e 4 contra, cabendo, então, ao presidente Lula dar a palavra final. Em sua cruzada para desfazer as contradições presentes no processo, Fred Vargas enviou uma carta com 13 perguntas ao ministro Cezar Peluso, apontando as falhas no processo italiano. Não obteve resposta. Em seu relatório, o ministro Peluso havia afirmado que a Itália e sua justiça seguiram escrupulosamente as regras da democracia e de um Estado de Direito durante os ‘anos de chumbo’. “Isto é falso, a justiça italiana desta época utilizou ameaças, pressões, arrependidos, torturas, sem falar nas procurações falsas”, contesta Vargas.

Carlos Lungarzo também avalia que há uma perseguição de “ambos chefões” do STF (Cezar Peluso e Gilmar Mendes), por diferentes razões: “Por um lado, salvo para poucos casos, o poder judiciário da maior parte do mundo não se preocupa em prender inocentes. Isto é comum nos Estados Unidos e absolutamente comum no Brasil. Então, as pessoas que acompanharam o voto do relator, salvo Gilmar Mendes, podem ter simplesmente votado por conformismo, por medo de discordar, por banalização da vida humana”.

Para ele, entretanto, Peluso e Mendes estão promovendo uma verdadeira perseguição política, pois são típicos representantes da direita- o primeiro do conservadorismo católico e o segundo do estilo da direita brasileira. “Mendes sempre votou contra réus da esquerda. No caso de Mendes, por seu histórico, sua relação com a oposição política e outros detalhes, não há dúvida que a perseguição contra Cesare foi uma maneira de enfraquecer o governo, colocando Genro e Lula no meio de um conflito. Peluso é um radical católico, e me parece que nele há o sentimento não político-ideológico, mas algo mais profundo, que eu chamo ‘ódio inquisitorial’. Battisti é não apenas de esquerda. É uma pessoa crítica do sistema social, que escreveu mais de 10 livros onde denuncia a situação da Itália”, caracteriza.

O professor Paulo Arantes também avalia que a inclinação política dos magistrados influenciou na decisão pela extradição de Battisti: “É uma instituição majoritariamente conservadora, os ministros são visceralmente reacionários, portanto, a palavra de ordem deles aqui também ‘nada que saia fora da linha pode ser relevado’, desde um estudante que quebra uma vidraça numa ocupação de reitoria, até o caso de Battisti. É a política da tolerância zero, apoiada pela opinião publica, que abomina a junção de luta política com gesto de força” define. Agora, o que está em jogo, segundo Arantes, é decidir se a autorização dada pelo STF para Lula decidir se iria aceitar ou recusar a extradição foi séria, ou foi apenas brincadeira. “Eu acho quase impossível que, além de Peluso e Mendes, alguém possa votar que foi ‘pura brincadeira’. Tudo indica que a decisão de Lula será mantida”, diz.

Para Dalmo Dallari, a falha grave do STF foi a manutenção de Battisti na prisão mesmo depois de publicada a decisão do Presidente da Repúlica negando atendimento ao pedido de extradição. “A decisão do Presidente Lula foi absolutamente correta, do ponto de vista jurídico. Quanto aos fundamentos da decisão, também não cabe qualquer reparo. Com efeito, o Presidente decidiu no uso de suas competências constitucionais e tendo por base, quanto conveniência e oportunidade, disposições expressas do tratado de extradição assinado por Brasil e Itália em 1993. As condições concretas, a conveniência e oportunidade da extradição, isso fica no âmbito das competências exclusivas do Presidente”, explica.

Para o jurista, a decisão de Lula deve ser mantida. “Apesar dessas grosseiras investidas, não acredito que haja a mínima possibilidade de modificação da decisão tomada regularmente pelo Presidente Lula. Embora alguns brasileiros se posicionem a favor da pretensão italiana, é preciso não perder de vista que o Brasil não pode ceder sua soberania para ser agradável a uma corrente política italiana” afirma.



BOX: As contradições no segundo julgamento

Autor de um livro sobre a trajetória de Battisti e a perseguição sofrida pelo escritor, Carlos Alberto Lungarzo reuniu informações sobre os processos judiciais contra o italiano. Em entrevista a Caros Amigos, ele apontou algum elementos problemáticos , embora afirme:”Há muitos detalhes confusos e contraditórios, mas são tantos que não caberiam em nenhuma revista”. Veja abaixo algumas contradições levantadas pelo professor:

- No parágrafo 8 da página 448, o relator diz que, no caso do homicídio do açougueiro Sabbadin, o escolta do atirador era Battisti. Para provar que foi Battisti, disse que, além de provas (que não mostra), estão as testemunhas daqueles que assistiram ao homicídio ou seja, os clientes do açougue. Entretanto, algumas páginas antes diz que os clientes não puderam reconhecer ninguém porque os assaltantes estavam disfarçados.

- No caso do policial Andrea Campanha, o juiz toma como prova o fato de que, segundo a testemunha Manfredi, sogro do morto, o matador seria um homem loiro de uns 25 anos. Na página 522, o juiz reconhece que Battisti não é loiro, mas disse que pode ser ele, porque Battisti é castanho claro, e esta cor se parece com loiro.

- No primeiro homicídio, o do carcereiro Antonio Santoro, os magistrados mencionam várias testemunhas, todas pelo nome de família, sem indicar sexo, idade, profissão, domicílio nem nenhum outro dado. Entre as páginas 238 e 244, se mencionam Ronco, Menegon, Zampieri, Linassi, Pagano, Suriano, e na página 247, Ardizzone e Del Tosto. Nenhum deles foi jamais encontrado por jornalistas, nem aparecem em nenhuma outra lista. O que eles testemunharam foi que, num horário próximo ao do crime, havia um casal jovem que estava a uma pequena distância do local (não diz quanto). Ardizzone e Del Tosto descrevem apenas a mulher. Os outros descrevem ambos, mas os detalhes não coincidem. Ninguém descreve exatamente o corpo. O relatório disse ainda, numa parte, que o matador aplicou dois tiros pelas costas, e em outra parte, que aplicou três. Afirma-se que a arma usada era uma Glisenti, cuja propriedade foi atribuída a Battisti, porque teria sido encontrada na casa onde ele foi preso. Porém, na sentença de 1981, as 4 armas curtas encontradas na casa em que Battisti foi preso são descritas em detalhes: uma Berettam uma Browninge dois revólveres, um 38 e um 375. Nenhuma era uma Glisenti.

Dalmo de Abreu Dallari, jurista, também indica problemas que comprometeram a realização de um julgamento justo e imparcial. Ele afirma: “Tive acesso a muitos dados relativos ao processo que culminou com a condenação de Battisti. Examinando esses dados, verifiquei a ocorrência de vários vícios extremamente graves, que contrariam a afirmação de que houve um julgamento imparcial e justo. Assim, por exemplo, não foi assegurado ao acusado o direito de defesa, pois atuou no processo, aparentemente fazendo a defesa de Battisti, um advogado que utilizou procuração comprovadamente falsa e que não denunciou a falsidade das alegações da acusação, nem a precariedade das provas. Assim, Battisti foi condenado por dois homicídios praticados no mesmo dia e quase na mesma hora, em Milão e Veneza Mestre, locais que estão separados um do outro por dezenas de quilômetros, sendo praticamente impossível que ele estivesse nos dois lugares na hora em que os homicídios foram cometidos. A par disso, não foi apresentada qualquer testemunha presencial e a base da acusação foi o depoimento de um ‘arrependido’ na verdade um dos líderes do grupo a que Battisti estava filiado como um personagem menor, que fez as a acusações usando o mecanismo da ‘delação premiada’, recebendo benefícios em troca da acusação de outros. Portanto, não foi um julgamento imparcial e justo”.



BOX: Trajetória de uma fuga sem fim

Battisti nasceu em 1954, filho e neto de comunistas. Quando adolescente, cometeu alguns roubos, sendo preso em Udine, onde conheceu Arrigo Cavallina, um preso político do grupo de extrema esquerda, o PAC (Proletários Armados para o Comunismo). Battisti entrou para o PAC como um militante comum. Na Itália, assim como em toda Europa, os anos 1960-1970 foram marcados por lutas sociais, com o aumento das manifestações de ruas, ocupações e, inclusive, da luta armada e da via insurrecional. Conhecidos como os ‘anos de chumbo’, o movimento de revolta foi muito mais violento na Itália.

“A extrema esquerda luta contra o poder, que é corrompido e associado à máfia e, em parte, extrema direita. O poder utiliza a extrema direita para pôr bombas e atribuir os atentados extrema esquerda, o que os historiadores chamam de ‘Estratégia de Tensão’. Então, a extrema esquerda cai na armadilha e recorre as armas também” explica Fred Vargas. Segundo a historiadora francesa, nos anos 1970, existiu cerca de 600 grupos armados na Itália.

O PAC se forma no auge da ‘Estratégia de Tensão’, com a proliferação dos atentados praticados pela extrema direita com apoio da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), de acordo com o professor Paulo Arantes. “O que se passou na Itália foi um maio de 1968 (momento de insurreição na França) que durou 10 anos. Houve várias tentativas de Golpe de Estado, nesse contexto, houve estouros violentos dos dois lados, tanto da extrema direita, como da extrema esquerda. O PAC era uma das muitas organizações e não chegou a ter mais de 60 militantes ativos. Não era nenhuma ameaça para o governo italiano”, caracteriza Arantes.

Entre junho de 1978 e fevereiro de 1979, o PAC assumiu a autoria de quatro assassinatos: de um carcereiro chamado Antonio Santoro, do açougueiro Lino Sabbadin, membro do partido fascista MSI, do ourives Pierluigi Torregiani e do motorista do serviço secreto da polícia Andrea Campagna.

Por suas atividades no PAC, em 1979, Battisti foi detido e julgado pelos crimes de possuir armas não registradas e associação para cometer atos subversivos. Ele foi condenado a mais de 12 anos de prisão, sentença considerada exagerada por Carlos Lungarzo. “Durante o julgamento terminado em 1981, o Tribunal do Jurí de Milão não tem nenhum plano contra Battisti, os magistrados ainda não tinham decidido acusá-lo de nenhum homicídio. Ele foi julgado porque era conhecido como membro dos PAC, porém um membro pouco importante, e ele foi encontrado numa casa onde se guardavam algumas armas. O fato de que ele pegasse uma pena enorme (13 anos e 5 meses, depois reduzidos para 12 e 10 meses) se deve ao fato de que qualquer militante da esquerda armada tinha penas muito maiores que os autores de delitos comuns equivalentes”, afirma.

Em 4 de outubro de 1978, o serviço de inteligência da polícia de Milão identifica Pietro Mutti, um dos líderes do PAC, como autor da morte de Santoro, junto com uma mulher que seria sua escolta. Mutti, procurado durante mais de um ano, é capturado em janeiro de 1982, quando Battisti já não estava na Itália. Nessa época, a sentença de 1981 estava sendo apreciada em segunda instância e depois foi parcialmente confirmada pelo tribunal de apelações. Ou seja, o caso de Cesare estava fechado.

Por conta da presença de Mutti, e outros que foram capturados com ele, se abre um segundo processo, chamado PAC BIS, no qual Battisti é julgado de novo. Pelo acordo em que delata Battisti, Mutti teve sua pena reduzida de prisão perpétua para 8 anos. Neste período, Battisti já estava longe da Itália. O escritor foge da prisão em outubro 1981, atravessando os Alpes a pé rumo França. Lá ele permanece por alguns meses até se refugiar no México.

“Ele já está longe quando começa o segundo processo do PAC, em 1982, do qual ele seria informado apenas em 1990, quando retorna a França. Depois, ele vive durante 13 anos lá legalmente, sendo escritor e porteiro. Tem uma mulher e duas filhas”, conta Fred Vargas.

Battisti vive na França durante os anos da chamada Doutrina Miterrand, quando em 1985, o presidente francês François Mitterrand oferece proteção aos militantes da esquerda armada italiana. O pacto foi rompido, entretanto, pelo governo de direita de Jaques Chirac, e atualmente também por Nicolas Sarkozy.

Com isso, Battisti continua em sua fuga sem fim e, em 2005, se refugia no Brasil. A Itália pede a extradição do escritor e, em novembro de 2009, o Supremo Tribunal Federal decide por cinco votos a quatro pela extradição de Battisti, mas deixa palavra final para o presidente da República. Lula, no último dia de seu mandato, decide negar a extradição. A Itália contesta a decisão no STF, que voltará se manifestar sobre o tema. Enquanto isso, Battisti segue preso.

Em uma carta divulgada recentemente no Brasil, Battisti afirma:

“Depois de 14 anos de asilo, a França de Sarkozi me vendeu Itália de Berlusconi em troca do trembala [comboio de grande velocidade] de Lyon-Turin. Desde o ano 2000, estamos assistindo impiedosa tentativa do Estado italiano enterrar definitivamente a tragédia dos anos de chumbo, jogando na prisão e levando à morte o bode expiatório Cesare Battisti. Entre centenas de refugiados dos anos 1970 que se encontram em vários países do mundo, não fui escolhido eu por acaso nem pela importância do papel de militante, mas pela imagem pública que eu tinha enquanto escritor, o que me dava o acesso à grande mídia para denunciar os crimes de Estado naquela época e os atuais”.



http://carosamigos.terra.com.br/