segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

CRENÇA NO FIM DO MUNDO



Especial

O fim do mundo em 2012

Os planetas, as estrelas, o calendário maia e, é claro, uma superprodução de Hollywood reavivam a ideia aterrorizante do apocalipse e levantam uma questão: por que continuamos a acreditar em profecias finalistas apesar de todas elas terem fracassado redondamente?


André Petry, de Nova York



O escritor Patrick Geryl tem 54 anos, escreveu uma dezena de livros, nunca se casou, não tem filhos e atualmente anda muito ocupado preparando-se para o fim do mundo. Na semana passada, esteve em Sierra Nevada, no sul da Espanha, acompanhando uma equipe de televisão do Canadá, numa vistoria às habitações que estão sendo construídas ali. São ocas de cimento capazes de resistir ao cataclismo que, acredita Geryl, destruirá o planeta Terra no dia 21 de dezembro de 2012. "Queremos um lugar a uns 2 000 metros acima do nível do mar", explica. Ele e seu grupo pretendem levar 5 000 pessoas para um local que resistirá aos horrores do apocalipse. Será o último dia do resto da humanidade, acredita Geryl, um dia para o qual ele se prepara desde a adolescência, quando, aos 14 anos, na histórica cidade belga de Antuérpia, começou a se interessar pelo assunto lendo livros de astronomia. Ao voltar da Espanha, Geryl ocupou-se em relacionar os itens que devem ser levados para o bunker antiapocalipse. Na lista coletiva, havia 348, faltando ainda incluir os medicamentos. Na de uso individual, 86.

O ano de 2012 tornou-se o centro de gravidade do fim do mundo por uma confluência de achados proféticos. Primeiro, surgiu a tese de que a Terra será destruída com a volta do planeta Nibiru em 2012. Depois, veio à tona que o calendário dos maias, uma das esplêndidas civilizações da América Central pré-colombiana, acaba em 21 dezembro de 2012, sugerindo que se os maias, tão entendidos em astronomia, encerraram as contas dos dias e das noites nessa data é porque depois dela não haverá mais o que contar. Posteriormente, apareceram os eternos intérpretes de Nostradamus e, em seguida, vieram os especialistas em mirabolâncias geológicas e astronômicas com um vasto cardápio de catástrofes: reversão do campo magnético da Terra, mudança no eixo de rotação do planeta, devastadora tempestade solar e derradeiro alinhamento planetário em que a Terra ficará no centro da Via Láctea – tudo em 2012 ou em 21 de dezembro de 2012.



Com tantas sugestões, a profecia ganhou as ruas. No dia 13 de novembro, terá lugar a estreia mundial de 2012, uma superprodução de Hollywood que conta a saga dos que tentam desesperadamente sobreviver à catástrofe final. No site da Amazon, há 275 livros sobre 2012. Nos Estados Unidos, já existem lojas vendendo produtos para o apocalipse. Os itens mais comercializados são pastilhas purificadoras de água e potes de magnésio, bons para acender o fogo. É sinal de que os compradores estão preocupados com água e fogo, numa volta ao tempo das cavernas. Na Universidade Cornell, que mantém um site sobre curiosidades do público a respeito de astronomia, disparou o número de perguntas sobre 2012. Há os que se divertem, pois não acreditam na profecia. Entre os que acreditam, os sentimentos vão da tensa preocupação, como é o caso de Patrick Geryl, autor de três livros sobre 2012, todos publicados no Brasil, até o pavor incontrolável. O fim do mundo é uma ideia que nos aterroriza – e, nesse formidável paradoxo que somos nós, também pode ser a ideia que mais nos consola. Por isso é que ela existe.
No inventário dos fracassos humanos, talvez não haja aposta tão malsucedida quanto a de marcar data para o fim do mundo. Falhou 100% das vezes, mas continua a se espalhar, resistindo ao tempo, à razão e à ciência. As tentativas de explicar esse fenômeno são uma viagem fascinante pela alma, pela psique, pelo cérebro humano. Uma das explicações está no fato de que o nosso cérebro é uma máquina programada para extrair sentido do mundo. Assim, somos levados a atribuir ordem e significado às coisas, mesmo onde tudo é casual e fortuito. As constelações no céu, por exemplo, são uma criação mental para organizar o caos estelar. Ao enxergarmos as constelações de Órion ou Andrômeda, encontramos ordem e sentido. O dado complicador é que a vida, no céu e na terra, deve muito mais às contingências do acaso do que ao determinismo. O espermatozoide que fecundou o óvulo que gerou Albert Einstein foi um produto do acaso, resultado de uma disputa entre espermatozoides resolvida por milésimos de segundo. Assim como aconteceu, poderia não ter acontecido.
Recuando no tempo, a própria humanidade, analisada do ponto de vista científico, é fruto do acaso. Por um acidente, um peixe pré-histórico desenvolveu barbatanas que, à imitação de pernas ou patas, lhe permitiram enfrentar a gravidade da Terra e, assim, por acaso, viabilizou o desenvolvimento de vertebrados fora da água. Bilhões de anos depois, cá estamos nós, bípedes, inteligentes, comendo sorvete de morango, descobrindo a estrela mais antiga e nos deliciando com Elizabeth Taylor deslumbrante como Cleópatra. Tudo por acaso. A preponderância do aleatório sobre o determinado pode dar a sensação de desesperança, de que somos impotentes diante de todas as coisas. Talvez nisso residam a beleza e a complexidade da vida, mas o fato é que o cérebro está mais interessado em ordem do que em belezas complexas. Por isso, quando não vê significado nas coisas naturais, ele salta para o sobrenatural. "Nascemos com o cérebro desenhado para encontrar sentido no mundo", diz o psicólogo Bruce Hood, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, autor de Supersense: Why We Believe in the Unbelievable (Supersentido: Por que Acreditamos no Inacreditável). "Esse desenho às vezes nos leva a acreditar em coisas que vão além de qualquer explicação natural."
O achado de Hood foi descobrir que as crenças talvez não sejam fruto nem da religião nem da cultura, mas uma expressão de como o cérebro humano trabalha. É o que ele chama de "supersentido". É o supersentido que nos leva a bater na madeira, dar valor afetivo a um objeto ou conversar com Deus. A religião seria uma criação mental através da qual o cérebro atende a sua necessidade por sentido. O apocalipse, nesse caso, é uma saída brilhantemente engenhosa. Explica duas questões que atormentam a humanidade desde sempre: o significado da vida e a inevitabilidade da morte. Somos a única espécie com consciência da própria morte e, no entanto, não sabemos o significado da vida. Afinal, por que estamos aqui? A pergunta, em si, revela nossa busca por sentido, devido à nossa dificuldade de conviver com a possibilidade de que, talvez, não estejamos aqui por alguma razão especial. O apocalipse é uma resposta. Está descrito nos seus mínimos e horripilantes detalhes no Livro do Apocalipse, escrito pelo evangelista João, por volta do ano 90 da era cristã, quando estava preso, perseguido pelo Império Romano.

O começo do fim do mundo, diz João, será anunciado por sinais tenebrosos: um céu negro, uma lua cor de sangue, estrelas desabando sobre a Terra e uma sucessão de desastres varrendo o planeta na forma de terremotos, inundações, incêndios, epidemias. O Anticristo então dominará a Terra por sete anos, ao fim dos quais Jesus Cristo descerá dos céus com um exército de santos e mártires – e vencerá Satã, a besta. Depois de 1 000 anos acorrentado, Satã conseguirá se libertar e forçará Jesus Cristo a travar uma segunda batalha, a terrível batalha do Armagedom. Derrotado Satã, todos nós, vivos e mortos, nos sentaremos no banco dos réus do tribunal divino. Os bons irão para o paraíso celestial. Os maus arderão no fogo eterno. É uma narrativa tão magicamente escatológica que Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos, a chamou de "delírio de um maníaco". Bernard Shaw, o grande teatrólogo irlandês, disse que era o "inventário das visões de um drogado". Delírio ou visões, o Livro do Apocalipse explica tudo. O professor Ralph Piedmont, do Loyola College, em Maryland, especialista em psicologia da religião, afirma: "O Apocalipse de João explica a morte, ao informar que vamos ressuscitar, e dá sentido à vida, ao dizer que é uma provação".
Subsidiariamente, o apocalipse atende a outra necessidade humana, a de acreditar num mundo regido por uma ordem moral. Os historiadores atribuem o surgimento da visão apocalíptica ao persa Zoroastro, ou Zaratustra, que viveu uns 1 000, talvez 1 500 anos antes de Cristo. Ele foi o primeiro a falar de uma batalha cósmica entre o bem e o mal, mais tarde aproveitada pelos profetas Ezequiel, Daniel e, principalmente, João. "Num mundo em que, com frequência, os bons sofrem e os maus prosperam, a promessa de um julgamento moral é um consolo profundo", diz Michael Barkun, professor de ciência política da Universidade de Syracuse, que estuda a relação entre violência e religião. Eis por que o fim do mundo aterroriza mas também pode nos consolar. Nem sempre o apocalipse vem numa embalagem religiosa. A profecia de 2012 começou com base em eventos astronômicos e calendários antigos. Só depois recebeu a adesão de seitas espiritualistas e cristãs, mas originalmente 2012 é, digamos, um fim do mundo pagão. Se não é um fim com prêmio aos bons e punição aos maus, então por que acreditamos em profecias que nunca dão certo?
A explicação começou a surgir nos anos 50, quando o brilhante psicólogo americano Leon Festinger (1919-1989) resolveu testar uma hipótese revolucionária: a de que, diante de uma profecia fracassada, os fiéis não desistem de sua crença, mas, ao contrário, se aferram ainda mais a ela. Festinger e seus colegas se infiltraram numa seita do fim do mundo e descobriram exatamente o que imaginavam. O grupo era formado por quinze pessoas e liderado por uma dona de casa de Michigan, Marion Keech, que fora informada por extraterrestres de que o mundo acabaria com uma inundação no dia 21 de dezembro – olha a data aí de novo – de 1954. Antes da catástrofe final, Marion e seguidores seriam resgatados pela nave-mãe e levados para um lugar seguro. Na data e hora marcadas, eles se reuniram para esperar o resgate, e não apareceu nave nenhuma. Passou uma hora, e nada. Duas horas, e nada. Eles estavam tensos e preocupados, alguns começando a dar sinais de descrença naquilo tudo, até que, quase cinco horas depois, Marion foi novamente contactada pelos extraterrestres com uma novidade redentora: o grupo ali reunido, com o poder de sua crença, espalhara tanta luz que Deus cancelara a destruição do mundo. Os membros reagiram com entusiasmo. Haviam encontrado um meio de acreditar que a profecia, afinal, estava correta.
O caso foi contado no livro When Prophecy Fails (Quando a Profecia Falha) e se tornou um dos fundamentos do que veio a se chamar teoria da dissonância cognitiva. É a inclinação que temos para reduzir o profundo desconforto provocado por duas informações conflitantes – no caso, a crença de que o mundo vai acabar e a evidência incontornável de que o mundo não acabou. Há exemplos mais rotineiros, como o sujeito que sabe que o cigarro pode matar e, no entanto, fuma dois maços por dia. Tem-se uma "dissonância cognitiva", que precisa ser resolvida: ou o sujeito para de fumar ou racionaliza que o cigarro, no fundo, acalma, emagrece, seja o que for. Meio século depois, a tese de Festinger será ainda válida para explicar a crença inabalável em profecias finalistas? "É, ainda, a melhor explicação psicológica", diz Daniel Gilbert, da Universidade Harvard, autor de um trabalho pioneiro sobre como enxergamos o futuro – com lupa, diz ele, sempre dando a sucessos ou fracassos importância muito maior do que efetivamente terão quando (e se) acontecerem.
As profecias do apocalipse são um desastre como previsão do futuro, mas excelentes como alegorias do presente. A coleção de afrescos e pinturas clássicas que retratam o Juízo Final, como a obra-prima de Michelangelo na Capela Sistina, reflete o temor do tribunal divino e o domínio da Igreja Católica de então. Depois da II Guerra, os filmes de Hollywood, grandes difusores da catástrofe final, passaram a enfocar o fim do mundo como resultado de uma guerra nuclear ou de um monstro deformado pela radioatividade. Estavam narrando as aflições dos americanos com a bomba de Hiroshima e Nagasaki e a chegada da corrida armamentista com a União Soviética. É o momento em que o apocalipse começa a ter duas fontes – a religião e a ciência. Nos anos 60, com as profundas transformações varrendo os EUA, da Guerra do Vietnã à revolução sexual, do advento do computador ao movimento dos direitos civis, dos Beatles a Woodstock, o apocalipse mudou de lugar. "O livro da revelação deixou o gueto cristão e entrou no coração da política americana e da cultura popular", escreve Jonathan Kirsch em A History of the End of the World (Uma História do Fim do Mundo), um ótimo inventário do apocalipse.


Desde os anos 50, cada década tem pelo menos uma dúzia de filmes apocalípticos dignos de nota, de Godzilla a Apocalypto, de O Planeta dos Macacos a Matrix, de O Bebê de Rosemary a Presságio. Eles sempre narram algo do seu tempo. Há estudiosos que acreditam que mesmo o Livro do Apocalipse teria sido uma resposta às perseguições que os cristãos sofriam no Império Romano – e a besta, o Anticristo, o Satã seriam Nero, o imperador que tocou fogo em Roma. Como os apocalipses tomam a forma de sua época, o Anticristo se atualiza. Na II Guerra, era Adolf Hitler. Hoje, é Osama bin Laden. Isso é claro nos EUA, cuja condição de potência acaba por difundir suas neuroses e seus achados para o mundo todo. O apocalipse na cultura? Antes, eram os hippies com sua percepção extrassensorial e drogas alucinógenas. Depois, no ano 2000, foi o tecnoapocalipse, na forma do bug do milênio. O apocalipse na política? Antes, era o Exército Vermelho. Agora, é o terrorismo islâmico. Como disse Eric Hoffer (1902-1983), que passou a vida como estivador e filósofo: "Movimentos de massa podem surgir e se espalhar sem a crença num deus, mas nunca sem a crença num diabo".
Nenhuma das hipóteses do fim do mundo em 2012 mencionadas nesta reportagem faz sentido. O planeta Nibiru nem existe. A civilização maia, cujo auge se deu entre 300 e 900 da era cristã, tinha três calendários: o divino, o civil e o de longa contagem, que termina em 2012. "Mas os maias nunca afirmaram que isso era o fim do mundo", diz David Stuart, da Universidade do Texas, considerado um dos maiores especialistas em epigrafia maia. Uma mudança no eixo de rotação da Terra é impossível. "Nunca aconteceu e nunca acontecerá", garante David Morrison, cientista da Nasa, agência espacial americana. Reversão do campo magnético da Terra? Acontece de vez em quando, de 400 000 em 400 000 anos, e não causa nenhum mal à vida na Terra. Tempestade solar? Também acontece e em nada nos afeta. Derradeiro alinhamento planetário em que a Terra ficará no centro da galáxia? Não haverá nenhum alinhamento planetário em 2012, e, bem, quem souber onde fica "o centro" da nossa galáxia ganha uma viagem interplanetária. Mas Patrick Geryl, que se prepara para o fim do mundo, está certo de que tudo termina em 2012. E se não terminar? Geryl pensa, olha para o alto e responde: "Não existe essa hipótese". Ele e seu grupo encontrarão uma boa explicação quando o dia raiar em 22 de dezembro de 2012. Afinal, é preciso se preparar para um novo fim do mundo.

Nota de rodapé

Os dez dias que sumiram

O calendário maia, dizem os apocalípticos, prevê o fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 2012. Calendários, no entanto, são excelentes instrumentos para orientar sobre o compromisso da próxima quarta-feira, mas são um embuste para prever o futuro. As diversas civilizações – não só os maias, mas os egípcios, os chineses – criaram os próprios calendários, uns com base no Sol, outros com base na Lua, uns mais longos, outros mais curtos, mas todos sempre foram expressão da inclinação humana de atribuir ordem ao caos. Com o calendário, criamos a sensação de ordenar os dias, os meses e os anos num sistema cronológico racional e matematicamente preciso. Só que a natureza não é assim. Num delicioso livro lançado às vésperas do ano 2000, O Milênio em Questão, no qual se baseia este texto, o grande paleontólogo americano Stephen Jay Gould (1941-2002) escreveu: "A natureza, aparentemente, pode fazer um esplêndido hexágono, mas não um ano com um belo número par de dias ou rotações lunares". E, com o humor que lhe era peculiar, acrescentou: "A natureza se recusa teimosamente a trabalhar com relações numéricas simples justamente naquilo em que sua regularidade seria mais útil para nós".
Ou seja: os ciclos naturais dos dias, meses e anos não são redondos, pares perfeitos. São frações, números quebrados, e aí começa um problemão. Um ano – tempo que a Terra leva para dar uma volta completa em torno do Sol – não dura 365 dias. Dura 365 dias e algumas horas. Para facilitar a conta, arbitramos que um ano dura 365 dias e seis horas, ou um quarto de dia. Mas, como não podemos ter um quarto de dia, a cada quatro anos temos o ano bissexto, com 366 dias, o que recoloca nosso calendário em sintonia com o ano solar. Porém, a natureza, na sua magistral indiferença para com nossos números inteiros, na realidade não faz um ano de 365 dias e seis horas. São 365 dias e 5 horas, 48 minutos e 45,97 segundos! Isso quer dizer que o acréscimo do 366° dia cobre o descompasso ocorrido em cada quatro anos, mas imprecisamente. Como o tal descompasso não era de exatas 24 horas – era de 23 horas, 15 minutos e 3,88 segundos –, o ajuste feito pelo ano bissexto ainda nos deixa com um pequeno atraso em relação à natureza: um atraso de 44 minutos e 56,12 segundos a cada quatro anos. É pequeno, mas aumenta com o tempo. Em vinte anos, o atraso soma quase quatro horas. É tolerável. Em 100 anos, passa de dezoito horas. Começa a complicar. À medida que vai avançando, passa a embaralhar as estações do ano, a época certa para plantar, para colher, para pescar. Vira um, digamos, apocalipse.
Em 1582, o calendário da época, que vinha desde os tempos do Império Romano, já acumulava um atraso de dez dias em relação ao ano solar. Era demais, inadmissível. O papa Gregório XIII convocou então uma comissão de matemáticos para dar uma solução ao problema. Chegou-se a uma saída formidável. Com seu poder incontrastável sobre o destino da humanidade e do universo, o papa decretou o sumiço dos dez dias. Simples assim. Riscou fora. A humanidade foi dormir em 4 de outubro e acordou em 15 de outubro. O período de 5 a 14 de outubro de 1582 não existiu, jogando algumas dúvidas para as calendas gregas. O que aconteceu com quem fazia aniversário no período suprimido? E quem tinha conta para pagar num dia que sumiu? Pagou juros? Queixou-se ao papa? Resolvida a diferença de dez dias, a comissão achou outras soluções criativas. Para evitar que o descompasso dos anos bissextos voltasse a se alargar a longo prazo, estabeleceu que a cada século múltiplo de 100 – 1800, 1900, 2000, por exemplo – não haveria ano bissexto. Excelente. Mas a retirada do 366° dia seria provisoriamente excelente porque criaria um desequilíbrio lá adiante. Então, inventou-se outra compensação: de quatro em quatro séculos, o ano bissexto volta.
Parece confuso, mas é assim que funciona até hoje: de 100 em 100 anos, cai o ano bissexto; de 400 em 400, reinstala-se o ano bissexto. Com esses avanços e recuos, somas e diminuições, nosso calendário consegue dançar num movimento parecido com o balé irregular dos ciclos naturais. (Não é idêntico porque o calendário gregoriano ainda se distancia do ano solar em 25,96 segundos. É irrisório, leva mais ou menos 2 800 anos para chegar a um dia inteiro, mas perfeito é que não é.) Diante de tantos ajustes, a velha e boa folhinha de parede é um medidor preciso para o compromisso de quarta-feira, mas, com suas imprecisões em relação aos eventos astronômicos, não é exatamente boa para embasar previsões futuras.
Para fugir das confusões do ano solar, há quem prefira as previsões com base no mês lunar – tempo que a Lua leva para dar uma volta completa em torno da Terra. Na verdade, não resolve nada. Apenas se troca de problema. Para facilitar nossos cálculos, arbitramos que a Lua leva 29 dias e meio para dar a volta na Terra. Mas, na realidade, a Lua leva, precisamente, 29,53 dias – de novo, a caprichosa fração da natureza. Assim, se um ano tem doze meses e cada mês corresponde a uma lunação, a conclusão matemática é que um ano tem doze lunações. Era para ser, mas não é. As doze lunações, indiferentes à ordem humana, não levam 365 dias para se realizar, mas somente 354 dias, uma debochada diferença de onze dias em relação ao ano solar...! Por isso, é preciso que... Bem, diga-se apenas que é preciso recorrer à inventividade humana para conciliar o calendário e o universo. Fica claro que qualquer profecia anunciada com base em calendários, solares ou lunares, maias ou gregorianos, é mais ou menos uma brincadeira, pois nossas fórmulas numéricas, tão regulares e ordenadas, não traduzem a exata natureza dos eventos astronômicos, tão caóticos e irregulares. É quase como querer tirar a raiz quadrada do mar.


 http://veja.abril.com.br/041109/fim-do-mundo-2012-p-090.shtml

TEMA: VIOLÊNCIA

VIOLÊNCIA E MAL ESTAR NA SOCIEDADE

Violência e indiferença: duas formas de mal-estar na cultura


Caterina Koltai
Psicanalista, Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP


Miséria, violência e exclusão estão definitivamente instadas no campo social. Basta circular por qualquer metrópole do mundo — e São Paulo não foge à regra, muito pelo contrário — para encontrarmos a cada esquina, em todos os lugares públicos, homens, mulheres e crianças miseráveis mendigando por um pouco de comida, quando não partindo para a agressão para conseguir sua dose de crack. Violência da sociedade contra eles, violência deles contra a sociedade.
Seus corpos provocam em nós sentimentos diversos: medo, angústia, nojo, culpa, indiferença ou revolta, segundo o passante e seu humor do dia. A presença desses excluídos não só perturba nossa consciência como também nossos ideais sociais, já que nosso narcisismo nos leva a imaginar, erroneamente certo, nossa sociedade fundada sobre a justiça e a racionalidade.
É principalmente sobre essas reações afetivas provocadas pelo encontro cotidiano com a violência e miséria, efeitos do mal-estar na civilização sobre nossa subjetividade, que se pretende aprofundar neste artigo, principalmente porque a impressão é de que, cada vez mais, nossas reações são de medo e angústia, quando não de nojo, e cada vez menos de culpa e revolta. E isso preocupa, ou melhor, assusta.
Essa passividade e incapacidade de revolta, assim como a falta de projetos, coletivos ou individuais, parecem ser as principais características desse final de século melancólico. Nesse momento de globalização das economias e da crise que ela acarreta, estamos assistindo a um recrudescimento da violência e do religioso. É quando os indivíduos se sentem inseguros, lembra R. Zygouris (1998), quando seu tempo subjetivo não pode ser projetado num futuro — o projeto sendo aquilo que vem se interpor entre o tempo presente e a morte certa — em que discursos racistas, fundamentalistas vêm se inserir onde faltam projetos de vida capazes de enlaçar o singular e o social.
Violência e apatia em todas as suas formas são, a nosso ver, os sintomas contemporâneos do mal-estar na civilização, tal qual definido por Freud, em sua obra de 1929, em que trata do trágico da condição humana, e que, não por acaso, é contemporânea do crack da bolsa de Nova York e da ascenção do nazismo na Alemanha. Na opinião de Peter Gay, é a obra mais sombria de Freud, aquela onde o autor encara a questão da miséria humana — o que talvez explique o súbito interesse que vem despertando nesse final de milênio, após de ter sido, durante muito tempo, considerada uma obra menor.
Psicanalistas, sociólogos e cientistas políticos parecem ter redescoberto Mal-estar na civilização e acreditamos que o próprio título deste número da revista São Paulo em Perspectiva não seja estranho a este fato.
A verdade é que Freud nunca aceitou que a teoria psicanalítica fosse reduzida a um mero ramo da medicina, razão pela qual, ao longo de toda sua obra, tentou alargar o campo de competência de sua descoberta. Sempre reivindicou um direito de vista sobre as ciências do espírito invocando a arte, a história das civilizações e religiões, mitologia, literatura e filosofia quando não a própria sociologia e pedagogia. No entanto, nunca se referiu explicitamente à política, embora "sua preocupação com a coisa política, quer por meio de alusões, metáforas ou perfifrases, seja por assim dizer onipresente" (Plon, 1998). A política diz respeito ao coletivo e Freud sempre trabalhou a articulação entre singular e coletivo, desde Totem e Tabu, de 1914 até Moisés e o Monoteísmo, de 1939, mas principalmente em Mal-estar na civilização.
Com Totem e Tabu, Freud inaugura sua teoria do fundamento do social e da cultura. E o que diz ele? Afirma que a sociedade nasceu de um crime do qual a humanidade não se libertará jamais: o assassinato do pai da horda primitiva, cometido pelos filhos em conjunto, ao qual seguiu-se a guerra civil entre os irmãos de uma mesma horda. Esse primeiro crime consistiu no mero prelúdio de uma série de assassinatos que parecem ser o corolário normal da existência humana em sociedade.
Precisamos admitir, infelizmente, admitir que tal acontecimento não pertence apenas à história, mas continua presente em nossos dias, no cerne de nossas preocupações atuais, até porque os meios colocados a serviço da guerra são, hoje em dia, infinitamente mais destrutivos que aqueles dos quais dispunham nossos antepassados. Esse primeiro conflito fratricida, seja qual for seu caráter mítico, longe de estar resolvido ou esquecido, continua em ação. Não se trata em absoluto de um momento histórico ultrapassado, mas de uma fantasma estruturante, comum a todos os mortais. Freudianamente falando, a humanidade nasce de um assassinato e o crime é fundador. Logo, não há como a violência não estar no âmago do humano, cada um de nós carregando em si o germe da guerra civil.
Visão certamente pessimista, que só foi se aprofundando no decorrer da obra freudiana. É assim que em Reflexões para os tempos de guerra e de morte, de 1915 — escrito enquanto seus dois filhos se encontravam na frente de batalha — ele apela para a metapsicologia para refletir sobre os horrores da Primeira Guerra Mundial, catástrofe que de fato inaugurou o século XX, e se pergunta se a humanidade constituída no crime e através do crime tem como não se dirigir inevitavelmente para a destruição.
Constata que o homem, desde que existe, nunca cessou de fazer guerras e de exterminar seu próximo. O homem primitivo, diz ele, levava a morte tão a sério que, quando se tratava do estrangeiro inimigo, a morte era bem-vinda e desejava-se provocá-la. Ser apaixonado, pior e mais cruel que os animais, nada o impedia de matar e devorar outros seres de sua mesma espécie. Quanto a nós, somos descendentes de ancestrais sanguinários, e, se renunciamos a tais pendores, foi única e exclusivamente porque fomos forçados pela civilização. Os valores morais da civilização não devem nos fazer esquecer a verdadeira natureza do homem, diz Freud, a de que o ser humano não é nem bom nem ruim, é ambivalente, coabitando nele ódio e amor, altruísmo e egoísmo.
O que não impede de nos perguntarmos por que em certos momentos da história prevalecem momentos de amor e altruísmo e, em outros, de ódio e egoísmo. E é justamente isto que nos ocorre: se diante desse miserável que encontramos temos a opção de estender a mão ou subir o vidro do carro e agredi-lo, por que cada vez mais essa segunda opção vem se generalizando e a primeira escasseando?
Talvez seja o próprio Freud que nos dê a resposta, em um livro escrito quase ao mesmo tempo que o anterior. É assim que em Luto e melancolia, de 1915, chama nossa atenção para o fato de que tanto o luto quanto a melancolia têm sua origem numa perda sofrida pelo indivíduo. A diferença reside no fato de que enquanto o enlutado paulatinamente assimila a ausência do objeto amado e retorna à conduta normal, o melancólico é incapaz de se livrar de seu tormento. Retomando uma hipótese de J. Hassoun (1995) acreditamos que essa indiferença que caracteriza nosso final de século pode ser uma manifestação melancólica da impossibilidade de fazer o luto de certas ideologias e sonhos de fraternidade que alimentaram, em parte, o homem do século XX.
Em Futuro de uma ilusão, de 1927, mostra que a cultura e a civilização preenchem uma função primária de interdições que se exercem de maneira privilegiada sobre três desejos instintivos: assassinato, canibalismo e incesto. Tais imposições são progressivamente internalizadas, o que não impede que os desejos oriundos desses três instintos sejam sempre suscetíveis de obter realização — Mal-estar na civilização começa onde o anterior terminou, com uma discussão com Romain Rolland em torno do sentimento religioso. Logo a seguir, Freud se pergunta o que querem, afinal, os homens? E tem a resposta na ponta da língua: os homens, afirma, aspiram à felicidade, embora tudo pareça se opor a tal programa, embora a infelicidade, devida à dor do corpo, à hostilidade do mundo exterior e, principalmente, à insatisfação decorrente do relacionamento com os outros, seja muito mais freqüente.
Ele não se contenta, no entanto, com a simples constatação e tenta analisar as mediações que o esforço humano elaborou coletivamente para compensar o desamparo — Hilflosigskeit como ele o chama —, entre elas o trabalho, a magia, a arte, a religião e o conhecimento científico. A função de tais mediações é, segundo ele, assegurar a regulamentação da relação do homem com a natureza e com seus semelhantes.
No capítulo III de Mal-estar na civilização, Freud levanta a hipótese de que o sofrimento humano poderia derivar, entre outros motivos, da insuficiência dos dispositivos que regulamentam a relação dos homens entre si. Coloca, assim, o problema do sofrimento humano frente a frente com o conjunto do campo simbólico. A insuficiência dos dispositivos não decorre de uma imperfeição de uma faculdade que figuraria no inventário humano, mas da ambivalência inerente ao campo simbólico. Mais do que tais dispositivos, o que está em jogo é a própria necessidade dos humanos em ter de recorrer a eles. Essa ambivalência é própria do humano enquanto tal. No campo dos fenômenos de civilização, é essa ambivalência que sugere a Freud a seguinte formulação: em decorrência de suas próprias invenções, o homem contemporâneo vê-se às voltas com uma extrema dependência e um perigo ameaçador.
Parece que o sujeito humano é incapaz de inventar dispositivos que aliviem seu sofrimento. O mal-estar no plano coletivo é o resultado da ambivalência dos sujeitos com relação àquilo que os humaniza. Mal-estar na civilização termina com uma advertência: nunca o destino do gênero humano esteve tão ameaçado, na medida em que jamais os indivíduos estiveram tão aptos a se exterminarem uns aos outros.
É ainda nesta obra que Freud aprofunda uma das três fontes do sofrimento humano: aquela que nasce do caráter insatisfatório das relações humanas, em virtude da universalidade da hostilidade dos homens uns em relação aos outros e da crueldade inerente ao ser humano.
Retomando o célebre Homo homini lupus, Freud refere-se explicitamente a Hobbes e chama a atenção para o fato de que, no cerne do desejo humano, é preciso reconhecer uma agressividade. Não se trata simplesmente de uma reação de defesa própria ao indivíduo que se encontra em situação de perigo, mas é instrumento e causa de seu gozo. Diz ele: "...essa tendência à agressão, que podemos perceber em nós mesmos e cuja existência supomos também nos outros, constitui o fator principal da perturbação em nossas relações com o próximo; é ela que impõe tantos esforços à civilização" (Freud, 1971:65).
Logo, a exploração econômica, o uso violento do corpo alheio, a humilhação, a opressão e o assassinato são figuras da agressividade. É possível, sim, unir os homens uns aos outros pelo amor. Para isso, no entanto, é preciso que alguns fiquem de fora para receber as manifestações de agressividade. Essa proposição é uma crítica severa ao mandamento cristão do "Ama a teu próximo como a ti mesmo", que Freud confessa não entender e afirma ser estranha aos primitivos. Eis o que diz a esse respeito: "Meu amor é algo infinitamente precioso que não tenho o direito de desperdiçar sem prestar contas (...) Se amo um outro ser, de alguma forma, ele tem que merecê-lo(...) Ele o merece se é tão melhor que eu que me oferece a possibilidade de amar nele meu próprio ideal. Mas se me é desconhecido, se não me atrai por nenhuma qualidade pessoal e ainda não desempenhou nenhum papel em minha vida afetiva, me é bastante difícil ter por ele a menor afeição (...) E, olhando mais de perto, esse estrangeiro não apenas não é digno de amor como, na maioria das vezes, para ser sincero, devo reconhecer que ele pode ser alvo da minha hostilidade e até de meu ódio Ele não parece ter por mim a menor afeição. Quando lhe é útil, não hesita em me prejudicar (...) pior ainda, mesmo que não lhe seja útil, desde que encontre aí algum prazer, não tem o menor escrúpulo em me ofender, em me caluniar" (Freud, 1971:62-63).
Esta longa citação nos parece extremamente importante, pois como tentamos demonstrar na tese O estrangeiro enquanto conceito limite entre o Psicanalítico e o Político, de 1997, ela permite enfatizar a idéia de que para Freud a fraternidade está fundada na segregação, o amor do semelhante no ódio do diferente, uma vez que amor e ódio são os dois sentimentos que movem o humano concomitantemente, o homem sendo ambivalente por natureza.
Para dar a essa agressividade seu fundamento teórico, Freud avisa o leitor que deverá levar em conta a teoria das pulsões, ou melhor, da dualidade pulsional que foi obrigado a elaborar após a Primeira Guerra Mundial, quando formula a hipótese de uma pulsão de morte como fator intrínseco e inseparável da força vital. É assim que em Além do princípio do prazer, de 1920, irá opor amor e ódio, Eros e Thanatos, considerando que esses conflitos pulsionais reinam, juntos e ao mesmo tempo, tanto sobre a vida inconsciente do indivíduo quanto sobre sua vida social — como mostra ao introduzir a pulsão de morte no social.
Para Freud não existe pulsão agressiva em si, mas há um dualismo pulsional que faz com que a pulsão de destruição seja freqüentemente erotizada, aliando-se à sexualidade. Nesse jogo entre Eros e Thanatos, para escapar à autodestruição, o indivíduo é levado a destruir o outro, ainda que sua necessidade de amor contrarie essa pulsão. Talvez isso explique por que os atos de violência têm sempre seus observadores apaixonados.
Enquanto conceito, a pulsão de morte é um monstro lógico e, por isso mesmo, apto a designar a realidade humana como monstruosa em relação à de outros seres vivos. Basicamente, suprime qualquer esperança de uma possível harmonia entre o homem e o mundo, entre o homem e si mesmo, entre seu bem e seu desejo. Esse conflito entre Eros e Thanatos, que atravessa tanto o processo civilizatório quanto o desenvolvimento individual, obriga-nos a concordar com B. Edelman que em seu texto Relire Malaise dans la Civilization (1994) afirma que "na essência do homem não encontramos nem amor pelo saber, nem desejo de verdade ou justiça, nem tampouco vontade de paz universal, mas ódio, violência ou, pior ainda, amor pelo caos e pelo desastre". E que "a humanidade é suicida, pois, por um paradoxo inexplicável, se esforça por destruir aquilo que faz sua grandeza. O direito não cessa de ser contestado pela selvageria, a democracia pela tirania, a cultura pelo auto-da-fé". Nesse final de século marcado pela dor, morosidade, banalidade dos projetos e ideais, fracasso das instituições, desencantamento, nostalgia, frutos da decepção ressentida pelos cidadãos em relação à política e àqueles que a encarnam, fica a impressão de que as constatações de Freud nada têm de anacrônico. Aos horrores já vividos nesse século XX — duas guerras mundiais, bomba atômica e várias guerras civis, que fizeram dele, na opinião de A. Finkelkraut (1998), o mais terrível da história da humanidade — podemos ainda acrescentar novos horrores econômicos e ecológicos, frutos do desenvolvimento cada vez maior da tecnologia, que pretensamente deveria garantir o bem-estar.
Não resta dúvida de que vivemos um período sui generis. A própria idéia de unidade do gênero humano, conquistada a duras penas pelos tempos modernos, já deu provas neste nosso século que não pode ser manipulada ingenuamente. Temos assistido com assombro, nos lembra o autor, à vaga condescendência com que o mundo observa a banalização de milhares de vidas a quem é recusada a dignidade de sua condição humana.
A nova ordem mundial que vem se instalando atinge todo o planeta. Suas características são peculiares: uniformização cada vez maior da vida cotidiana, normalização dos indivíduos, ausência absoluta de projetos, tanto coletivos quanto individuais, e uma aparente incapacidade de revolta... e não que nos faltem motivos para tanto. Nos termos de Finkelkraut, o homem moderno acabou se tornando um turista virtual, passando de cidadão a observador que, conectado à rede mundial de computadores, abole a topologia e a experiência humana, por demais humana, da vizinhança. Em vez da disposição de partilhar o mundo com outros homens, o que se tem é a mundialização do Eu.
Politicamente, assiste-se ao fim do Estado-Nação, em proveito de um aquém (região) ou de um além (mundo, bloco econômico). A repressão não tem mais rosto, salvo esporadicamente em alguns lugares e em certos momentos. Sociologicamente, assiste-se àquilo que chamaria de tribalização do mundo, caracterizada pela importância cada vez maior que os grupos étnicos vêm assumindo no mundo de hoje, dos quais o politicamente correto é uma das manifestações mais significativas e aberrantes. Antagonismos étnicos, lingüísticos e religiosos que haviam sido recalcados pela Guerra Fria parecem estar explodindo em todos os cantos do mundo. Isso explica o ressurgimento do racismo e de fanatismos religiosos em diversas partes do mundo, que acabam desembocando em guerras fratricidas, seja entre comunidades de um mesmo país (vide ex-Iugoslávia), entre etnias (ex-Zaire), ou entre classes sociais (Brasil), quase como se a guerra civil generalizada fosse, hoje em dia, a Terceira Guerra Mundial.
Esta parece ser uma questão da maior importância e atualidade. Basta olharmos em torno de nós: África, América Latina, ex-Europa do Leste, Ásia: a guerra civil vem sendo utilizada por nossa civilização para regulamentar, segundo uma certa lógica, conflitos entre nações, homens, sejam quais forem as diferenças entre raças, culturas, religião.
Economicamente, a especulação financeira vem se tornando mais importante que a produção industrial, os papéis financeiros levando à acumulação do capital e à falsificação da riqueza, que até pouco tempo atrás era mensurável em termos de produção e de capacidades industriais. Com a vitória do liberalismo, a empresa passa a dar prioridade absoluta aos acionários em detrimento dos assalariados e trabalhadores em geral. A palavra de ordem é preferir a rentabilidade instantânea, medida pela Bolsa, a investimentos de longo prazo.
Dito de outro modo, valorizar o presente em detrimento do futuro. O mesmo acontece com as decisões macroeconômicas, que também valorizam sistematicamente o presente em detrimento do futuro. O elevado nível da taxa de juros, o medo obsessivo da inflação e a resignação perante o desemprego, tudo isso faz parte das representações coletivas de uma depreciação do futuro.
Do ponto de vista da cultura, ela deixou de ser o que costumava ser na sociedade ocidental, uma cultura-revolta, para se transformar cada vez mais numa cultura-show, cultura-divertimento.
Do ponto de vista do indivíduo, este tem cada vez mais dificuldades de se projetar num futuro. Acreditamos que o projeto, a utopia, sejam psiquicamente necessários ao sujeito. Quando nos referimos a projeto, não estamos defendendo esta ou aquela crença, esta ou aquela posição intelectual, mas tão apenas a capacidade de projetar o futuro, acreditar no próprio tempo.
A criança para crescer precisa de um marco no horizonte. É por isso que diz: quando crescer vou ser bombeiro... ou qualquer outra coisa. O importante é que possa se pensar a si mesma, projetando-se um futuro. O mesmo acontece com o adulto, precisa de idéias, representações que se interponham entre o momento presente e o fim da vida: a morte. O deprimido é justamente aquele que não possui mais nenhuma ilusão a não ser a idéia da morte como único indício de um horizonte temporal e espacial. Ele é o avesso exato das normas de socialização. Não por acaso as pessoas vivem cada vez mais na base de pílulas da felicidade. Do Prozac ao Viagra, parece que a tal felicidade que, como dizia Freud, é o objetivo dos homens, só em pílulas e na farmácia da esquina.
Em vez de sonhos e utopias, temos no máximo discursos que prometem o fim da miséria e dias melhores, designando um bode expiatório culpado por todos os males e prioritariamente pelo desemprego: a grande ameaça deste final de século. É isso que explica o recrudescimento das xenofobias nos países industrializados, por exemplo, assim como a violência cada vez mais exacerbada contra os excluídos do sistema no Brasil. Chacinas cotidianas, violência contra os sem-terra, invasão do Carandiru e chacina da Candelária, não são os exemplos que faltam.
Era possível até pouco tempo atrás lutar coletivamente contra o patrão ou contra uma classe, mas como lutar contra a globalização? O cidadão moderno está sem rumo e ora se refugia na indiferença, ora parte para a violência contra aquele que imagina estar impedindo sua "felicidade", roubando-lhe algo que no fundo nunca lhe pertenceu.
Atribuímos a essa falta de projetos, coletivos ou individuais, o fato de a depressão ter-se tornado nos dias de hoje um mal social, a ponto de poder afirmar que o deprimido se tornou hoje em dia a figura patológica desse final de século, como afirma A. Ehrenberg em seu livro La fatigue d'être soi (1998), no qual explora as formas extremas do individualismo contemporâneo. Em sua obra, o termo depressão recobre um conjunto heterogêneo de sintomas: astenia, indiferença, inibição, embotamento do corpo e do pensamento. O deprimido, a seu ver, sente como que uma espécie de cansaço de existir, não deseja, e se sente vazio.
O que estará acontecendo? Sempre na reflexão, a nosso ver, bastante original do autor, a depressão do indivíduo contemporâneo é conseqüência de duas transformações: uma interna e outra externa. Do ponto de vista social, ela tem a ver com o declínio do modelo disciplinar que obrigava os indivíduos a viver em conformidade com as proibições em respeito à autoridade. E, do ponto de vista psicológico, ela é a patologia de uma sociedade em que a norma não é mais fundada sobre a culpabilidade e a disciplina. O indivíduo contemporâneo, diz ele, libertou-se ou acreditou ter-se libertado dos sistemas de coerção e inscrição nas instâncias dos deveres coletivos. O ideal do eu passou a se situar, a partir daí, do lado de um desenvolvimento sem entraves das potencialidades do indivíduo. Deixou de se sentir atraído por um fora, por um dever, e dividido internamente por um conflito que pode suscitar culpa e angústia.
Em nossos dias, afirma Ehrenberg, a depressão ameaça o indivíduo como o pecado assombrava a alma dirigida para Deus ou a culpa ameaçava o homem marcado pelo conflito. Vivemos em um mundo caracterizado por uma série de transgressões sem interdições, de escolhas sem renúncias, razão pela qual, mais que uma miséria afetiva, a depressão contemporânea vem se transformando num modo de viver.
Concordamos inteiramente com o autor. Cansados e vazios, agitados e violentos, vivemos um tempo sem futuro. Somos, segundo H. Arendt, homens "ressentidos". Ressentidos contra tudo que nos é dado, inclusive nossa própria existência, ressentidos contra o fato de que não somos criadores nem do universo nem de nós mesmos. Levados por esse ressentimento fundamental a não ver o menor sentido no mundo tal como se apresenta, o homem moderno, na opinião de H. Arendt, proclama que tudo é permitido e crê secretamente que tudo é possível. Sempre segundo a autora, a gratidão é a única alternativa ao niilismo do ressentimento, gratidão fundamental pelas coisas elementares que nos são dadas: a própria vida, a existência do homem e o mundo. E aqui é fundamental salientarmos que são os homens, e não o homem, que habitam o mundo. E os homens incluem esses miseráveis que evitamos, dos quais nos desviamos, dos quais sentimos medo e que nos são indiferentes. Enquanto o indivíduo contemporâneo não reencontrar sua capacidade de revolta e indignação, continuaremos em pleno ressentimento e longe de qualquer possibilidade de gratidão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANCORI, B. "Effacement du tiers et identité du sujet. Les leçons de la Grèce ancienne et de l'Occident médiéval". In: Figures du sujet dans la modernité. Paris, Arcanes, 1997.
EDELMAN, B. "Relire malaise dans la civilisation". Cesure, n.4, 1994.
EHRENBERG, A. La Fatigue d'être soi. Paris, Editions Odile Jacob, 1998.
FINKELKRAUT, A. A humanidade perdida. São Paulo, Ática, 1998.
FREUD, S. "Considérations actuelles sur la Guerre et sur la Mort". In: Essais de psychanalyse. Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1984.
______. Deuil et melancolie in metapsychologie. Paris, Gallimard, 1968.
______. Malaise dans la civilisation. Paris, PUF, 1971.
HASSOUN, J. La cruauté mélancolique. Paris, Aubier, 1995.
HOUBBALLAH, A. Le virus de la violence. Paris, Albin Michel, 1996.
KOLTAI, C. "Conferência 68". Família e modernidade, ano II, n.2, set. 1998, p.17-25.
LANDMAN, P. "Quelques élements cliniques de l'exclusion". Revue Internationale de Psychanalyse, n.6 "La Cruauté du Collectif", 1997.
PLON, M. "De la politique dans le malaise au malaise dans la politique". In: Autour du malaise dans la culture. Paris, PUF, 1998.
ZYGOURIS, R. "De alhures ou de outrora ou o sorriso do xenófobo". In: O estrangeiro. São Paulo, Escuta, 1998.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

ÉTICA E HEROÍSMO

Ser ético, ser herói

Quem viu o filme Casa da Rússia, com Sean Connery e Michele Pfeiffer? Numa certa altura, entusiasmado, o editor inglês que é representado por Sean Connery diz: “Hoje, para alguém ser uma pessoa decente, precisa ser herói”. É uma frase fortíssima, que muda toda a história que vai acontecer depois – e que por isso mesmo eu não vou contar. Mas quer isso dizer que, hoje, para ser ética, uma pessoa tem que ser heróica? Ficou tão difícil a ética, assim?
É o que ouvimos quase todo dia. Os brasileiros dão muita importância à ética. Dividimos o mundo em gente decente e indecente. Quando algo dá errado, por exemplo uma política pública, automaticamente se pensa em roubalheira, não em incompetência.
Mesmo os bandidos falam em ética. Na cadeia, punem sem piedade quem abusou sexualmente de crianças ou de mulheres. É comum até um criminoso falar na sua “ética”, nos seus valores.
Também, quando tratamos um serviço, é freqüente a pessoa contratada explicar por que ela faz tão bem o seu trabalho e, sobretudo, por que não pratica certas desonestidades que seus colegas (jura ela!) fazem.
Acredite, claro, quem quiser. Mas faz parte do nosso discurso social, da nossa fala com o outro, afirmar: eu sou ético, num mundo em que o resto não o é. Eu sou do bem. O mundo está de pernas para o ar, tudo está errado, mas eu não.
Aqui temos então duas grandes idéias fortes da brasilidade. A primeira é que as coisas em geral não andam bem. A economia nos aperta, a sociedade está complicada, até a amizade e o amor estão em crise. Percebemos bem essa devastação e ela nos incomoda. Mas a segunda idéia é que eu, pessoalmente, ajo bem. Sou honesto.
Serei herói? Aqui é que estão as coisas. Boa parte do auto-elogio (eu sou o único decente num mundo de bandidos) é mentira. Basta ver como termina o serviço do profissional que gabou sua honestidade: tão ruim quanto o dos outros, ou mesmo pior. Então, parece que o personagem da Casa da Rússia tem razão: a ética virou artigo raro. Ser ético é mostrar-se capaz de heroísmo.
Vale a pena então irmos, deste filme recente, baseado num livro de John Le Carré, para a tragédia grega Antígone, que Sófocles escreveu no século V antes de Cristo. Penso que toda reflexão sobre a ética deve começar por ela.
Antígone é filha de Édipo. Dois de seus irmãos lutam pelo poder, e ambos morrem. O trono fica então com seu tio, Creonte, que manda enterrar um dos sobrinhos com todas as honras – e deixar o corpo do outro aos abutres. Antígone não aceita isso. Participa do enterro solene de um irmão e depois sepulta, com os ritos religiosos, o outro, o proscrito.
O rei fica furioso. Está convencido de que é uma conspiração contra ele. Manda descobrir quem violou suas ordens. Ao saber que é a sobrinha, tenta poupá-la: se ela negar que foi ela, ou se pedir desculpas, enfim, ele lhe dá todas as saídas – sob uma condição só, de que ela negue o seu ato. Antígone se recusa e é executada.
Essa história é exemplar. Ela mostra que há um conflito latente entre a ética e a lei. Um governante dá ordens. Estas podem ser legítimas ou não. Creonte fez o que não devia, moralmente, mas é ele quem manda. A lei está com ele. Neste caso, o que fazer?
Vou passar a um caso relativamente recente. Um tempo atrás, eu estava na França, quando um homem morreu na calçada, em frente de uma farmácia, sem que ninguém o acudisse. O farmacêutico explicou: se tocasse no outro, se tornaria responsável por ele. Só um médico poderia fazê-lo. Descobriu-se, porém, que bastaria um remédio simples para salvar o rapaz da morte. O que fazer?
Assisti então a um amplo debate. Foi sugerida uma mudança na lei, para que as pessoas pudessem acudir a seus próximos sem serem processadas, quando agissem de boa fé. Também se propôs um sistema de atendimento mais rápido das emergências. Mas quem, a meu ver, resolveu a questão foi um jornalista, que disse mais ou menos o seguinte:
- Se precisarmos de uma lei que autorize as pessoas a agirem humanamente, a socorrerem os outros sem pensar nos castigos e riscos que correm, não estará tudo perdido? Porque nunca as leis vão prever todos os casos. Sempre, para alguém agir bem, de maneira ética, em solidariedade com os outros, haverá um terreno incerto, um espaço que pode até ser ilegal.
- Precisamos de uma lei nos permitindo ser decentes?, continuou ele. Ou deveremos estar preparados para correr os riscos, até mesmo de sermos presos, quando um valor mais alto se erguer, o valor do respeito do outro?
É este o heroísmo de que falava o personagem da Casa da Rússia. É este o heroísmo que Antígone praticou. E ele exige que, às vezes, estejamos dispostos a infringir a própria lei, a desobedecer às regras, quando for em nome de um valor superior. Em nosso mundo, este valor mais elevado pode ser, antes de mais nada, a vida de alguém. Aliás, costuma haver polêmica sobre o chamado “furto por necessidade”, quando um esfomeado furta comida para sobreviver: isso não é um crime.
Mas as coisas podem ir mais longe. Maria Rita Kehl elogiou aqui, na semana passada, o líder dos sem-terra João Pedro Stédile. O que vale mais, a lei de propriedade da terra, que perpetua uma exclusão social enorme, ou o direito das pessoas a viver, e acrescento, a viver dignamente? Do ponto de vista ético, é claro que vale mais o direito à vida digna.
Nem sempre foi assim. Um pregador puritano inglês do século 17, Richard Baxter, tem uma frase horrorosa. Na época, enforcava-se quem roubasse um pedaço de pão. Ele justifica isso: a vida dos pobres, explica, não vale grande coisa, ao passo que o atentado à propriedade destruiria os fundamentos da própria sociedade.
Não há consenso a este respeito. Uns defendem os sem-terra, outros os atacam. Mas o que quero levantar aqui é algo mais forte: é que a ética e a lei não coincidem necessariamente. Muitas vezes, ser decente exige romper com a lei. Foi assim sob o nazismo e sob todas as formas de ditadura. É assim também quando a desigualdade ou a injustiça impera.
Aí, sim, o ser humano precisa ser heróico. Porque violar a lei, mesmo que seja por um valor moral relevante, significa sofrer as penas da lei. Numa sociedade decente, imagino que o juiz não mandará para a cadeia quem infringiu as normas legais devido a valores morais mais altos, como os que citei. Mas não há garantia nenhuma disso. Pode ser que a pessoa seja punida, mesmo.
E é importante insistir nisso. O que queremos nós: cidadãos obedientes à lei, a qualquer lei, ou sujeitos éticos, decentes? O ideal é juntar as duas coisas. Mas, na educação, devemos apostar na autonomia, isto é, na formação de pessoas que sejam capazes de decidir por si próprias. O que significa que, em casos raros e extremos, elas tenham a coragem de enfrentar o consenso social e suportar as conseqüências de seus atos.
Isso, para terminar, pode fazer de qualquer um de nós um pequeno herói. O heroísmo não está só nas personagens da mitologia grega ou nos super-heróis da TV. Ele pode estar presente quando cada um de nós enfrenta uma pequena prepotência, em nome de um valor mais alto – desde, claro, que arque com os resultados de sua ação e que além disso lembre que é falível e pode estar errado. Mas é desses pequenos heroísmos pessoais que depende a dignidade humana.


Renato Janine Ribeiro


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

SOCIEDADE FRACTAL

MENSALÕES

"Mensalões" e questão moral

Cláudio Bernabucci

A questão moral não se esgota na necessidade de descobrir ladrões e corruptos nas altas esferas da política e da administração, denunciá-los e mandá-los para a cadeia. A questão moral deve ser vista na ocupação do Estado por parte dos partidos políticos... que hoje são, sobretudo, máquinas de poder e clientela, com escassas ideias e poucos ideais..."
Esse pensamento, que parece se adaptar muito bem às crônicas recentes, na realidade recente não é: pertence a Enrico Berlinguer, líder do eurocomunismo, que o manifestou em uma famosa entrevista ao jornal La Repubblica, em julho de 1981. Como muitas vezes acontece aos homens visionários, a história deu-lhe razão: a partir de 1993, os inquéritos chamados ManiPulite (Mãos Limpas) resultaram na eliminação dos partidos que tinham governado a Itália por 50 anos.
Longe de mim a tentação de estabelecer paralelismos mecânicos entre a situação italiana de então e a brasileira de hoje, colocadas em contextos políticos tão diferentes. Acredito, porém, que a reflexão histórica sempre desnude elementos úteis para entender o presente, assim como tempere asperidades polémicas contingentes habilitadas a ofuscar o pensamento.
Assistindo ao debate brasileiro sobre corrupção e política, a impressão do observador é de perigosa polarização e exasperação. Esquematizando, eu diria que, por um lado, se manifesta uma corrente de opinião que tende a dar ao processo do "mensalão" uma distorcida valência transcendental, atitude associada à tentativa de politizar ao máximo o processo para que a parte política sob juízo resulte mortalmente prejudicada. A agressividade desse movimento, liderado pela chamada grande imprensa, assume brados justiceiros que pouco combinam com leniências anteriores diante de outras tenebrosas transações do passado recente. Por outro lado, a corrente oposta expressa uma espécie de "relativismo" do pensamento crítico. Tal posição considera a corrupção como mal endêmico do Brasil, cuja história estaria cheia de "mensalões". Nas manifestações mais ingênuas dessa opinião, chega-se a minimizar a conduta dos réus, com a justificativa de que estes teriam sido só "alunos mal aplicados", sem habilidade na emulação de modelos alheios. Consequência: sendo a corrupção um mal comum a todos os partidos e a toda a sociedade, por que motivo começar a limpeza pêlos (ex) representantes da classe trabalhadora? Não é minha intenção tentar uma resposta à questão, mas apenas evidenciar que, entre posições extremas dominantes, a razão fica sacrificada.
Outra impressão das polêmicas em curso é que se debate muito sobre teorias e precedentes jurídicos, sobre corruptos e corruptores, mas muito menos sobre as medidas de combate à corrupção daqui para a frente.
A corrupção não é prerrogativa tropical ou latina, mas um mal ligado intrinsecamente ao poder, de qualquer dimensão e latitude. Portanto, não se combate com saltuárias companhas de moralização ou pela aplicação de virtudes episódicas, e sim com o fortalecimento constante da democracia. A corrupção não pode ser derrotada, mas pode ser limitada através do fortalecimento da independência dos Três Poderes, graças a instituições transparentes e a uma rica articulação de pesos, contrapesos e controles dos poderes, sejam políticos, sejam econômicos. Informação pluralista, assim como participação ativa e vigilância das organizações da sociedade, deveria ser necessária para reduzir ao mínimo as ameaças sempre presentes desse câncer da sociedade. Fazer boa política, poderíamos dizer em síntese, é o melhor antídoto contra a doença. Portanto, a ilusão de que, fora da política ou contra a política, é possível moralizar a sociedade, seria simplesmente trágica.
O caso italiano, desse ponto de vista, é exemplar e mereceria ser estudado. O aniquilamento dos partidos de governo, seguido aos "históricos" processos contra os corruptos da Primeira República, abriu espaço à experiência populista e subversiva de Sílvio Berlusconi. Apresentando-se como o antipolítico por excelência, com a promessa de cortar impostos e redimensionar o Estado, fundou um partido de sua propriedade e passou a ocupar o Estado com ainda maior voracidade do que os antecessores, endividando-o até quase a falência.
No Brasil, analogamente, a crise da política representa o ponto mais vulnerável do sistema nacional e o "mensalão" é o seu mais evidente epifenômeno. O julgamento final do Supremo provavelmente punirá com severidade a parte política envolvida, mas não há dúvida de que a política brasileira na sua totalidade será abalada. Evitando a tentação suicida do aniquilamento recíproco, os partidos bem fariam em promover uma profunda reforma da política, único antídoto contra a deriva atuaL e a refletir, em paralelo, se a definição da questão moral, acima citada, pode ser aplicada ou não à história brasileira.

Carta Capital/10de outubro de 2012