quinta-feira, 23 de junho de 2011

MAGRITTE - CACHIMBO, OVO, MULHERES

atenção: As imagens que acompanham o texto abaixo podem ser vista em:

http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a448.htm






O OVO DE MAGRITTE

Gustavo Bernardo





Publicado originalmente na revista GHREBH nº 13, outubro de 2009







O pintor belga René Magritte, no quadro “A Perspicácia” (“La Clairvoyance”, de 1936), pinta a si mesmo olhando para um ovo, mas pintando na tela (dentro da tela) um belo pássaro alçando voo. Depois, ele se deixa fotografar pintando a tela em que pinta a si mesmo pintando um ovo – na tela dentro da tela (e dentro da foto), porém, continuamos a ver o belo pássaro alçando voo.







Olhar um ovo sobre a mesa e “ver” um pássaro voando não é em si um esforço mental extraordinário, mas pintar a si mesmo efetuando esses dois movimentos simultâneos e depois fotografar a si mesmo pintando a si mesmo enquanto efetua aqueles dois movimentos simultâneos, sem dúvida o é. A imagem dentro da imagem, seguida da imagem dentro da imagem dentro da imagem, provoca no espectador uma sensação mista de vertigem e de obviedade, como se o pintor tivesse posto o ovo em pé, quer dizer, como se o pintor tivesse redescoberto o ovo de Colombo – mas sem quebrá-lo.

Há muito de didatismo “do bem” nessa sucessão de imagens. Digo “do bem” porque qualquer tipo de didatismo associado a obras de arte implica usualmente uma designação pejorativa, como se o artista se tornasse menos artista por tentar ensinar alguma coisa com a sua arte. A intenção didática supõe linearidade e univocidade, consequentemente, ausência de ambiguidade, ambiguidade esta que caracterizaria a melhor arte.

No entanto, há um outro tipo de educação e ensino que vai muito além da transmissão linear de verdades estabelecidas e perspectivas oficiais que não admitem quaisquer outras. Desde Sócrates, ao menos, é possível educar e ensinar por perguntas verdadeiras e provocações desestabilizadoras. Chamo de “perguntas verdadeiras” aquelas em que quem pergunta não sabe a resposta, por oposição às perguntas retóricas das provas escolares, aquelas em que o interrogador-professor não só já sabe a resposta como exige do aluno que lhe devolva a resposta que ele, professor, já sabe e já tem. As perguntas das provas escolares são, nesse sentido, falsas perguntas, isto é: não são perguntas mas armadilhas – em especial se vêm formuladas como “múltipla escolha”, quando o aluno não tem escolha nenhuma: há apenas uma resposta supostamente certa entre três ou quatro definitivamente erradas.

O quadro de Magritte, não por acaso intitulado “Perspicácia”, bem como o quadro dentro do quadro de Magritte, bem como a fotografia de Magritte pintando o seu quadro, revelam-se didáticos “do bem” porque fazem ao menos uma pergunta “verdadeira”: a verdade se encontra no ovo ou no pássaro? Como nesse caso não se trata de “escolher” entre “A” ou “B”, a verdade depende ora da perspectiva, ora da circunstância.

Em outras palavras, ela pode se encontrar tanto no ovo quanto no voo do pássaro – ou quanto em qualquer instante entre o ovo e o voo, a tal ponto que o voo do pássaro não precise necessariamente ter estado contido no ovo, mas quiçá na sombra do belo corpo nu de uma mulher, como no quadro “Le Principe d’Incertitude” (1944 — “O Princípio da Incerteza”), sugerindo ao espectador tantas outras possibilidades para a compreensão do voo (como, por exemplo, a de um momento de êxtase) e ainda o levando a tomar o princípio da incerteza, de Heisenberg, como ideal regulador da arte e também da vida.

Segundo afirma o próprio Magritte, comentando este quadro, “não podemos dizer com certeza, a partir da sombra de um objeto, o que este é na realidade” (Magritte, 1978: 260 — “On ne peut pas dire avec certitude, d’après l'ombre d’un objet, ce que celui-ci est en réalité”). Mas a lição do pintor não se esgota na assunção da concomitância de verdades e perspectivas, porque o ovo remete à metaficção e, portanto, à busca interminável e agônica da identidade do que quer ou do quem quer que seja: da mesma forma que o belo voo do pássaro se encontrava dentro do ovo que o gerou, uma tela se encontra dentro da outra, uma imagem se encontra dentro da outra, uma ficção se encontra dentro da outra – e uma nunca é a simples reprodução da outra, mas outra coisa.

A beleza da obra de arte, de um quadro, por exemplo: ela não será, segundo Stendhal, outra coisa senão a promessa de uma felicidade (em Magritte, 1978: 14 – “La Beauté n'est que la promesse d’un bonheur”). Diz-se “A”, a beleza visível, para se dizer “B”, a felicidade prometida, dizendo-se tanto “A” quanto “B”. Como determina a precisa definição de Aristóteles, “a metáfora é uma coisa no lugar de outra coisa”, ou seja: a metáfora é uma fábula de verdade no lugar da verdade que não sabemos e não podemos saber. Ou, como diria o pintor, enigmaticamente: “a poesia é um cachimbo” (Magritte, 1978: 59 – “La poésie est une pipe”).

O enigma retoma sua visualidade se lembramos as diversas versões da célebre pintura de René Magritte em que ele lembra ao espectador o fato óbvio, mas óbvia e frequentemente esquecido, de que a pintura de um cachimbo não é um cachimbo. Dois dos quadros da série do cachimbo são os mais conhecidos e os mais importantes: “La Trahison des Images”, pintado em 1928, e “Les Deux Mixtères”, pintado trinta e oito anos depois, em 1966.







Em ambos os quadros, as palavras comparecem não somente graças aos títulos significativos, mas também por meio de uma mesma frase completa: “Ceci n'est pas une pipe” – “Isto não é um cachimbo”. A presença de uma frase como esta dentro de uma pintura equivale a uma subversão estética de tal magnitude que repercute até hoje, gerando outros tantos quadros, artigos e livros. Mal comparando, “ceci n'est pas une pipe” corresponde ao verso de Carlos Drummond de Andrade, “tinha uma pedra no meio do caminho”, que também gerou reações e comentários suficientes para serem recolhidos em livro. O poeta brasileiro, porém, recorreu apenas a seu instrumento, a palavra, enquanto o pintor belga trouxe a palavra para dentro da sua pintura, dizendo que “isto”, um cachimbo, não era um cachimbo. Por isso Virgínia Figueiredo, em artigo provocantemente intitulado “Isto é um cachimbo” (2005), considera Magritte “o pintor das palavras e das coisas”.

A frase “isto não é um cachimbo”, debaixo de uma pintura convencional de um cachimbo, formula uma série de ironias ao mesmo tempo. Ironiza, por exemplo, o hábito de tomar as palavras pelas próprias coisas que as palavras designam, gerando equívocos em cascata. Ironiza, ainda, a reação frente às artes em geral daquele que o pintor mesmo chama de “l'homme de la rue”: o tal do “homem da rua” exige realismo rasteiro e não admite o exercício da imaginação nem ao artista nem a si mesmo. A ironia se estende se pensarmos que a frase “isto não é um cachimbo” poderia ter sido dita pelo próprio homem da rua, frustrado por não poder pegar o cachimbo do quadro para tirar umas baforadas. A frase “isto não é um cachimbo” ironiza, por fim, e dessa maneira múltipla, a pretensão absurda do realismo de mostrar a vida como ela é e as coisas como elas são.

A ironia toma nova forma com a capa que o pintor fez para o número 1 do London Gallery Bulletin, publicado em 1938: um personagem fuma um cachimbo que, antropomorfizado, fuma um cachimbo menor, o qual, por sua vez, também fuma um cachimbo menor ainda que, por seu turno, fuma outro cachimbo ainda menor, assim, ad infinitum, numa variação sagaz do mote meta e intraficcional das babuskhas tchecas, ou seja, da boneca dentro da boneca dentro da boneca.

A ironia dos quadros de 1928 e de 1966, no entanto, não reside somente nas imagens deles, porque se amplifica com os seus títulos. O quadro de 1928 tem por título “A traição das imagens”: esse título chama a atenção para a circunstância de as coisas não serem o que parecem ser e, em particular, para o fato, que deveria ser óbvio mas não é, de que a representação de uma coisa nunca será mais do que isto: a representação de uma coisa e não a própria coisa. Não sabemos como as coisas são em si, apenas como elas aparecem aos nossos limitados sentidos e à nossa limitada mente em dado momento limitado. Por isso, precisamos representar as coisas e precisamos nos reapresentar às coisas. Ora, as imagens das coisas nos traem antes, quando estas nos aparecem e mal as vemos (ou as vemos mal), e nos traem depois, quando as representamos e nos reapresentamos a elas: elas se tornam outras, jamais aquelas a que na verdade nunca tivemos acesso pleno.

O quadro de 1966 tem por título “Os dois mistérios”: esse título mostra que o pintor não ficou contente com um mistério “só” e resolveu duplicá-lo, décadas depois do primeiro quadro e de toda a repercussão que ele sofreu. Nesse quadro ele põe o primeiro quadro num cavalete e o pinta, fazendo babuskhamente um quadro do quadro, e ainda acrescenta outro cachimbo, solto no ar ou quiçá pintado na parede (por sua vez, pintada no quadro). Agora a frase “ceci n'est pas une pipe” está dentro do quadro que está dentro do outro quadro.

O primeiro mistério é o da traição das imagens, que são imagens das coisas e não as próprias coisas que imaginamos; o segundo mistério é o da explicitação da metaficção que, paradoxalmente, tanto revela quanto esconde o labirinto vertiginoso em que o pintor vem nos metendo há tanto tempo. O quadro dos dois mistérios (ou dos dois cachimbos) como que faz a figura do comentário irônico do próprio Magritte: “O famoso cachimbo... Como fui censurado por isso! E, entretanto... Vocês podem encher de fumo o meu cachimbo? Não, não é mesmo? Ele é apenas uma representação. Portanto, se eu tivesse escrito no meu quadro: ‘isto é um cachimbo’, eu teria mentido” (em Figueiredo, 2005: 447).

No entanto, aquele cachimbo no quadro não deixa de ser e de ser visto como um cachimbo, embora o seja “como nenhum cachimbo no mundo pode ser. Qualquer outro cachimbo no mundo será insuficiente para ser no sentido que só a obra de arte pode reivindicar ser” (Figueiredo, 2005: 456). Assim, os quadros do cachimbo não sossegam, forçando-nos a pensar a respeito e a partir deles. Pensar, por exemplo, por que um cachimbo e não outro objeto? Há outro quadro de Magritte, de 1964, com uma maçã no lugar do cachimbo e a frase “ceci n'est pas une pomme” no lugar da outra frase, mas foram as imagens do cachimbo e a primeira frase que se impuseram.

Duas explicações se podem levantar para a força do cachimbo: primeiro, trata-se de um símbolo fálico óbvio, pela forma, pelo uso e pela fumaça que exala; segundo, trata-se de um objeto absolutamente gratuito (como a arte, talvez), já que se fuma cachimbo para tão-somente se fumar cachimbo. As duas explicações seriam liminarmente rejeitadas por René Magritte, se ele não queria explicar nada nem aceitava quaisquer explicações para o que fazia: lhe interessava, apenas, pensar e pintar – criar pinturas e provocar pensamentos. Para quem tentasse interpretá-lo, ele gostava de retrucar ironicamente: “você é mais feliz do que eu” (em Gablik, 1970: 9 – “You are more fortunate than I am”).

Uma das interpretações que mais o incomodava era aquela que associava suas pinturas a sonhos ou pesadelos. Desta interpretação, aliás, padeciam todos os surrealistas. Magritte, porém, rejeitava a explicação do sonho como fonte de suas pinturas: “A palavra ‘sonho’ é sempre mal usada em relação à minha pintura. Nós certamente vemos o reino dos sonhos como respeitável – mas nossos trabalhos não são oníricos, ao contrário. Se ‘sonhos’ são pertinentes nesse contexto, o são de maneira muito diferente daquilo que temos quando dormimos. É uma questão antes de sonhos rebeldes e com vontade própria, nos quais nada é vago como aquelas sensações que nos escapam nos sonhos... Meus ‘sonhos’ não pretendem fazê-lo dormir, mas despertá-lo” (em Hammacher, 1985: 18).

Entretanto, dizer, como disse acima, que Magritte não aceita os ditames da pintura realista, não é apenas uma interpretação. Em entrevista a Suzi Gablik, o pintor afirma explicitamente: “O realismo é algo vulgar e ordinário, mas para mim a realidade não se alcança facilmente. Por isso eu digo ‘surrealista’ referindo-me à realidade mesma que percebemos em certos momentos privilegiados nos quais temos presença de espírito” (Magritte, 1978: 684 — no original em inglês: “Realism is something vulgar, ordinary, but for me reality is not easily attained. And that’s why I say surrealist to mean this reality we perceive at certain privileged moments when we have presence of mind”). Presença de espírito que teve o fotógrafo Chema Madox, em 1999, quando, em homenagem a Magritte, transformou um cachimbo em uma flauta e o fotografou.

O surrealismo de Madox, Magritte e tantos outros configura exatamente a reação da arte à anti-arte representada pelo realismo do dezenove: ao invés de fingirem que não estão fingindo, ou seja, que não estão fazendo literatura ou pintura, os surrealistas expõem-se fingindo através da conversa com sua própria linguagem, por exemplo colocando telas de pintura dentro de telas de pintura, como babuskhas bidimensionais e, ao mesmo tempo, multidimensionais. Forma-se, é claro, um paradoxo parecido com o célebre paradoxo do mentiroso: quando artistas como Magritte assumem que fingem (que fazem ficção) nas suas próprias obras, portanto não fingem que não estão fingindo, eles de fato acabam por não fingir – embora o continuem fazendo...

Há uma conhecida e divertida definição para o surrealismo que se adequa bem ao jogo visual de Magritte: “o encontro casual de um guarda-chuva com uma máquina de costura numa mesa de dissecação” (Paglia, 1998: 69). As coisas se tornam sempre outras coisas, se observadas atentamente. Em outras palavras, as coisas se tornam sempre metáforas, jamais elas mesmas. Ao não aceitar os ditames da pintura realista, Magritte não aceita o gosto estreito do “homem da rua”, cuja crença simplória toma “a representação do objeto pelo objeto mesmo, mostrando-se inepto para levar em conta ou pensar em outras percepções do objeto” (Magritte, 1978: 181 – “L'homme de la rue n'est sensible qu’à cette représentation picturale; la croyance simple qu’il a de prendre l'apparence d’un objet pour l’objet lui-même, le rend inapte à envisager ou à penser à d’autres perceptions de l'objet”). Não perceber que a palavra não é a coisa que designa e que a imagem não é o objeto que se pinta, em suma, não perceber como ficção as ficções entre as quais transitamos, seriam sintomas flagrantes de indigência não somente intelectual, mas também moral.

O enigma magritteano prova, para o pintor, sua ruptura “com o conjunto de absurdos costumes mentais que geralmente ocupam o lugar de um sentimento autêntico da existência” (Magritte, 1978: 109 — “Quant au mystère, à l'énigme que mes tableaux étaient, je dirai que c’était la meilleure preuve de ma rupture avec l'ensemble des absurdes habitudes mentales qui tiennent généralement lieu d’un authentique sentiment de l'existence”). Nossa própria felicidade depende “de um enigma unido ao homem e nosso único dever é o de tentar conhecê-lo” (Magritte, 1978: 113 — “notre bonheur dépend lui aussi d’une énigme attachée à l'homme et que notre seul devoir est d’essayer de la connaître”). Tentar, sim, mas sabendo da impossibilidade de afinal conhecer, porque “a imbecilidade consiste em crer que compreendemos o que não compreendemos” (Magritte, 1978: 433 — “L'imbécillité consiste à croire comprendre ce que l'on ne comprend pas”).

Ele busca sistematicamente, com seus quadros, “um efeito poético perturbador” (Magritte, 1978: 110 — “un effet poétique bouleversant”), para devolver à existência o sentimento de autenticidade que os costumes burgueses escamoteiam. Este sentimento é propriamente a dúvida, a ser protegida com unhas, dentes e metáforas pela arte — protegida contra a ciência, contra a escola e contra a sociedade “em geral”, ou seja, contra aqueles que recalcam a dúvida como se fosse possível saber o que não se sabe. Para alcançar aquele efeito poético e perturbador, o pintor contrasta seu traço, intencionalmente figurativo e acadêmico, com associações inusitadas que garantem seu conteúdo provocador.

Por isso, podemos considerá-lo um pintor pensador: “a marca do filósofo residia no ato de duvidar de tudo aquilo que fosse usualmente dado por suposto” (Gablik, 1970: 10 — “the mark of the philosopher is to doubt what is usually taken for granted”). Toda a sua vida foi pautada pelo solitário e gigantesco esforço de “derrubar nosso senso do familiar, sabotar nossos hábitos, pôr o mundo real à prova”, representando “uma revolta permanente contra os lugares comuns da existência” (Gablik, 1970: 9 — “to overthrow our sense of the familiar, to sabotage our habits, to put the real world on trial” [...] “it represented a permanent revolt against the commonplaces of existence”).

Por isso, é parte integrante de seus quadros, portanto, dos seus enigmas visuais, os títulos com que os batiza. Esses títulos provocam o debate e a conversação, mas não são de modo algum explicações, como enfatiza: “Os títulos dos quadros não são explicações e os quadros não são ilustrações dos títulos. A relação entre o título e o quadro é poética, isto é, esta relação só retém dos objetos algumas das características normalmente ignoradas pela consciência, mas pressentidas, às vezes, por ocasião de acontecimentos extraordinários que a razão não consegue esclarecer” (Magritte, 1978: 259 – “Les titres des tableaux ne sont pas des explications et les tableaux ne sont pas des illustrations des titres. La relation entre le titre et le tableau est poétique, c’est-à-dire que cette relation ne retient des objets que certaines de leurs caractéristiques habituellement ignorées par la conscience, mais parfois pressenties à l'occasion d’événements extraordinaires que la raison n'est point encore parvenue à élucider”).

O título poético “não nos informa de nada, mas deve nos surpreender e nos encantar” (Magritte, 1978: 263 – “Le titre poétique n'a rien à nous apprendre, mais il doit nous surprendre et nous enchanter”). O pintor belga não gosta de explicações e interpretações: elas se destinam a domesticar seus quadros, tirando-lhes toda a força provocativa. Tantas vezes, os títulos não são suficientes e ele precisa inserir palavras e frases dentro do quadro, como na longa série do cachimbo que não é um cachimbo, exercitando um outro tipo de metaficção interna, a saber, o diálogo entre a linguagem verbal e a linguagem visual.

No desenho das três mulheres, de 1929, ele sobrepõe ao púbis da primeira mulher, em pé, a palavra “arbre” (“árvore”); ao torso da segunda mulher, ainda em pé, a expressão “ombre portée” (“sombra projetada”); e finalmente, ao ventre da terceira mulher, sentada no chão, relaxada, a palavra “mur” (“muro”).

As interpretações possíveis não são simples nem fáceis, talvez porque o pintor não as deseje. Como as figuras femininas, desenhadas de maneira muito econômica, se encontram nuas, as expressões designariam tipos de mulher? Ou obstáculos para acesso ao sexo da mulher? Ou provas insofismáveis de que as palavras não se grudam às coisas, não importa o quanto se tente grudá-las? Ou é preciso tão-somente intrigar, sem que a intriga possa se desfazer? De todo modo, a relação entre a palavra e a coisa, entre a língua e a realidade, fica comprometida.

Na verdade, Magritte não aceita “nenhuma explicação do mundo, quer através do acaso quer do determinismo. Não sou responsável por minhas crenças. Nem mesmo sou eu quem decide que não sou responsável, e assim infinitamente. Sou obrigado a não crer. Não há nenhum ponto de partida” (Magritte, 1978: 646 — no original em inglês: “The problem lies precisely in not accepting any explanation of the world either through chance or determinism. I am not responsible for my belief. It is not even I who decides that I am not responsible – and so on to infinity – I am not obliged not to believe. There is no point of departure”).

Para criar, portanto para pensar, somos obrigados a não crer – é o que nos ensina o pintor. O pensador dentro do pintor, no caso, reconhece a necessidade de suspender não apenas a descrença, para fruir melhor a obra de arte, mas principalmente toda e qualquer crença. Essa suspensão, que desde os gregos chamamos de “epoché”, mostra-se em três níveis que, de certo modo, estamos percorrendo.

O primeiro nível é o da célebre suspensão amorosa da descrença, formulada há tempos por Samuel Coleridge: lemos um livro ou vemos um quadro “como se” o que lemos ou vemos fosse real, para podermos efetivamente viver a experiência estética, que não deixa de ser uma das experiências afetivas mais fortes por que podemos passar. Aceitamos então, provisoriamente, o “como se” como um “aqui e agora”.

No segundo nível, fazemos da leitura e da observação da arte nosso ofício; logo, precisamos também efetuar uma espécie de “suspensão da suspensão da descrença”, para entendermos o processo que não só faculta como provoca aquela suspensão da descrença e, em consequência, aquela experiência tão forte. Falha o teórico que pula o primeiro nível e não suspende a sua descrença (ele se torna uma espécie de crítico profissional, aquele que só gosta dos filmes que ninguém gosta), assim como falha se fica preso na primeira leitura, quando ainda não pode haver teoria.

Mas há ainda um terceiro nível, o da “suspensão da crença”: da crença nos mapas, nas explicações, nos sistemas, vale dizer: na teoria, na filosofia, na ciência. Esse exercício de suspensão da crença é vertiginoso mas necessário, se não quisermos reificar toda a teoria. Como seria essa suspensão? Primeiro, tenta-se pôr momentaneamente entre parênteses a crença de que o mundo natural existe; depois, tenta-se pôr também entre parênteses a crença de que as proposições decorrentes daquela crença sejam verdadeiras.

Falo aqui de uma espécie de redução fenomenológica: desistimos de apreender e de descrever a essência das coisas para tomá-las somente como aparecem a cada um de nós – e não necessariamente a todos nós. Em palavras kantianas, desistimos do númeno para nos deleitarmos com o fenômeno. No processo, deixamos de dirigir o nosso olhar para os objetos tomados em si mesmos em seu ser inacessível (a árvore, a sombra, o muro) para dirigir a atenção para os atos da consciência que nos permitem chegar até eles (nossa visão da árvore, nossa lembrança da sombra, nossa imaginação do muro). Chegamos à coisa, então, vivendo-a segundo seu sentido para nós, segundo o valor que lhe atribuímos e sobre o qual não negamos nossa responsabilidade.

Trata-se de instaurar um regime crítico de pensamento que é seu próprio fim. Trata-se de, metafilosoficamente, pensar sobre o próprio pensamento. Ao contrário do que possa parecer, esse regime surge menos de uma teoria ou de uma filosofia bem amarrada do que da arte de um de um Magritte. Esse regime abre campo para a epoché, ou seja, para aquela espécie de eclusa reflexiva que bloqueia a atitude ingênua e permite, ao olhar, olhar o próprio olhar.

Olhar o próprio olhar, no entanto, é impossível, a menos que pensemos em semelhante gesto como um gesto regulador, posto no horizonte para ser perseguido calmamente: sem esperança de alcançar, sem parar de andar na sua direção. Ora, na arte, a metaficção, que faz ficção da ficção, representa justamente a tentativa de olhar o próprio olhar. Toda a obra de René Magritte, como estamos vendo, brinca com essa possibilidade, ou melhor, com essa impossibilidade de olhar o próprio olhar.

Em “A Perspicácia”, de 1936, ele não pintou a si mesmo olhando para um ovo, mas pintando na tela (dentro da tela) um belo pássaro alçando voo? E depois não se deixou fotografar pintando a tela em que pintava a si mesmo pintando um ovo, embora, na tela dentro da tela (que por sua vez estava dentro da foto), porém, continuássemos a ver o belo pássaro alçando voo? Pois fez isso tantas outras vezes, a ponto de intitular uma de suas telas de “Tentative de l'Impossible” (1928 — “Tentando o Impossível”).

No quadro, um pintor (sempre parecido com o pintor do pintor, isto é, com Magritte) pinta um belo nu de mulher. Mas nem pinta sobre uma tela nem sobre a pele de uma mulher “de verdade”: ele pinta no ar, como que criando a mulher em três dimensões, com seu pincel e com sua paleta. A criação tridimensional da mulher é naturalmente ilusória, uma vez que o quadro continua a se nos mostrar em duas dimensões apenas. No entanto, essa ilusão promove um diálogo metaficcional da pintura com a escultura, reforçando a circunstância, também metaficcional, de um pintor pintar um pintor pintando, ou melhor: pintar a si mesmo pintando uma mulher. O diálogo, todavia, não se dá apenas com a escultura em geral, mas também com determinada escultura mítica: a de Galateia.

Conta a lenda que Pigmalião, rei de Chipre e escultor renomado, se apaixonou por uma de suas estátuas de mármore, a que chamou Galateia. Louco de desejo por ela, suplicou a Afrodite que lhe concedesse esposa igual à sua obra. Afrodite atende o seu desejo e anima a própria estátua. Pigmalião casa-se com Galateia e tem com ela uma filha, Pafos (Brandão, 1991: 275). Magritte retoma portanto o mito do amor impossível de Pigmalião e pinta um pintor pintando uma bela mulher nua, como se a estivesse criando para si mesmo.

Para completar a “brincadeira”, de maneira semelhante ao que voltaria a fazer com o quadro do pintor pintando um ovo, na verdade um pássaro, Magritte deixa-se fotografar pintando não essa tela, mas sim sua própria mulher, que muitas vezes posou para ele.

Assumia-se assim como um novo Pigmalião, criando vida do nada e da matéria inerte – sem deixar de proteger e preservar o seu enigma original.













Referências Bibliográficas



BRANDÃO, Junito (1991). Dicionário Mítico-Etimológico: volume II. Petrópolis: Vozes, 1997.

FIGUEIREDO, Virgínia (2005). “Isto é um cachimbo”. In: Revista Kriterion nº 112. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia da UFMG, dezembro de 2005.

GABLIK, Suzi (1970). Magritte. London: Thames & Hudson, 2003.

HAMMACHER, Abraham Marie (1985). Magritte. Translated by James Brockway. New York: Abrams, 1995.

MAGRITTE, René (1978). Écrits complets. Paris: Flammarion, 2001.

PAGLIA, Camille (1998). Os pássaros de Hitchcock. Tradução de Jussara Simões. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.




http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a448.htm

Nenhum comentário: