segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

CRENÇA NO FIM DO MUNDO



Especial

O fim do mundo em 2012

Os planetas, as estrelas, o calendário maia e, é claro, uma superprodução de Hollywood reavivam a ideia aterrorizante do apocalipse e levantam uma questão: por que continuamos a acreditar em profecias finalistas apesar de todas elas terem fracassado redondamente?


André Petry, de Nova York



O escritor Patrick Geryl tem 54 anos, escreveu uma dezena de livros, nunca se casou, não tem filhos e atualmente anda muito ocupado preparando-se para o fim do mundo. Na semana passada, esteve em Sierra Nevada, no sul da Espanha, acompanhando uma equipe de televisão do Canadá, numa vistoria às habitações que estão sendo construídas ali. São ocas de cimento capazes de resistir ao cataclismo que, acredita Geryl, destruirá o planeta Terra no dia 21 de dezembro de 2012. "Queremos um lugar a uns 2 000 metros acima do nível do mar", explica. Ele e seu grupo pretendem levar 5 000 pessoas para um local que resistirá aos horrores do apocalipse. Será o último dia do resto da humanidade, acredita Geryl, um dia para o qual ele se prepara desde a adolescência, quando, aos 14 anos, na histórica cidade belga de Antuérpia, começou a se interessar pelo assunto lendo livros de astronomia. Ao voltar da Espanha, Geryl ocupou-se em relacionar os itens que devem ser levados para o bunker antiapocalipse. Na lista coletiva, havia 348, faltando ainda incluir os medicamentos. Na de uso individual, 86.

O ano de 2012 tornou-se o centro de gravidade do fim do mundo por uma confluência de achados proféticos. Primeiro, surgiu a tese de que a Terra será destruída com a volta do planeta Nibiru em 2012. Depois, veio à tona que o calendário dos maias, uma das esplêndidas civilizações da América Central pré-colombiana, acaba em 21 dezembro de 2012, sugerindo que se os maias, tão entendidos em astronomia, encerraram as contas dos dias e das noites nessa data é porque depois dela não haverá mais o que contar. Posteriormente, apareceram os eternos intérpretes de Nostradamus e, em seguida, vieram os especialistas em mirabolâncias geológicas e astronômicas com um vasto cardápio de catástrofes: reversão do campo magnético da Terra, mudança no eixo de rotação do planeta, devastadora tempestade solar e derradeiro alinhamento planetário em que a Terra ficará no centro da Via Láctea – tudo em 2012 ou em 21 de dezembro de 2012.



Com tantas sugestões, a profecia ganhou as ruas. No dia 13 de novembro, terá lugar a estreia mundial de 2012, uma superprodução de Hollywood que conta a saga dos que tentam desesperadamente sobreviver à catástrofe final. No site da Amazon, há 275 livros sobre 2012. Nos Estados Unidos, já existem lojas vendendo produtos para o apocalipse. Os itens mais comercializados são pastilhas purificadoras de água e potes de magnésio, bons para acender o fogo. É sinal de que os compradores estão preocupados com água e fogo, numa volta ao tempo das cavernas. Na Universidade Cornell, que mantém um site sobre curiosidades do público a respeito de astronomia, disparou o número de perguntas sobre 2012. Há os que se divertem, pois não acreditam na profecia. Entre os que acreditam, os sentimentos vão da tensa preocupação, como é o caso de Patrick Geryl, autor de três livros sobre 2012, todos publicados no Brasil, até o pavor incontrolável. O fim do mundo é uma ideia que nos aterroriza – e, nesse formidável paradoxo que somos nós, também pode ser a ideia que mais nos consola. Por isso é que ela existe.
No inventário dos fracassos humanos, talvez não haja aposta tão malsucedida quanto a de marcar data para o fim do mundo. Falhou 100% das vezes, mas continua a se espalhar, resistindo ao tempo, à razão e à ciência. As tentativas de explicar esse fenômeno são uma viagem fascinante pela alma, pela psique, pelo cérebro humano. Uma das explicações está no fato de que o nosso cérebro é uma máquina programada para extrair sentido do mundo. Assim, somos levados a atribuir ordem e significado às coisas, mesmo onde tudo é casual e fortuito. As constelações no céu, por exemplo, são uma criação mental para organizar o caos estelar. Ao enxergarmos as constelações de Órion ou Andrômeda, encontramos ordem e sentido. O dado complicador é que a vida, no céu e na terra, deve muito mais às contingências do acaso do que ao determinismo. O espermatozoide que fecundou o óvulo que gerou Albert Einstein foi um produto do acaso, resultado de uma disputa entre espermatozoides resolvida por milésimos de segundo. Assim como aconteceu, poderia não ter acontecido.
Recuando no tempo, a própria humanidade, analisada do ponto de vista científico, é fruto do acaso. Por um acidente, um peixe pré-histórico desenvolveu barbatanas que, à imitação de pernas ou patas, lhe permitiram enfrentar a gravidade da Terra e, assim, por acaso, viabilizou o desenvolvimento de vertebrados fora da água. Bilhões de anos depois, cá estamos nós, bípedes, inteligentes, comendo sorvete de morango, descobrindo a estrela mais antiga e nos deliciando com Elizabeth Taylor deslumbrante como Cleópatra. Tudo por acaso. A preponderância do aleatório sobre o determinado pode dar a sensação de desesperança, de que somos impotentes diante de todas as coisas. Talvez nisso residam a beleza e a complexidade da vida, mas o fato é que o cérebro está mais interessado em ordem do que em belezas complexas. Por isso, quando não vê significado nas coisas naturais, ele salta para o sobrenatural. "Nascemos com o cérebro desenhado para encontrar sentido no mundo", diz o psicólogo Bruce Hood, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, autor de Supersense: Why We Believe in the Unbelievable (Supersentido: Por que Acreditamos no Inacreditável). "Esse desenho às vezes nos leva a acreditar em coisas que vão além de qualquer explicação natural."
O achado de Hood foi descobrir que as crenças talvez não sejam fruto nem da religião nem da cultura, mas uma expressão de como o cérebro humano trabalha. É o que ele chama de "supersentido". É o supersentido que nos leva a bater na madeira, dar valor afetivo a um objeto ou conversar com Deus. A religião seria uma criação mental através da qual o cérebro atende a sua necessidade por sentido. O apocalipse, nesse caso, é uma saída brilhantemente engenhosa. Explica duas questões que atormentam a humanidade desde sempre: o significado da vida e a inevitabilidade da morte. Somos a única espécie com consciência da própria morte e, no entanto, não sabemos o significado da vida. Afinal, por que estamos aqui? A pergunta, em si, revela nossa busca por sentido, devido à nossa dificuldade de conviver com a possibilidade de que, talvez, não estejamos aqui por alguma razão especial. O apocalipse é uma resposta. Está descrito nos seus mínimos e horripilantes detalhes no Livro do Apocalipse, escrito pelo evangelista João, por volta do ano 90 da era cristã, quando estava preso, perseguido pelo Império Romano.

O começo do fim do mundo, diz João, será anunciado por sinais tenebrosos: um céu negro, uma lua cor de sangue, estrelas desabando sobre a Terra e uma sucessão de desastres varrendo o planeta na forma de terremotos, inundações, incêndios, epidemias. O Anticristo então dominará a Terra por sete anos, ao fim dos quais Jesus Cristo descerá dos céus com um exército de santos e mártires – e vencerá Satã, a besta. Depois de 1 000 anos acorrentado, Satã conseguirá se libertar e forçará Jesus Cristo a travar uma segunda batalha, a terrível batalha do Armagedom. Derrotado Satã, todos nós, vivos e mortos, nos sentaremos no banco dos réus do tribunal divino. Os bons irão para o paraíso celestial. Os maus arderão no fogo eterno. É uma narrativa tão magicamente escatológica que Thomas Jefferson, o terceiro presidente dos Estados Unidos, a chamou de "delírio de um maníaco". Bernard Shaw, o grande teatrólogo irlandês, disse que era o "inventário das visões de um drogado". Delírio ou visões, o Livro do Apocalipse explica tudo. O professor Ralph Piedmont, do Loyola College, em Maryland, especialista em psicologia da religião, afirma: "O Apocalipse de João explica a morte, ao informar que vamos ressuscitar, e dá sentido à vida, ao dizer que é uma provação".
Subsidiariamente, o apocalipse atende a outra necessidade humana, a de acreditar num mundo regido por uma ordem moral. Os historiadores atribuem o surgimento da visão apocalíptica ao persa Zoroastro, ou Zaratustra, que viveu uns 1 000, talvez 1 500 anos antes de Cristo. Ele foi o primeiro a falar de uma batalha cósmica entre o bem e o mal, mais tarde aproveitada pelos profetas Ezequiel, Daniel e, principalmente, João. "Num mundo em que, com frequência, os bons sofrem e os maus prosperam, a promessa de um julgamento moral é um consolo profundo", diz Michael Barkun, professor de ciência política da Universidade de Syracuse, que estuda a relação entre violência e religião. Eis por que o fim do mundo aterroriza mas também pode nos consolar. Nem sempre o apocalipse vem numa embalagem religiosa. A profecia de 2012 começou com base em eventos astronômicos e calendários antigos. Só depois recebeu a adesão de seitas espiritualistas e cristãs, mas originalmente 2012 é, digamos, um fim do mundo pagão. Se não é um fim com prêmio aos bons e punição aos maus, então por que acreditamos em profecias que nunca dão certo?
A explicação começou a surgir nos anos 50, quando o brilhante psicólogo americano Leon Festinger (1919-1989) resolveu testar uma hipótese revolucionária: a de que, diante de uma profecia fracassada, os fiéis não desistem de sua crença, mas, ao contrário, se aferram ainda mais a ela. Festinger e seus colegas se infiltraram numa seita do fim do mundo e descobriram exatamente o que imaginavam. O grupo era formado por quinze pessoas e liderado por uma dona de casa de Michigan, Marion Keech, que fora informada por extraterrestres de que o mundo acabaria com uma inundação no dia 21 de dezembro – olha a data aí de novo – de 1954. Antes da catástrofe final, Marion e seguidores seriam resgatados pela nave-mãe e levados para um lugar seguro. Na data e hora marcadas, eles se reuniram para esperar o resgate, e não apareceu nave nenhuma. Passou uma hora, e nada. Duas horas, e nada. Eles estavam tensos e preocupados, alguns começando a dar sinais de descrença naquilo tudo, até que, quase cinco horas depois, Marion foi novamente contactada pelos extraterrestres com uma novidade redentora: o grupo ali reunido, com o poder de sua crença, espalhara tanta luz que Deus cancelara a destruição do mundo. Os membros reagiram com entusiasmo. Haviam encontrado um meio de acreditar que a profecia, afinal, estava correta.
O caso foi contado no livro When Prophecy Fails (Quando a Profecia Falha) e se tornou um dos fundamentos do que veio a se chamar teoria da dissonância cognitiva. É a inclinação que temos para reduzir o profundo desconforto provocado por duas informações conflitantes – no caso, a crença de que o mundo vai acabar e a evidência incontornável de que o mundo não acabou. Há exemplos mais rotineiros, como o sujeito que sabe que o cigarro pode matar e, no entanto, fuma dois maços por dia. Tem-se uma "dissonância cognitiva", que precisa ser resolvida: ou o sujeito para de fumar ou racionaliza que o cigarro, no fundo, acalma, emagrece, seja o que for. Meio século depois, a tese de Festinger será ainda válida para explicar a crença inabalável em profecias finalistas? "É, ainda, a melhor explicação psicológica", diz Daniel Gilbert, da Universidade Harvard, autor de um trabalho pioneiro sobre como enxergamos o futuro – com lupa, diz ele, sempre dando a sucessos ou fracassos importância muito maior do que efetivamente terão quando (e se) acontecerem.
As profecias do apocalipse são um desastre como previsão do futuro, mas excelentes como alegorias do presente. A coleção de afrescos e pinturas clássicas que retratam o Juízo Final, como a obra-prima de Michelangelo na Capela Sistina, reflete o temor do tribunal divino e o domínio da Igreja Católica de então. Depois da II Guerra, os filmes de Hollywood, grandes difusores da catástrofe final, passaram a enfocar o fim do mundo como resultado de uma guerra nuclear ou de um monstro deformado pela radioatividade. Estavam narrando as aflições dos americanos com a bomba de Hiroshima e Nagasaki e a chegada da corrida armamentista com a União Soviética. É o momento em que o apocalipse começa a ter duas fontes – a religião e a ciência. Nos anos 60, com as profundas transformações varrendo os EUA, da Guerra do Vietnã à revolução sexual, do advento do computador ao movimento dos direitos civis, dos Beatles a Woodstock, o apocalipse mudou de lugar. "O livro da revelação deixou o gueto cristão e entrou no coração da política americana e da cultura popular", escreve Jonathan Kirsch em A History of the End of the World (Uma História do Fim do Mundo), um ótimo inventário do apocalipse.


Desde os anos 50, cada década tem pelo menos uma dúzia de filmes apocalípticos dignos de nota, de Godzilla a Apocalypto, de O Planeta dos Macacos a Matrix, de O Bebê de Rosemary a Presságio. Eles sempre narram algo do seu tempo. Há estudiosos que acreditam que mesmo o Livro do Apocalipse teria sido uma resposta às perseguições que os cristãos sofriam no Império Romano – e a besta, o Anticristo, o Satã seriam Nero, o imperador que tocou fogo em Roma. Como os apocalipses tomam a forma de sua época, o Anticristo se atualiza. Na II Guerra, era Adolf Hitler. Hoje, é Osama bin Laden. Isso é claro nos EUA, cuja condição de potência acaba por difundir suas neuroses e seus achados para o mundo todo. O apocalipse na cultura? Antes, eram os hippies com sua percepção extrassensorial e drogas alucinógenas. Depois, no ano 2000, foi o tecnoapocalipse, na forma do bug do milênio. O apocalipse na política? Antes, era o Exército Vermelho. Agora, é o terrorismo islâmico. Como disse Eric Hoffer (1902-1983), que passou a vida como estivador e filósofo: "Movimentos de massa podem surgir e se espalhar sem a crença num deus, mas nunca sem a crença num diabo".
Nenhuma das hipóteses do fim do mundo em 2012 mencionadas nesta reportagem faz sentido. O planeta Nibiru nem existe. A civilização maia, cujo auge se deu entre 300 e 900 da era cristã, tinha três calendários: o divino, o civil e o de longa contagem, que termina em 2012. "Mas os maias nunca afirmaram que isso era o fim do mundo", diz David Stuart, da Universidade do Texas, considerado um dos maiores especialistas em epigrafia maia. Uma mudança no eixo de rotação da Terra é impossível. "Nunca aconteceu e nunca acontecerá", garante David Morrison, cientista da Nasa, agência espacial americana. Reversão do campo magnético da Terra? Acontece de vez em quando, de 400 000 em 400 000 anos, e não causa nenhum mal à vida na Terra. Tempestade solar? Também acontece e em nada nos afeta. Derradeiro alinhamento planetário em que a Terra ficará no centro da galáxia? Não haverá nenhum alinhamento planetário em 2012, e, bem, quem souber onde fica "o centro" da nossa galáxia ganha uma viagem interplanetária. Mas Patrick Geryl, que se prepara para o fim do mundo, está certo de que tudo termina em 2012. E se não terminar? Geryl pensa, olha para o alto e responde: "Não existe essa hipótese". Ele e seu grupo encontrarão uma boa explicação quando o dia raiar em 22 de dezembro de 2012. Afinal, é preciso se preparar para um novo fim do mundo.

Nota de rodapé

Os dez dias que sumiram

O calendário maia, dizem os apocalípticos, prevê o fim do mundo para o dia 21 de dezembro de 2012. Calendários, no entanto, são excelentes instrumentos para orientar sobre o compromisso da próxima quarta-feira, mas são um embuste para prever o futuro. As diversas civilizações – não só os maias, mas os egípcios, os chineses – criaram os próprios calendários, uns com base no Sol, outros com base na Lua, uns mais longos, outros mais curtos, mas todos sempre foram expressão da inclinação humana de atribuir ordem ao caos. Com o calendário, criamos a sensação de ordenar os dias, os meses e os anos num sistema cronológico racional e matematicamente preciso. Só que a natureza não é assim. Num delicioso livro lançado às vésperas do ano 2000, O Milênio em Questão, no qual se baseia este texto, o grande paleontólogo americano Stephen Jay Gould (1941-2002) escreveu: "A natureza, aparentemente, pode fazer um esplêndido hexágono, mas não um ano com um belo número par de dias ou rotações lunares". E, com o humor que lhe era peculiar, acrescentou: "A natureza se recusa teimosamente a trabalhar com relações numéricas simples justamente naquilo em que sua regularidade seria mais útil para nós".
Ou seja: os ciclos naturais dos dias, meses e anos não são redondos, pares perfeitos. São frações, números quebrados, e aí começa um problemão. Um ano – tempo que a Terra leva para dar uma volta completa em torno do Sol – não dura 365 dias. Dura 365 dias e algumas horas. Para facilitar a conta, arbitramos que um ano dura 365 dias e seis horas, ou um quarto de dia. Mas, como não podemos ter um quarto de dia, a cada quatro anos temos o ano bissexto, com 366 dias, o que recoloca nosso calendário em sintonia com o ano solar. Porém, a natureza, na sua magistral indiferença para com nossos números inteiros, na realidade não faz um ano de 365 dias e seis horas. São 365 dias e 5 horas, 48 minutos e 45,97 segundos! Isso quer dizer que o acréscimo do 366° dia cobre o descompasso ocorrido em cada quatro anos, mas imprecisamente. Como o tal descompasso não era de exatas 24 horas – era de 23 horas, 15 minutos e 3,88 segundos –, o ajuste feito pelo ano bissexto ainda nos deixa com um pequeno atraso em relação à natureza: um atraso de 44 minutos e 56,12 segundos a cada quatro anos. É pequeno, mas aumenta com o tempo. Em vinte anos, o atraso soma quase quatro horas. É tolerável. Em 100 anos, passa de dezoito horas. Começa a complicar. À medida que vai avançando, passa a embaralhar as estações do ano, a época certa para plantar, para colher, para pescar. Vira um, digamos, apocalipse.
Em 1582, o calendário da época, que vinha desde os tempos do Império Romano, já acumulava um atraso de dez dias em relação ao ano solar. Era demais, inadmissível. O papa Gregório XIII convocou então uma comissão de matemáticos para dar uma solução ao problema. Chegou-se a uma saída formidável. Com seu poder incontrastável sobre o destino da humanidade e do universo, o papa decretou o sumiço dos dez dias. Simples assim. Riscou fora. A humanidade foi dormir em 4 de outubro e acordou em 15 de outubro. O período de 5 a 14 de outubro de 1582 não existiu, jogando algumas dúvidas para as calendas gregas. O que aconteceu com quem fazia aniversário no período suprimido? E quem tinha conta para pagar num dia que sumiu? Pagou juros? Queixou-se ao papa? Resolvida a diferença de dez dias, a comissão achou outras soluções criativas. Para evitar que o descompasso dos anos bissextos voltasse a se alargar a longo prazo, estabeleceu que a cada século múltiplo de 100 – 1800, 1900, 2000, por exemplo – não haveria ano bissexto. Excelente. Mas a retirada do 366° dia seria provisoriamente excelente porque criaria um desequilíbrio lá adiante. Então, inventou-se outra compensação: de quatro em quatro séculos, o ano bissexto volta.
Parece confuso, mas é assim que funciona até hoje: de 100 em 100 anos, cai o ano bissexto; de 400 em 400, reinstala-se o ano bissexto. Com esses avanços e recuos, somas e diminuições, nosso calendário consegue dançar num movimento parecido com o balé irregular dos ciclos naturais. (Não é idêntico porque o calendário gregoriano ainda se distancia do ano solar em 25,96 segundos. É irrisório, leva mais ou menos 2 800 anos para chegar a um dia inteiro, mas perfeito é que não é.) Diante de tantos ajustes, a velha e boa folhinha de parede é um medidor preciso para o compromisso de quarta-feira, mas, com suas imprecisões em relação aos eventos astronômicos, não é exatamente boa para embasar previsões futuras.
Para fugir das confusões do ano solar, há quem prefira as previsões com base no mês lunar – tempo que a Lua leva para dar uma volta completa em torno da Terra. Na verdade, não resolve nada. Apenas se troca de problema. Para facilitar nossos cálculos, arbitramos que a Lua leva 29 dias e meio para dar a volta na Terra. Mas, na realidade, a Lua leva, precisamente, 29,53 dias – de novo, a caprichosa fração da natureza. Assim, se um ano tem doze meses e cada mês corresponde a uma lunação, a conclusão matemática é que um ano tem doze lunações. Era para ser, mas não é. As doze lunações, indiferentes à ordem humana, não levam 365 dias para se realizar, mas somente 354 dias, uma debochada diferença de onze dias em relação ao ano solar...! Por isso, é preciso que... Bem, diga-se apenas que é preciso recorrer à inventividade humana para conciliar o calendário e o universo. Fica claro que qualquer profecia anunciada com base em calendários, solares ou lunares, maias ou gregorianos, é mais ou menos uma brincadeira, pois nossas fórmulas numéricas, tão regulares e ordenadas, não traduzem a exata natureza dos eventos astronômicos, tão caóticos e irregulares. É quase como querer tirar a raiz quadrada do mar.


 http://veja.abril.com.br/041109/fim-do-mundo-2012-p-090.shtml

TEMA: VIOLÊNCIA

VIOLÊNCIA E MAL ESTAR NA SOCIEDADE

Violência e indiferença: duas formas de mal-estar na cultura


Caterina Koltai
Psicanalista, Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP


Miséria, violência e exclusão estão definitivamente instadas no campo social. Basta circular por qualquer metrópole do mundo — e São Paulo não foge à regra, muito pelo contrário — para encontrarmos a cada esquina, em todos os lugares públicos, homens, mulheres e crianças miseráveis mendigando por um pouco de comida, quando não partindo para a agressão para conseguir sua dose de crack. Violência da sociedade contra eles, violência deles contra a sociedade.
Seus corpos provocam em nós sentimentos diversos: medo, angústia, nojo, culpa, indiferença ou revolta, segundo o passante e seu humor do dia. A presença desses excluídos não só perturba nossa consciência como também nossos ideais sociais, já que nosso narcisismo nos leva a imaginar, erroneamente certo, nossa sociedade fundada sobre a justiça e a racionalidade.
É principalmente sobre essas reações afetivas provocadas pelo encontro cotidiano com a violência e miséria, efeitos do mal-estar na civilização sobre nossa subjetividade, que se pretende aprofundar neste artigo, principalmente porque a impressão é de que, cada vez mais, nossas reações são de medo e angústia, quando não de nojo, e cada vez menos de culpa e revolta. E isso preocupa, ou melhor, assusta.
Essa passividade e incapacidade de revolta, assim como a falta de projetos, coletivos ou individuais, parecem ser as principais características desse final de século melancólico. Nesse momento de globalização das economias e da crise que ela acarreta, estamos assistindo a um recrudescimento da violência e do religioso. É quando os indivíduos se sentem inseguros, lembra R. Zygouris (1998), quando seu tempo subjetivo não pode ser projetado num futuro — o projeto sendo aquilo que vem se interpor entre o tempo presente e a morte certa — em que discursos racistas, fundamentalistas vêm se inserir onde faltam projetos de vida capazes de enlaçar o singular e o social.
Violência e apatia em todas as suas formas são, a nosso ver, os sintomas contemporâneos do mal-estar na civilização, tal qual definido por Freud, em sua obra de 1929, em que trata do trágico da condição humana, e que, não por acaso, é contemporânea do crack da bolsa de Nova York e da ascenção do nazismo na Alemanha. Na opinião de Peter Gay, é a obra mais sombria de Freud, aquela onde o autor encara a questão da miséria humana — o que talvez explique o súbito interesse que vem despertando nesse final de milênio, após de ter sido, durante muito tempo, considerada uma obra menor.
Psicanalistas, sociólogos e cientistas políticos parecem ter redescoberto Mal-estar na civilização e acreditamos que o próprio título deste número da revista São Paulo em Perspectiva não seja estranho a este fato.
A verdade é que Freud nunca aceitou que a teoria psicanalítica fosse reduzida a um mero ramo da medicina, razão pela qual, ao longo de toda sua obra, tentou alargar o campo de competência de sua descoberta. Sempre reivindicou um direito de vista sobre as ciências do espírito invocando a arte, a história das civilizações e religiões, mitologia, literatura e filosofia quando não a própria sociologia e pedagogia. No entanto, nunca se referiu explicitamente à política, embora "sua preocupação com a coisa política, quer por meio de alusões, metáforas ou perfifrases, seja por assim dizer onipresente" (Plon, 1998). A política diz respeito ao coletivo e Freud sempre trabalhou a articulação entre singular e coletivo, desde Totem e Tabu, de 1914 até Moisés e o Monoteísmo, de 1939, mas principalmente em Mal-estar na civilização.
Com Totem e Tabu, Freud inaugura sua teoria do fundamento do social e da cultura. E o que diz ele? Afirma que a sociedade nasceu de um crime do qual a humanidade não se libertará jamais: o assassinato do pai da horda primitiva, cometido pelos filhos em conjunto, ao qual seguiu-se a guerra civil entre os irmãos de uma mesma horda. Esse primeiro crime consistiu no mero prelúdio de uma série de assassinatos que parecem ser o corolário normal da existência humana em sociedade.
Precisamos admitir, infelizmente, admitir que tal acontecimento não pertence apenas à história, mas continua presente em nossos dias, no cerne de nossas preocupações atuais, até porque os meios colocados a serviço da guerra são, hoje em dia, infinitamente mais destrutivos que aqueles dos quais dispunham nossos antepassados. Esse primeiro conflito fratricida, seja qual for seu caráter mítico, longe de estar resolvido ou esquecido, continua em ação. Não se trata em absoluto de um momento histórico ultrapassado, mas de uma fantasma estruturante, comum a todos os mortais. Freudianamente falando, a humanidade nasce de um assassinato e o crime é fundador. Logo, não há como a violência não estar no âmago do humano, cada um de nós carregando em si o germe da guerra civil.
Visão certamente pessimista, que só foi se aprofundando no decorrer da obra freudiana. É assim que em Reflexões para os tempos de guerra e de morte, de 1915 — escrito enquanto seus dois filhos se encontravam na frente de batalha — ele apela para a metapsicologia para refletir sobre os horrores da Primeira Guerra Mundial, catástrofe que de fato inaugurou o século XX, e se pergunta se a humanidade constituída no crime e através do crime tem como não se dirigir inevitavelmente para a destruição.
Constata que o homem, desde que existe, nunca cessou de fazer guerras e de exterminar seu próximo. O homem primitivo, diz ele, levava a morte tão a sério que, quando se tratava do estrangeiro inimigo, a morte era bem-vinda e desejava-se provocá-la. Ser apaixonado, pior e mais cruel que os animais, nada o impedia de matar e devorar outros seres de sua mesma espécie. Quanto a nós, somos descendentes de ancestrais sanguinários, e, se renunciamos a tais pendores, foi única e exclusivamente porque fomos forçados pela civilização. Os valores morais da civilização não devem nos fazer esquecer a verdadeira natureza do homem, diz Freud, a de que o ser humano não é nem bom nem ruim, é ambivalente, coabitando nele ódio e amor, altruísmo e egoísmo.
O que não impede de nos perguntarmos por que em certos momentos da história prevalecem momentos de amor e altruísmo e, em outros, de ódio e egoísmo. E é justamente isto que nos ocorre: se diante desse miserável que encontramos temos a opção de estender a mão ou subir o vidro do carro e agredi-lo, por que cada vez mais essa segunda opção vem se generalizando e a primeira escasseando?
Talvez seja o próprio Freud que nos dê a resposta, em um livro escrito quase ao mesmo tempo que o anterior. É assim que em Luto e melancolia, de 1915, chama nossa atenção para o fato de que tanto o luto quanto a melancolia têm sua origem numa perda sofrida pelo indivíduo. A diferença reside no fato de que enquanto o enlutado paulatinamente assimila a ausência do objeto amado e retorna à conduta normal, o melancólico é incapaz de se livrar de seu tormento. Retomando uma hipótese de J. Hassoun (1995) acreditamos que essa indiferença que caracteriza nosso final de século pode ser uma manifestação melancólica da impossibilidade de fazer o luto de certas ideologias e sonhos de fraternidade que alimentaram, em parte, o homem do século XX.
Em Futuro de uma ilusão, de 1927, mostra que a cultura e a civilização preenchem uma função primária de interdições que se exercem de maneira privilegiada sobre três desejos instintivos: assassinato, canibalismo e incesto. Tais imposições são progressivamente internalizadas, o que não impede que os desejos oriundos desses três instintos sejam sempre suscetíveis de obter realização — Mal-estar na civilização começa onde o anterior terminou, com uma discussão com Romain Rolland em torno do sentimento religioso. Logo a seguir, Freud se pergunta o que querem, afinal, os homens? E tem a resposta na ponta da língua: os homens, afirma, aspiram à felicidade, embora tudo pareça se opor a tal programa, embora a infelicidade, devida à dor do corpo, à hostilidade do mundo exterior e, principalmente, à insatisfação decorrente do relacionamento com os outros, seja muito mais freqüente.
Ele não se contenta, no entanto, com a simples constatação e tenta analisar as mediações que o esforço humano elaborou coletivamente para compensar o desamparo — Hilflosigskeit como ele o chama —, entre elas o trabalho, a magia, a arte, a religião e o conhecimento científico. A função de tais mediações é, segundo ele, assegurar a regulamentação da relação do homem com a natureza e com seus semelhantes.
No capítulo III de Mal-estar na civilização, Freud levanta a hipótese de que o sofrimento humano poderia derivar, entre outros motivos, da insuficiência dos dispositivos que regulamentam a relação dos homens entre si. Coloca, assim, o problema do sofrimento humano frente a frente com o conjunto do campo simbólico. A insuficiência dos dispositivos não decorre de uma imperfeição de uma faculdade que figuraria no inventário humano, mas da ambivalência inerente ao campo simbólico. Mais do que tais dispositivos, o que está em jogo é a própria necessidade dos humanos em ter de recorrer a eles. Essa ambivalência é própria do humano enquanto tal. No campo dos fenômenos de civilização, é essa ambivalência que sugere a Freud a seguinte formulação: em decorrência de suas próprias invenções, o homem contemporâneo vê-se às voltas com uma extrema dependência e um perigo ameaçador.
Parece que o sujeito humano é incapaz de inventar dispositivos que aliviem seu sofrimento. O mal-estar no plano coletivo é o resultado da ambivalência dos sujeitos com relação àquilo que os humaniza. Mal-estar na civilização termina com uma advertência: nunca o destino do gênero humano esteve tão ameaçado, na medida em que jamais os indivíduos estiveram tão aptos a se exterminarem uns aos outros.
É ainda nesta obra que Freud aprofunda uma das três fontes do sofrimento humano: aquela que nasce do caráter insatisfatório das relações humanas, em virtude da universalidade da hostilidade dos homens uns em relação aos outros e da crueldade inerente ao ser humano.
Retomando o célebre Homo homini lupus, Freud refere-se explicitamente a Hobbes e chama a atenção para o fato de que, no cerne do desejo humano, é preciso reconhecer uma agressividade. Não se trata simplesmente de uma reação de defesa própria ao indivíduo que se encontra em situação de perigo, mas é instrumento e causa de seu gozo. Diz ele: "...essa tendência à agressão, que podemos perceber em nós mesmos e cuja existência supomos também nos outros, constitui o fator principal da perturbação em nossas relações com o próximo; é ela que impõe tantos esforços à civilização" (Freud, 1971:65).
Logo, a exploração econômica, o uso violento do corpo alheio, a humilhação, a opressão e o assassinato são figuras da agressividade. É possível, sim, unir os homens uns aos outros pelo amor. Para isso, no entanto, é preciso que alguns fiquem de fora para receber as manifestações de agressividade. Essa proposição é uma crítica severa ao mandamento cristão do "Ama a teu próximo como a ti mesmo", que Freud confessa não entender e afirma ser estranha aos primitivos. Eis o que diz a esse respeito: "Meu amor é algo infinitamente precioso que não tenho o direito de desperdiçar sem prestar contas (...) Se amo um outro ser, de alguma forma, ele tem que merecê-lo(...) Ele o merece se é tão melhor que eu que me oferece a possibilidade de amar nele meu próprio ideal. Mas se me é desconhecido, se não me atrai por nenhuma qualidade pessoal e ainda não desempenhou nenhum papel em minha vida afetiva, me é bastante difícil ter por ele a menor afeição (...) E, olhando mais de perto, esse estrangeiro não apenas não é digno de amor como, na maioria das vezes, para ser sincero, devo reconhecer que ele pode ser alvo da minha hostilidade e até de meu ódio Ele não parece ter por mim a menor afeição. Quando lhe é útil, não hesita em me prejudicar (...) pior ainda, mesmo que não lhe seja útil, desde que encontre aí algum prazer, não tem o menor escrúpulo em me ofender, em me caluniar" (Freud, 1971:62-63).
Esta longa citação nos parece extremamente importante, pois como tentamos demonstrar na tese O estrangeiro enquanto conceito limite entre o Psicanalítico e o Político, de 1997, ela permite enfatizar a idéia de que para Freud a fraternidade está fundada na segregação, o amor do semelhante no ódio do diferente, uma vez que amor e ódio são os dois sentimentos que movem o humano concomitantemente, o homem sendo ambivalente por natureza.
Para dar a essa agressividade seu fundamento teórico, Freud avisa o leitor que deverá levar em conta a teoria das pulsões, ou melhor, da dualidade pulsional que foi obrigado a elaborar após a Primeira Guerra Mundial, quando formula a hipótese de uma pulsão de morte como fator intrínseco e inseparável da força vital. É assim que em Além do princípio do prazer, de 1920, irá opor amor e ódio, Eros e Thanatos, considerando que esses conflitos pulsionais reinam, juntos e ao mesmo tempo, tanto sobre a vida inconsciente do indivíduo quanto sobre sua vida social — como mostra ao introduzir a pulsão de morte no social.
Para Freud não existe pulsão agressiva em si, mas há um dualismo pulsional que faz com que a pulsão de destruição seja freqüentemente erotizada, aliando-se à sexualidade. Nesse jogo entre Eros e Thanatos, para escapar à autodestruição, o indivíduo é levado a destruir o outro, ainda que sua necessidade de amor contrarie essa pulsão. Talvez isso explique por que os atos de violência têm sempre seus observadores apaixonados.
Enquanto conceito, a pulsão de morte é um monstro lógico e, por isso mesmo, apto a designar a realidade humana como monstruosa em relação à de outros seres vivos. Basicamente, suprime qualquer esperança de uma possível harmonia entre o homem e o mundo, entre o homem e si mesmo, entre seu bem e seu desejo. Esse conflito entre Eros e Thanatos, que atravessa tanto o processo civilizatório quanto o desenvolvimento individual, obriga-nos a concordar com B. Edelman que em seu texto Relire Malaise dans la Civilization (1994) afirma que "na essência do homem não encontramos nem amor pelo saber, nem desejo de verdade ou justiça, nem tampouco vontade de paz universal, mas ódio, violência ou, pior ainda, amor pelo caos e pelo desastre". E que "a humanidade é suicida, pois, por um paradoxo inexplicável, se esforça por destruir aquilo que faz sua grandeza. O direito não cessa de ser contestado pela selvageria, a democracia pela tirania, a cultura pelo auto-da-fé". Nesse final de século marcado pela dor, morosidade, banalidade dos projetos e ideais, fracasso das instituições, desencantamento, nostalgia, frutos da decepção ressentida pelos cidadãos em relação à política e àqueles que a encarnam, fica a impressão de que as constatações de Freud nada têm de anacrônico. Aos horrores já vividos nesse século XX — duas guerras mundiais, bomba atômica e várias guerras civis, que fizeram dele, na opinião de A. Finkelkraut (1998), o mais terrível da história da humanidade — podemos ainda acrescentar novos horrores econômicos e ecológicos, frutos do desenvolvimento cada vez maior da tecnologia, que pretensamente deveria garantir o bem-estar.
Não resta dúvida de que vivemos um período sui generis. A própria idéia de unidade do gênero humano, conquistada a duras penas pelos tempos modernos, já deu provas neste nosso século que não pode ser manipulada ingenuamente. Temos assistido com assombro, nos lembra o autor, à vaga condescendência com que o mundo observa a banalização de milhares de vidas a quem é recusada a dignidade de sua condição humana.
A nova ordem mundial que vem se instalando atinge todo o planeta. Suas características são peculiares: uniformização cada vez maior da vida cotidiana, normalização dos indivíduos, ausência absoluta de projetos, tanto coletivos quanto individuais, e uma aparente incapacidade de revolta... e não que nos faltem motivos para tanto. Nos termos de Finkelkraut, o homem moderno acabou se tornando um turista virtual, passando de cidadão a observador que, conectado à rede mundial de computadores, abole a topologia e a experiência humana, por demais humana, da vizinhança. Em vez da disposição de partilhar o mundo com outros homens, o que se tem é a mundialização do Eu.
Politicamente, assiste-se ao fim do Estado-Nação, em proveito de um aquém (região) ou de um além (mundo, bloco econômico). A repressão não tem mais rosto, salvo esporadicamente em alguns lugares e em certos momentos. Sociologicamente, assiste-se àquilo que chamaria de tribalização do mundo, caracterizada pela importância cada vez maior que os grupos étnicos vêm assumindo no mundo de hoje, dos quais o politicamente correto é uma das manifestações mais significativas e aberrantes. Antagonismos étnicos, lingüísticos e religiosos que haviam sido recalcados pela Guerra Fria parecem estar explodindo em todos os cantos do mundo. Isso explica o ressurgimento do racismo e de fanatismos religiosos em diversas partes do mundo, que acabam desembocando em guerras fratricidas, seja entre comunidades de um mesmo país (vide ex-Iugoslávia), entre etnias (ex-Zaire), ou entre classes sociais (Brasil), quase como se a guerra civil generalizada fosse, hoje em dia, a Terceira Guerra Mundial.
Esta parece ser uma questão da maior importância e atualidade. Basta olharmos em torno de nós: África, América Latina, ex-Europa do Leste, Ásia: a guerra civil vem sendo utilizada por nossa civilização para regulamentar, segundo uma certa lógica, conflitos entre nações, homens, sejam quais forem as diferenças entre raças, culturas, religião.
Economicamente, a especulação financeira vem se tornando mais importante que a produção industrial, os papéis financeiros levando à acumulação do capital e à falsificação da riqueza, que até pouco tempo atrás era mensurável em termos de produção e de capacidades industriais. Com a vitória do liberalismo, a empresa passa a dar prioridade absoluta aos acionários em detrimento dos assalariados e trabalhadores em geral. A palavra de ordem é preferir a rentabilidade instantânea, medida pela Bolsa, a investimentos de longo prazo.
Dito de outro modo, valorizar o presente em detrimento do futuro. O mesmo acontece com as decisões macroeconômicas, que também valorizam sistematicamente o presente em detrimento do futuro. O elevado nível da taxa de juros, o medo obsessivo da inflação e a resignação perante o desemprego, tudo isso faz parte das representações coletivas de uma depreciação do futuro.
Do ponto de vista da cultura, ela deixou de ser o que costumava ser na sociedade ocidental, uma cultura-revolta, para se transformar cada vez mais numa cultura-show, cultura-divertimento.
Do ponto de vista do indivíduo, este tem cada vez mais dificuldades de se projetar num futuro. Acreditamos que o projeto, a utopia, sejam psiquicamente necessários ao sujeito. Quando nos referimos a projeto, não estamos defendendo esta ou aquela crença, esta ou aquela posição intelectual, mas tão apenas a capacidade de projetar o futuro, acreditar no próprio tempo.
A criança para crescer precisa de um marco no horizonte. É por isso que diz: quando crescer vou ser bombeiro... ou qualquer outra coisa. O importante é que possa se pensar a si mesma, projetando-se um futuro. O mesmo acontece com o adulto, precisa de idéias, representações que se interponham entre o momento presente e o fim da vida: a morte. O deprimido é justamente aquele que não possui mais nenhuma ilusão a não ser a idéia da morte como único indício de um horizonte temporal e espacial. Ele é o avesso exato das normas de socialização. Não por acaso as pessoas vivem cada vez mais na base de pílulas da felicidade. Do Prozac ao Viagra, parece que a tal felicidade que, como dizia Freud, é o objetivo dos homens, só em pílulas e na farmácia da esquina.
Em vez de sonhos e utopias, temos no máximo discursos que prometem o fim da miséria e dias melhores, designando um bode expiatório culpado por todos os males e prioritariamente pelo desemprego: a grande ameaça deste final de século. É isso que explica o recrudescimento das xenofobias nos países industrializados, por exemplo, assim como a violência cada vez mais exacerbada contra os excluídos do sistema no Brasil. Chacinas cotidianas, violência contra os sem-terra, invasão do Carandiru e chacina da Candelária, não são os exemplos que faltam.
Era possível até pouco tempo atrás lutar coletivamente contra o patrão ou contra uma classe, mas como lutar contra a globalização? O cidadão moderno está sem rumo e ora se refugia na indiferença, ora parte para a violência contra aquele que imagina estar impedindo sua "felicidade", roubando-lhe algo que no fundo nunca lhe pertenceu.
Atribuímos a essa falta de projetos, coletivos ou individuais, o fato de a depressão ter-se tornado nos dias de hoje um mal social, a ponto de poder afirmar que o deprimido se tornou hoje em dia a figura patológica desse final de século, como afirma A. Ehrenberg em seu livro La fatigue d'être soi (1998), no qual explora as formas extremas do individualismo contemporâneo. Em sua obra, o termo depressão recobre um conjunto heterogêneo de sintomas: astenia, indiferença, inibição, embotamento do corpo e do pensamento. O deprimido, a seu ver, sente como que uma espécie de cansaço de existir, não deseja, e se sente vazio.
O que estará acontecendo? Sempre na reflexão, a nosso ver, bastante original do autor, a depressão do indivíduo contemporâneo é conseqüência de duas transformações: uma interna e outra externa. Do ponto de vista social, ela tem a ver com o declínio do modelo disciplinar que obrigava os indivíduos a viver em conformidade com as proibições em respeito à autoridade. E, do ponto de vista psicológico, ela é a patologia de uma sociedade em que a norma não é mais fundada sobre a culpabilidade e a disciplina. O indivíduo contemporâneo, diz ele, libertou-se ou acreditou ter-se libertado dos sistemas de coerção e inscrição nas instâncias dos deveres coletivos. O ideal do eu passou a se situar, a partir daí, do lado de um desenvolvimento sem entraves das potencialidades do indivíduo. Deixou de se sentir atraído por um fora, por um dever, e dividido internamente por um conflito que pode suscitar culpa e angústia.
Em nossos dias, afirma Ehrenberg, a depressão ameaça o indivíduo como o pecado assombrava a alma dirigida para Deus ou a culpa ameaçava o homem marcado pelo conflito. Vivemos em um mundo caracterizado por uma série de transgressões sem interdições, de escolhas sem renúncias, razão pela qual, mais que uma miséria afetiva, a depressão contemporânea vem se transformando num modo de viver.
Concordamos inteiramente com o autor. Cansados e vazios, agitados e violentos, vivemos um tempo sem futuro. Somos, segundo H. Arendt, homens "ressentidos". Ressentidos contra tudo que nos é dado, inclusive nossa própria existência, ressentidos contra o fato de que não somos criadores nem do universo nem de nós mesmos. Levados por esse ressentimento fundamental a não ver o menor sentido no mundo tal como se apresenta, o homem moderno, na opinião de H. Arendt, proclama que tudo é permitido e crê secretamente que tudo é possível. Sempre segundo a autora, a gratidão é a única alternativa ao niilismo do ressentimento, gratidão fundamental pelas coisas elementares que nos são dadas: a própria vida, a existência do homem e o mundo. E aqui é fundamental salientarmos que são os homens, e não o homem, que habitam o mundo. E os homens incluem esses miseráveis que evitamos, dos quais nos desviamos, dos quais sentimos medo e que nos são indiferentes. Enquanto o indivíduo contemporâneo não reencontrar sua capacidade de revolta e indignação, continuaremos em pleno ressentimento e longe de qualquer possibilidade de gratidão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANCORI, B. "Effacement du tiers et identité du sujet. Les leçons de la Grèce ancienne et de l'Occident médiéval". In: Figures du sujet dans la modernité. Paris, Arcanes, 1997.
EDELMAN, B. "Relire malaise dans la civilisation". Cesure, n.4, 1994.
EHRENBERG, A. La Fatigue d'être soi. Paris, Editions Odile Jacob, 1998.
FINKELKRAUT, A. A humanidade perdida. São Paulo, Ática, 1998.
FREUD, S. "Considérations actuelles sur la Guerre et sur la Mort". In: Essais de psychanalyse. Paris, Petite Bibliothèque Payot, 1984.
______. Deuil et melancolie in metapsychologie. Paris, Gallimard, 1968.
______. Malaise dans la civilisation. Paris, PUF, 1971.
HASSOUN, J. La cruauté mélancolique. Paris, Aubier, 1995.
HOUBBALLAH, A. Le virus de la violence. Paris, Albin Michel, 1996.
KOLTAI, C. "Conferência 68". Família e modernidade, ano II, n.2, set. 1998, p.17-25.
LANDMAN, P. "Quelques élements cliniques de l'exclusion". Revue Internationale de Psychanalyse, n.6 "La Cruauté du Collectif", 1997.
PLON, M. "De la politique dans le malaise au malaise dans la politique". In: Autour du malaise dans la culture. Paris, PUF, 1998.
ZYGOURIS, R. "De alhures ou de outrora ou o sorriso do xenófobo". In: O estrangeiro. São Paulo, Escuta, 1998.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

ÉTICA E HEROÍSMO

Ser ético, ser herói

Quem viu o filme Casa da Rússia, com Sean Connery e Michele Pfeiffer? Numa certa altura, entusiasmado, o editor inglês que é representado por Sean Connery diz: “Hoje, para alguém ser uma pessoa decente, precisa ser herói”. É uma frase fortíssima, que muda toda a história que vai acontecer depois – e que por isso mesmo eu não vou contar. Mas quer isso dizer que, hoje, para ser ética, uma pessoa tem que ser heróica? Ficou tão difícil a ética, assim?
É o que ouvimos quase todo dia. Os brasileiros dão muita importância à ética. Dividimos o mundo em gente decente e indecente. Quando algo dá errado, por exemplo uma política pública, automaticamente se pensa em roubalheira, não em incompetência.
Mesmo os bandidos falam em ética. Na cadeia, punem sem piedade quem abusou sexualmente de crianças ou de mulheres. É comum até um criminoso falar na sua “ética”, nos seus valores.
Também, quando tratamos um serviço, é freqüente a pessoa contratada explicar por que ela faz tão bem o seu trabalho e, sobretudo, por que não pratica certas desonestidades que seus colegas (jura ela!) fazem.
Acredite, claro, quem quiser. Mas faz parte do nosso discurso social, da nossa fala com o outro, afirmar: eu sou ético, num mundo em que o resto não o é. Eu sou do bem. O mundo está de pernas para o ar, tudo está errado, mas eu não.
Aqui temos então duas grandes idéias fortes da brasilidade. A primeira é que as coisas em geral não andam bem. A economia nos aperta, a sociedade está complicada, até a amizade e o amor estão em crise. Percebemos bem essa devastação e ela nos incomoda. Mas a segunda idéia é que eu, pessoalmente, ajo bem. Sou honesto.
Serei herói? Aqui é que estão as coisas. Boa parte do auto-elogio (eu sou o único decente num mundo de bandidos) é mentira. Basta ver como termina o serviço do profissional que gabou sua honestidade: tão ruim quanto o dos outros, ou mesmo pior. Então, parece que o personagem da Casa da Rússia tem razão: a ética virou artigo raro. Ser ético é mostrar-se capaz de heroísmo.
Vale a pena então irmos, deste filme recente, baseado num livro de John Le Carré, para a tragédia grega Antígone, que Sófocles escreveu no século V antes de Cristo. Penso que toda reflexão sobre a ética deve começar por ela.
Antígone é filha de Édipo. Dois de seus irmãos lutam pelo poder, e ambos morrem. O trono fica então com seu tio, Creonte, que manda enterrar um dos sobrinhos com todas as honras – e deixar o corpo do outro aos abutres. Antígone não aceita isso. Participa do enterro solene de um irmão e depois sepulta, com os ritos religiosos, o outro, o proscrito.
O rei fica furioso. Está convencido de que é uma conspiração contra ele. Manda descobrir quem violou suas ordens. Ao saber que é a sobrinha, tenta poupá-la: se ela negar que foi ela, ou se pedir desculpas, enfim, ele lhe dá todas as saídas – sob uma condição só, de que ela negue o seu ato. Antígone se recusa e é executada.
Essa história é exemplar. Ela mostra que há um conflito latente entre a ética e a lei. Um governante dá ordens. Estas podem ser legítimas ou não. Creonte fez o que não devia, moralmente, mas é ele quem manda. A lei está com ele. Neste caso, o que fazer?
Vou passar a um caso relativamente recente. Um tempo atrás, eu estava na França, quando um homem morreu na calçada, em frente de uma farmácia, sem que ninguém o acudisse. O farmacêutico explicou: se tocasse no outro, se tornaria responsável por ele. Só um médico poderia fazê-lo. Descobriu-se, porém, que bastaria um remédio simples para salvar o rapaz da morte. O que fazer?
Assisti então a um amplo debate. Foi sugerida uma mudança na lei, para que as pessoas pudessem acudir a seus próximos sem serem processadas, quando agissem de boa fé. Também se propôs um sistema de atendimento mais rápido das emergências. Mas quem, a meu ver, resolveu a questão foi um jornalista, que disse mais ou menos o seguinte:
- Se precisarmos de uma lei que autorize as pessoas a agirem humanamente, a socorrerem os outros sem pensar nos castigos e riscos que correm, não estará tudo perdido? Porque nunca as leis vão prever todos os casos. Sempre, para alguém agir bem, de maneira ética, em solidariedade com os outros, haverá um terreno incerto, um espaço que pode até ser ilegal.
- Precisamos de uma lei nos permitindo ser decentes?, continuou ele. Ou deveremos estar preparados para correr os riscos, até mesmo de sermos presos, quando um valor mais alto se erguer, o valor do respeito do outro?
É este o heroísmo de que falava o personagem da Casa da Rússia. É este o heroísmo que Antígone praticou. E ele exige que, às vezes, estejamos dispostos a infringir a própria lei, a desobedecer às regras, quando for em nome de um valor superior. Em nosso mundo, este valor mais elevado pode ser, antes de mais nada, a vida de alguém. Aliás, costuma haver polêmica sobre o chamado “furto por necessidade”, quando um esfomeado furta comida para sobreviver: isso não é um crime.
Mas as coisas podem ir mais longe. Maria Rita Kehl elogiou aqui, na semana passada, o líder dos sem-terra João Pedro Stédile. O que vale mais, a lei de propriedade da terra, que perpetua uma exclusão social enorme, ou o direito das pessoas a viver, e acrescento, a viver dignamente? Do ponto de vista ético, é claro que vale mais o direito à vida digna.
Nem sempre foi assim. Um pregador puritano inglês do século 17, Richard Baxter, tem uma frase horrorosa. Na época, enforcava-se quem roubasse um pedaço de pão. Ele justifica isso: a vida dos pobres, explica, não vale grande coisa, ao passo que o atentado à propriedade destruiria os fundamentos da própria sociedade.
Não há consenso a este respeito. Uns defendem os sem-terra, outros os atacam. Mas o que quero levantar aqui é algo mais forte: é que a ética e a lei não coincidem necessariamente. Muitas vezes, ser decente exige romper com a lei. Foi assim sob o nazismo e sob todas as formas de ditadura. É assim também quando a desigualdade ou a injustiça impera.
Aí, sim, o ser humano precisa ser heróico. Porque violar a lei, mesmo que seja por um valor moral relevante, significa sofrer as penas da lei. Numa sociedade decente, imagino que o juiz não mandará para a cadeia quem infringiu as normas legais devido a valores morais mais altos, como os que citei. Mas não há garantia nenhuma disso. Pode ser que a pessoa seja punida, mesmo.
E é importante insistir nisso. O que queremos nós: cidadãos obedientes à lei, a qualquer lei, ou sujeitos éticos, decentes? O ideal é juntar as duas coisas. Mas, na educação, devemos apostar na autonomia, isto é, na formação de pessoas que sejam capazes de decidir por si próprias. O que significa que, em casos raros e extremos, elas tenham a coragem de enfrentar o consenso social e suportar as conseqüências de seus atos.
Isso, para terminar, pode fazer de qualquer um de nós um pequeno herói. O heroísmo não está só nas personagens da mitologia grega ou nos super-heróis da TV. Ele pode estar presente quando cada um de nós enfrenta uma pequena prepotência, em nome de um valor mais alto – desde, claro, que arque com os resultados de sua ação e que além disso lembre que é falível e pode estar errado. Mas é desses pequenos heroísmos pessoais que depende a dignidade humana.


Renato Janine Ribeiro


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

SOCIEDADE FRACTAL

MENSALÕES

"Mensalões" e questão moral

Cláudio Bernabucci

A questão moral não se esgota na necessidade de descobrir ladrões e corruptos nas altas esferas da política e da administração, denunciá-los e mandá-los para a cadeia. A questão moral deve ser vista na ocupação do Estado por parte dos partidos políticos... que hoje são, sobretudo, máquinas de poder e clientela, com escassas ideias e poucos ideais..."
Esse pensamento, que parece se adaptar muito bem às crônicas recentes, na realidade recente não é: pertence a Enrico Berlinguer, líder do eurocomunismo, que o manifestou em uma famosa entrevista ao jornal La Repubblica, em julho de 1981. Como muitas vezes acontece aos homens visionários, a história deu-lhe razão: a partir de 1993, os inquéritos chamados ManiPulite (Mãos Limpas) resultaram na eliminação dos partidos que tinham governado a Itália por 50 anos.
Longe de mim a tentação de estabelecer paralelismos mecânicos entre a situação italiana de então e a brasileira de hoje, colocadas em contextos políticos tão diferentes. Acredito, porém, que a reflexão histórica sempre desnude elementos úteis para entender o presente, assim como tempere asperidades polémicas contingentes habilitadas a ofuscar o pensamento.
Assistindo ao debate brasileiro sobre corrupção e política, a impressão do observador é de perigosa polarização e exasperação. Esquematizando, eu diria que, por um lado, se manifesta uma corrente de opinião que tende a dar ao processo do "mensalão" uma distorcida valência transcendental, atitude associada à tentativa de politizar ao máximo o processo para que a parte política sob juízo resulte mortalmente prejudicada. A agressividade desse movimento, liderado pela chamada grande imprensa, assume brados justiceiros que pouco combinam com leniências anteriores diante de outras tenebrosas transações do passado recente. Por outro lado, a corrente oposta expressa uma espécie de "relativismo" do pensamento crítico. Tal posição considera a corrupção como mal endêmico do Brasil, cuja história estaria cheia de "mensalões". Nas manifestações mais ingênuas dessa opinião, chega-se a minimizar a conduta dos réus, com a justificativa de que estes teriam sido só "alunos mal aplicados", sem habilidade na emulação de modelos alheios. Consequência: sendo a corrupção um mal comum a todos os partidos e a toda a sociedade, por que motivo começar a limpeza pêlos (ex) representantes da classe trabalhadora? Não é minha intenção tentar uma resposta à questão, mas apenas evidenciar que, entre posições extremas dominantes, a razão fica sacrificada.
Outra impressão das polêmicas em curso é que se debate muito sobre teorias e precedentes jurídicos, sobre corruptos e corruptores, mas muito menos sobre as medidas de combate à corrupção daqui para a frente.
A corrupção não é prerrogativa tropical ou latina, mas um mal ligado intrinsecamente ao poder, de qualquer dimensão e latitude. Portanto, não se combate com saltuárias companhas de moralização ou pela aplicação de virtudes episódicas, e sim com o fortalecimento constante da democracia. A corrupção não pode ser derrotada, mas pode ser limitada através do fortalecimento da independência dos Três Poderes, graças a instituições transparentes e a uma rica articulação de pesos, contrapesos e controles dos poderes, sejam políticos, sejam econômicos. Informação pluralista, assim como participação ativa e vigilância das organizações da sociedade, deveria ser necessária para reduzir ao mínimo as ameaças sempre presentes desse câncer da sociedade. Fazer boa política, poderíamos dizer em síntese, é o melhor antídoto contra a doença. Portanto, a ilusão de que, fora da política ou contra a política, é possível moralizar a sociedade, seria simplesmente trágica.
O caso italiano, desse ponto de vista, é exemplar e mereceria ser estudado. O aniquilamento dos partidos de governo, seguido aos "históricos" processos contra os corruptos da Primeira República, abriu espaço à experiência populista e subversiva de Sílvio Berlusconi. Apresentando-se como o antipolítico por excelência, com a promessa de cortar impostos e redimensionar o Estado, fundou um partido de sua propriedade e passou a ocupar o Estado com ainda maior voracidade do que os antecessores, endividando-o até quase a falência.
No Brasil, analogamente, a crise da política representa o ponto mais vulnerável do sistema nacional e o "mensalão" é o seu mais evidente epifenômeno. O julgamento final do Supremo provavelmente punirá com severidade a parte política envolvida, mas não há dúvida de que a política brasileira na sua totalidade será abalada. Evitando a tentação suicida do aniquilamento recíproco, os partidos bem fariam em promover uma profunda reforma da política, único antídoto contra a deriva atuaL e a refletir, em paralelo, se a definição da questão moral, acima citada, pode ser aplicada ou não à história brasileira.

Carta Capital/10de outubro de 2012

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

ECONOMIA CAPITALISTA EM CRISE - ENTREVISTAS

1ª ENTREVISTA
 “A economia capitalista está em crise e as contradições tendem a se aguçar”
ter, 2012-04-10 15:27 — Marcelo
Na visão do professor Armando Boito, o atual modelo neodesenvolvimentista brasileiro colabora para tal acirramento  09/04/2012. Nilton Viana, da Redação
 O professor da Unicamp Armando Boito acredita que o neoliberalismo representa, em todo o mundo, uma ofensiva da burguesia contra os trabalhadores. Segundo ele, para nós da América Latina, representa uma ofensiva das economias imperialistas contra as economias dependentes latino-americanas.

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Boito afirma que o modelo de desenvolvimento brasileiro é neodesenvolvimentista, que é, segundo ele, o programa de uma frente política integrada por classes e frações de classe muito heterogêneas. Para o professor, essa é a frente que sustentou os governos Lula da Silva e que, agora, sustenta o governo Dilma.
“As organizações revolucionárias devem participar criticamente dessa frente porque o seu programa atende apenas de modo marginal e muito restrito os interesses das classes populares”, defende. Boito afirma também que o movimento popular deva levantar a bandeira da independência nacional. Além disso, deve pressionar o governo brasileiro para que ele se coloque contra as sucessivas intervenções militares dos EUA e da OTAN nos países da África e da Ásia.
 Brasil de Fato – Como você avalia o atual modelo de desenvolvimento brasileiro?
Armando Boito – Eu penso que o modelo capitalista vigente no Brasil ainda é o modelo neoliberal, embora esse modelo tenha passado por um período de reforma. Essa reforma aparece na política econômica neodesenvolvimentista e nas políticas sociais da década de 2000. Explico. O neoliberalismo representa, em todo o mundo, uma ofensiva da burguesia contra os trabalhadores e, para nós da América Latina, representa, ademais, uma ofensiva das economias imperialistas contra as economias dependentes latino-americanas. Essa dupla ofensiva traduziu-se, como sabemos, em aumento do desemprego, no corte de direitos trabalhistas e sociais, na reconcentração da renda, nas privatizações, na hipertrofia da acumulação financeira, na abertura comercial e na desindustrialização forçada de países da América Latina. Pois bem, embora os governos Lula e, na sua sequência, o governo Dilma não tenham revertido essa dupla ofensiva e tampouco suprimido os seus principais resultados, esses governos moderaram os efeitos negativos do modelo capitalista neoliberal no que respeita às condições de vida da população trabalhadora e no que concerne à proteção do capitalismo brasileiro. A economia voltou a crescer, o emprego e o salário cresceram, o programa de privatização foi contido e, como podemos ver no presente momento, o governo Dilma se esforça por proteger a indústria interna da concorrência dos importados barateados pelo câmbio alto.
Embora o capitalismo neoliberal não tenha sido substituído por um modelo novo, voltado para as necessidades mais sentidas das massas trabalhadoras, podemos observar um contraste entre, de um lado, a situação brasileira e também de vários países latino-americano, e, de outro lado, a situação dos principais países da Europa. Enquanto assistimos a uma nova e forte ofensiva burguesa neoliberal na Inglaterra, na França, na Itália, em Portugal e em outros países europeus com seus governos majoritariamente neoliberais ortodoxos, na América Latina, onde prosperaram os governos de centro-esquerda e de esquerda, o que vemos são tentativas de moderar o capitalismo neoliberal (Brasil e Argentina) ou mesmo de substituir esse modelo (Bolívia, Venezuela). São respostas diferentes para a crise iniciada em 2008.
 Como é que você caracteriza o neodesenvolvimentismo dos governos Lula e Dilma?
O neodesenvolvimentismo retoma a velha aspiração desenvolvimentista, mas o faz em condições históricas novas e com ambição menor. O neodesenvolvimentismo é o desenvolvimentismo possível dentro do modelo capitalista neoliberal. Vou destacar cinco diferenças importantes que o distinguem do desenvolvimentismo do período 1930-1980 e que o distinguem, especialmente, da fase em que o velho desenvolvimentismo esteve unido ao populismo entre 1930 e 1964.
O neodesenvolvimentismo, quando comparado ao desenvolvimentismo do século passado,



a) apresenta taxas de crescimento econômico bem mais modestas; b) confere importância menor ao mercado interno, isto é, ao consumo das massas trabalhadoras do país; c) dispõe de menor capacidade de distribuir renda; d) aceita a antiga divisão internacional do trabalho, promovendo uma reativação, em condições históricas novas, da função primário-exportadora do capitalismo brasileiro; e) é dirigido politicamente por uma fração burguesa, a qual nós denominamos burguesia interna, que perdeu toda veleidade de agir como força antiimperialista. Todas essas cinco características, que se vinculam umas às outras, fazem do neodesenvolvimentismo um programa muito menos ambicioso que o seu predecessor e tais características advêm do fato de o neodesenvolvimentismo ser a política de desenvolvimento possível dentro dos limites dados pelo modelo capitalista neoliberal. As taxas menores de crescimento do PIB são as taxas possíveis para um Estado que, para poder rolar a dívida pública, aceita abrir mão do investimento; o papel de menor importância conferido ao mercado interno é decorrente do compromisso político em manter a abertura comercial; a reativação da função primário-exportadora é a opção de crescimento possível para uma política econômica que não pretende retomar as posições que o capital imperialista obteve no mercado nacional; todas as características anteriores desestimulam ou impedem uma política mais forte de distribuição de rendas.
 Do ponto de vista político, quais sãs as forças que sustentam esse modelo de desenvolvimento?
O neodesenvolvimentismo é o programa de uma frente política integrada por classes e frações de classe muito heterogêneas, frente essa que sustentou os governos Lula da Silva e que, agora, sustenta o governo Dilma. Essa frente representa prioritariamente os interesses de um setor importante da burguesia brasileira que é a grande burguesia interna.
A burguesia não é uma classe homogênea, ela encontra-se dividida em frações cujos interesses de curto prazo diferem entre si em decorrência das situações distintas vividas pelas empresas no processo de acumulação capitalista (banco, indústria e comércio; grande capital, médio capital; exportação, importação etc.) e em decorrência do perfil da política econômica do Estado. A fração que denominamos grande burguesia interna brasileira é integrada por grandes empresas de variados setores da economia. O que unifica essas empresas é a reivindicação, motivada pela política econômica de abertura comercial e de desnacionalização da década de 1990, de proteção do Estado na concorrência que elas empreendem com o capital estrangeiro. Essa fração burguesa quer o investimento estrangeiro no país, mas pretende, ao mesmo tempo, preservar e ampliar as suas posições no capitalismo brasileiro – é por isso que a denominamos burguesia interna e não burguesia nacional que pode, essa última, assumir posições antiimperialistas. Vê-se que, ao contrário de uma ideia bastante corrente, a chamada “globalização” não fundiu a burguesia dos diferentes países numa suposta burguesia mundial.
 Mas essa grande burguesia interna ganhou com o neoliberalismo. É ela a força dirigente da frente política neodesenvolvimentista?
A grande burguesia interna brasileira também ganhou com o neoliberalismo ortodoxo da década de 1990. Teve ganhos com redução dos direitos trabalhistas e sociais, com o desemprego que dobrou o sindicalismo e, ponto importante, aumentou o seu patrimônio com a compra, a preço vil, de grandes empresas estatais. Porém, essa fração burguesa

acumulou, nesse mesmo período, contradições com aspectos específicos do modelo capitalista neoliberal e passou a reivindicar proteção do Estado para não ser engolida pelo grande capital financeiro internacional – ou seja, passou a reivindicar justamente aquilo que a burguesia condena, em teoria, no seu discurso ideológico. A ascensão de Lula representou, acima de tudo, a ascensão dessa fração da burguesia em disputa com o grande capital financeiro internacional. A priorização dos interesses dessa fração do grande capital pelo Estado brasileiro aparece em inúmeros aspectos da política econômica dos governos Lula e Dilma. Aparece no abandono a frio da proposta da ALCA, na nova política de créditos do BNDES que visa à formação dos chamados “campeões nacionais” para diferentes setores da economia, na inversão da política de comércio exterior da era FHC, visando obter saldos crescentes na balança comercial, na legislação que prioriza as empresas instaladas no país para as compras do Estado e das empresas estatais, na nova política externa que visa fortalecer as relações Sul-Sul e, como estamos vendo neste momento, nas iniciativas do governo Dilma, visando proteger a indústria interna. Pois bem, a grande burguesia interna é a força dirigente da frente política neodesenvolvimentista, ou seja, é essa fração de classe que define os objetivos prioritários e os métodos de intervenção política da frente. O seu objetivo é o crescimento econômico com maior participação das empresas predominantemente nacionais e das empresas estrangeiras aqui radicadas, uma maior proteção do mercado interno e o apoio do Estado para a conquista de mercados externos para a exportação de mercadorias e serviços e também para a expansão dos investimentos das empresas brasileiras no exterior – construção civil, exploração mineral, siderurgia, bioenergia etc.
E  você entende que há uma aliança dessa burguesia com as classes populares?
Não exatamente. Como já indiquei, é verdade que o programa neodesenvolvimentista contempla também, ainda que de maneira periférica ou pontual, alguns interesses das classes populares – operariado urbano, baixa classe média, campesinato e a massa empobrecida pelo desemprego e pelo subemprego. Porém, nós estamos utilizando a expressão frente política, e não aliança de classes, para caracterizar as relações que se estabelecem entre as diferentes classes e frações de classe que compõem as bases sociais do programa neodesenvolvimentista porque a unidade entre essas forças é um tanto frouxa e não se baseia em um programa político claro, que tivesse sido assumido, conscientemente, pelas organizações das diferentes classes e frações de classe que integram o campo neodesenvolvimentista. Às vezes e para alguns setores da frente desenvolvimentista as relações se aproximam daquilo que poderíamos denominar uma aliança de classes. Estamos vendo isso agora na ação conjunta das centrais sindicais e do grande empresariado industrial para pressionar o governo Dilma para que tome medidas de proteção à indústria instalada no país. Porém, no plano político e em geral não é assim que se dão as relações entre as forças que compõem o campo neodesenvolvimentista. É por isso que prefiro falar em frente e não em aliança de classes. Mas, tanto na frente quanto na aliança a base é algum tipo de convergência de interesses.
Como é que os interesses populares são contemplados pelo neodesenvolvimentismo?
Entre as classes populares, o crescimento econômico também é bem-vindo. Depois da “década perdida” do reinado tucano, o crescimento é o elemento que une essa frente. Porém, os trabalhadores querem crescimento com emprego de qualidade, com melhoria salarial, com distribuição de terra, enfim, querem que o crescimento favoreça as grandes massas. É nesse ponto que se instaura o conflito entre a força dirigente e as forças subordinadas dessa frente política.
Esse conflito, convém destacar, tem se mantido, contudo, no terreno da luta econômica. No terreno político, quando o neodesenvolvimentismo é ameaçado, as classes e frações de classe que compõem a frente, agem de maneira unitária – aconteceu isso na chamada “crise do mensalão” em 2005 e nas eleições presidenciais de 2006 e de 2010. Em todas essas conjunturas, a grande burguesia interna, por intermédio de suas principais associações, e as classes populares, por intermédio de partidos, movimentos e sindicatos, apoiaram Lula e Dilma contra a oposição dirigida pelo PSDB.
Você entende que as direções dessas organizações populares teriam sido cooptadas pelo governo, como sugerem alguns observadores?
Não, eu não aceito essa análise. Os trabalhadores tendem a apoiar a frente neodesenvolvimentista devido a melhorias reais que obtiveram no emprego, no salário, na política de assistência social (bolsa família, auxílio de prestação continuada) e, no caso dos pequenos proprietários rurais, no crédito agrícola. Tivemos uma recuperação do salário mínimo, embora esse ainda permaneça num patamar baixo quando comparado até com o dos principais países da América Latina. Tivemos, também, uma grande melhoria nas convenções e acordos coletivos de trabalho: ao contrário do que ocorria no início da década de 2000, quando cerca de 80% das negociações salariais resultavam em reajustes inferiores à inflação, nos últimos anos a situação se inverteu – mais de 80% das convenções e acordos estabelecem reajustes acima da taxa de inflação. As condições para a organização e para a luta sindical melhoraram muito. Temos tido aumento real de salários. Os governos Lula e Dilma promoveram também uma política de integração racial, favorecendo a população negra que é uma parte muito importante das classes trabalhadoras. Parte da classe média foi contemplada com a reabertura dos concursos públicos, com a expansão das universidades federais e com as bolsas e financiamentos para o ensino superior. É verdade, contudo, que há setores populares que não ganharam quase nada. Talvez o mais marginalizado pela política neodesenvolvimentista seja o campesinato sem-terra, pois os governos Lula e Dilma reduziram muito o ritmo das desapropriações. Porém, o apoio das direções de organizações populares, das centrais sindicais e de partidos de esquerda aos governos da frente neodesenvolvimentista não é, de maneira nenhuma, um apoio desprovido de base real, ao contrário do que sugere a noção de cooptação, e tampouco tal apoio contraria a aspiração da maior parte das bases sociais dessas organizações.

Da maneira como você expôs, pode parecer que todas as classes sociais participam da frente política neodesenvolvimentista, que ela não teria inimigos na sociedade brasileira.
Não é o que penso. A frente neodesenvolvimentista se bate contra o campo político neoliberal ortodoxo. Esse campo é formado pelo capital financeiro internacional, pela fração da burguesia brasileira perfeitamente integrada aos interesses desse capital e pela alta classe média, cujo padrão de vida se assemelha ao das camadas abastadas dos países centrais. A classe média é muito heterogênea e, como ocorre com a burguesia, também está dividida. A baixa classe média é, em grande parte, base eleitoral do PT, mas a votação dos candidatos do PSDB nos bairros de alta classe média indica claramente que essa última está com os tucanos. Pois bem, a força dirigente desse campo político neoliberal ortodoxo é o capital financeiro internacional e seu aliado interno, a fração burguesa a ele integrada. É o conflito entre a grande burguesia interna e essa burguesia integrada ao capital financeiro internacional, que são as forças dirigentes, respectivamente, do campo neodesenvolvimentista e do campo neoliberal ortodoxo, é esse conflito que se encontra na base da disputa partidária entre o PT e o PSDB.
No que consiste, fundamentalmente, o programa do campo neoliberal ortodoxo?
O programa do campo neoliberal ortodoxo é, fundamentalmente, composto pelo tripé: a) desregulamentação do mercado de trabalho, b) privatização e c) abertura comercial e financeira. Na década de 1990, o campo político neoliberal ortodoxo sustentou os governos Collor, Itamar e FHC e logrou atrair parte do movimento operário e da massa empobrecida. Basta lembrarmos, para o caso do movimento operário, o apoio da Força Sindical a Collor e a FHC e, no que concerne à massa empobrecida, o apelo de Fernando Collor, apelo que se revelou eficiente eleitoralmente, aos “descamisados”, convocando-os para uma luta contra os “marajás”. Na década de 2000, contudo, esses setores das classes populares foram ganhos pela frente neodesenvolvimentista, enfraquecendo eleitoralmente o campo político neoliberal ortodoxo. Esse campo, embora domine a grande imprensa e os meios de comunicação de massa, está eleitoralmente enfraquecido. Hoje, escondem o seu verdadeiro programa e agitam apenas a bandeira “anti-corrupção”. Não ousam mais, ao contrário do que fizeram na década de 1990, expor seus verdadeiros objetivos. Mas, ao que José Serra, Geraldo Alckimin e Aécio Neves realmente aspiram é implantar, no Brasil, uma nova onda de reformas neoliberais, à moda do que estamos vendo na Europa. Basta ver o que dizem os intelectuais e políticos tucanos para o seu próprio público. Nos fóruns e meios de comunicação mais restritos, eles pregam a retomada da reforma trabalhista, da reforma previdenciária e criticam a aproximação do Brasil com os governos de esquerda e de centro-esquerda da América Latina. Nos Estados em que são governo, como em São Paulo, deixam entrever, também, que pretendem recrudescer a repressão contra o movimento popular – a desocupação do bairro do Pinheirinhos em São José dos Campos mostrou isso. O grande capital financeiro e a fração “cosmopolita” da burguesia brasileira querem recuperar o terreno perdido no Estado brasileiro e a alta classe média tucana quer que as massas populares retornem “ao seu lugar”.
 Como você analisa as forças progressistas, de esquerda no atual cenário de desenvolvimento?
A política brasileira contemporânea ainda está dividida entre, de um lado, as forças que defendem o modelo capitalista neoliberal na sua versão ortodoxa e propõem uma nova onda de reformas neoliberais e, de outro lado, as forças que apoiam a versão reformada desse mesmo modelo, versão essa criada pelo neodesenvolvimentismo dos governos Lula e Dilma. As classes populares, embora frustradas em muitas de suas reivindicações básicas, ainda dão apoio, sobretudo eleitoral, aos governos neodesenvolvimentistas. Os trabalhadores, com razão, veem nesses governos ganhos econômicos e políticos, sobretudo quando comparados aos governos do PSDB.
Eu já tive uma avaliação diferente dessa questão, mas, hoje, entendo que as organizações revolucionárias e populares devem participar da frente neodesenvolvimentista, embora devam fazê-lo criticamente. Devem participar porque tentar, no presente momento, implementar um programa independente, popular ou socialista, só pode levar ao isolamento político. A experiência da década de 2000 mostrou que em todos os terrenos – eleitoral, sindical ou da luta popular – as forças que tentaram esse caminho se isolaram ou, pior ainda, acabaram se aproximando, apesar de suas intenções, de forças conservadoras. Alguns descobriram, para a própria surpresa, que estavam recebendo apoios e aliados muito incômodos.
 Mas essas organizações poderiam alegar que quem integra a frente neodesenvolvimentista está aliado permanentemente a forças conservadoras.
Se alegassem isso, estariam dizendo apenas parte da verdade. No Brasil, dentre os grandes partidos, há apenas dois que me parecem orgânicos: o PT e o PSDB. Representam interesses definidos e têm uma linha de atuação coerente. Porém, o pluripartidarismo brasileiro criou espaço para partidos que possuem, principalmente, uma função, digamos assim, governativa, e não uma função representativa. O maior deles é o PMDB. Esse partido apoia, dentro de certos limites, o governo do momento e o faz em troca de vantagens para seus políticos profissionais. Os limites são os seguintes: o PMDB não apoiaria um governo popular ou socialista e tampouco, pelo menos nas condições atuais, um governo fascista. Mas, no interior desse amplo espectro, eles podem apoiar qualquer governo. A sua base eleitoral está adaptada a esse governismo. Ela tem uma posição de centro, que aspira a governos estáveis, e que pode aceitar mudanças pontuais desde que ocorram sem abalar as instituições do regime político vigente. Pois bem, isso significa que o PMDB desempenha, hoje, uma função política distinta daquela que ele desempenhou quando ofereceu o seu apoio aos governos neoliberais ortodoxos. E o papel político é mais importante que o partido ou as pessoas. Ademais, na forma como eu vejo a participação na frente, participação que deve ser crítica, as forças populares e socialistas não estão desobrigadas de fazer a crítica a forças conservadoras que ocupam cargos no governo. As recentes substituições nos ministérios do governo Dilma mostram que a esquerda poderia ousar muito mais nessa matéria.
 Você ia, justamente, definir o que você entende por essa participação crítica.
É isso. As organizações revolucionárias devem participar criticamente dessa frente, porque o seu programa atende apenas de modo marginal e muito restrito os interesses das classes populares.
Participar criticamente significa, em primeiro lugar, não abrir mão das bandeiras populares, mesmo que isso crie conflitos no interior da frente. Eu me refiro, é claro, à luta por melhoria salarial e por melhores condições de trabalho, isto é, para que os frutos do crescimento econômico sejam repartidos. Mas, não se trata apenas dessa luta. Dou alguns exemplos referentes a lutas que estão na ordem-do-dia. Independentemente da posição do governo, não podemos abrir mão da bandeira histórica da reforma agrária e da ocupação de terra. Na questão democrática, a luta pela punição dos torturadores do período da ditadura militar está novamente colocada, sejam quais forem a composição e as intenções da Comissão da Verdade. As manifestações recentes defronte as residências e empresas de conhecidos torturadores – os chamados escrachos – são muito importantes nesse sentido. O movimento popular deve, também, levantar a bandeira da independência nacional. Deve pressionar o governo brasileiro para que ele se coloque contra as sucessivas intervenções militares dos EUA e da OTAN nos países da África e da Ásia.
Em segundo lugar, a participação crítica na frente neodesenvolvimentista significa que é preciso fazer a crítica dos aspectos regressivos dessa política de desenvolvimento. A reprimarização da economia brasileira, a esterilização de um terço do orçamento da União para a rolagem da dívida pública, os prejuízos ambientais e muitos outros aspectos antinacionais e antipopulares do atual modelo devem ser criticados pelos setores populares que participam criticamente da frente. É preciso ter claro o seguinte. A grande burguesia interna depende do voto dos trabalhadores para manter os governos neodesenvolvimentistas e nem por isso essa burguesia abriu mão de lutar por seus interesses mesmo quando isso fere os interesses dos trabalhadores. As associações empresariais estão pressionando o governo para que esse reduza os gastos públicos – os gastos com os trabalhadores, mas não com a rolagem da dívida pública ou com os empréstimos subsidiados do BNDES, poderiam acrescentar – e para que efetue reformas que reduzam o custo do trabalho. Não serão, então, as organizações dos trabalhadores que irão abrir mão de seus objetivos específicos para ganharem nota de bom comportamento no interior desse “frentão”.
Eu penso – e esse não é um mero chavão – que as contradições tendem a se aguçar. A economia capitalista neoliberal está em crise na Europa. As forças populares não podem arriar suas bandeiras nem abrir mão da crítica, porque, caso contrário, poderão ser surpreendidas por uma eventual implosão da frente neodesenvolvimentista e se verem sem proposta própria para seguir em frente.
Armando Boito Jr. é professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e Editor da revista Crítica Marxista. É autor dos livros Política neoliberal e sindicalismo no Brasil (São Paulo, Editora Xamã, 2002) e Estado, política e classes sociais (São Paulo, Editora Unesp, 2007).


2ª ENTREVISTA


A crise que vivemos é mais profunda e bastante diferente da que conhecemos nos anos 1929 e 1930, afirma o professor François Houtart. Segundo ele, sua dimensão evidentemente está vinculada ao fenômeno da globalização. Porém, ressalta que a atual crise não é nova. Não é a primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que não será a última. Houtart acredita que o mais importante, e isso é diferente dos anos 1929 e 1930, é essa combinação com vários tipos de crises. E afirma: a causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo. “A crise financeira é devida à lógica do capital, que tenta buscar mais lucros para acumular capital, que é, dentro dessa teoria, o motor da economia”.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Houtart fala também sobre as várias facetas desta crise, inclusive a crise alimentar, a qual, segundo ele, faz parte da mesma lógica. “A combinação da crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas”.

Brasil de Fato – O mundo vive hoje uma crise mundial, que tem afetado principalmente os Estados Unidos e a Europa. Como o senhor avalia esse cenário?

François Houtart –
Eu penso que, primeiro, se trata de uma crise do sistema econômico capitalista, que é muito similar à crise dos anos de 1929-1930 e também a muitas outras crises cíclicas do sistema capitalista onde há subprodução, subconsumo e eventualmente crises financeiras.
A crise que vivemos hoje me parece mais profunda e bastante diferente da que conhecemos nos anos 1929 e 1930, porque, primeiro, sua dimensão evidentemente está vinculada ao fenômeno da globalização. Isso significa que hoje há um efeito muito mais global do que nos anos de 1929-1930 e que evidentemente afeta o conjunto da economia. Já está afetando os países emergentes e de uma maneira ou outra afetará outros países do mundo. Porém, o mais importante, e isso é diferente dos anos 1929 e 1930, é essa combinação com vários tipos de crises. Por exemplo, a crise alimentar, que foi conjuntural nos anos 2008-2009 e que correspondeu à crise do capital financeiro.
Porque o capital financeiro tem buscado novos lugares de especulação e o lugar foi a alimentação, com conseqüências terríveis. E a crise alimentar é também estrutural e não somente conjuntural, porque precisamente afeta toda a maneira de fazer a agricultura. E a introdução cada vez mais forte do capital dentro da agricultura, com a concentração de terras, gera uma contrarreforma agrária mundial e o desenvolvimento de monocultivos, com todas as consequências ecológicas de destruição de ambiente e também de destruição humana; por exemplo, a exclusão dos camponeses de suas terras.
A combinação da crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas. Na verdade, a crise financeira é devida à lógica do capital, que tenta buscar mais lucros para acumular capital, que é, dentro dessa teoria, o motor da economia. Se o capital financeiro é mais proveitoso do que o produtivo, ele faz a lei da economia mundial como é hoje. Assim, essa é evidentemente a lógica do capitalismo que provoca a crise financeira, que tem efeitos econômicos, porque tem efeitos sobre emprego, crédito e toda a economia. Porém, é essa mesma lógica que está provocando a crise alimentar, porque, por uma parte, há uma especulação – o preço do trigo, por exemplo, tem dobrado 100% em um ano, menos de um ano, por razões puramente especulativas.

E quais são as conseqüências sociais dessa crise?
Na verdade, as consequências sociais da crise financeira são sentidas além das fronteiras da sua própria origem e afetam os fundamentos da economia. Desemprego, custo de vida crescente, a exclusão dos mais pobres, a vulnerabilidade das classes médias, expandindo a lista de vítimas no mundo. Não é apenas um acidente no percurso, ou apenas de abusos cometidos por alguns atores econômicos que precisam ser punidos. Somos confrontados com uma lógica que corre ao longo da história econômica do século passado. O desenrolar dos acontecimentos sempre responde à pressão das taxas de lucro. A crise que vivemos hoje não é nova. Não é a primeira crise do sistema financeiro e muitos dizem que não será a última.

A seu ver, qual é a principal causa dessa crise mundial?
A causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo, que torna o capital motor da economia. E seu desenvolvimento – essencialmente, a acumulação – leva à maximização do lucro. Se a financeirização da economia favorece a taxa de lucro e se a especulação acelerou o fenômeno, a organização da economia como um todo continua dessa forma. Mas um mercado não regulamentado capitalista conduz inevitavelmente à crise. E, como indicado no relatório da Comissão das Nações Unidas, é uma crise macroeconômica.

Um dos graves problemas da humanidade hoje é a fome. Como fica essa questão frente a esse cenário de crise?
A crise alimentar tem dois aspectos, um cíclico e um estrutural. O primeiro manifestou-se com o aumento dos preços dos alimentos em 2007 e 2008. Sim, para explicar o fenômeno, houve alguma base eficiente, como alguma diminuição fraca em reservas de alimentos, mas a principal razão foi de natureza especulativa, em que a produção de agrocombustíveis não ficou imune (etanol de milho nos Estados Unidos). Assim, o preço do trigo na Chicago Board (Bolsa de Chicago) aumentou para 100%, do milho 98% e do etanol, 80%. Durante esses anos, uma parte do capital especulativo passou de outros setores para investir na produção de alimentos, na busca por lucros rápidos e significativos. Consequentemente, segundo o diretor da FAO, em geral, a cada ano, em 2008 e 2009, mais de 50 milhões de pessoas ficaram abaixo da linha da pobreza e o total de pessoas que viviam nessa situação em 2008 atingiu um valor nunca antes conhecido – de mais de um bilhão de pessoas. Essa situação foi claramente o resultado da lógica do lucro, a lei capitalista do valor.
O segundo aspecto é estrutural. É a expansão durante os últimos anos da monocultura, resultando na concentração da terra, ou seja, uma verdadeira contrarreforma. A agricultura familiar foi destruída em todo o mundo sob o pretexto de sua baixa produtividade. Na verdade, as monoculturas têm uma produção que às vezes pode ir até 500% ou mais de 1000%. No entanto, dois fatores devem ser levados em conta. A primeira é a destruição ecológica dessa forma de produzir. Florestas são removidas, solo e água contaminados pelo uso maciço de produtos químicos. Agricultores são forçados a deixar suas terras e há milhões que têm de migrar para as favelas das cidades, aumentando a crise urbana, e aumentando a pressão da migração interna, como no Brasil, ou externa, como em muitos outros países.

Então a fome no mundo não tem nada a ver com a produção de alimentos, com a capacidade de produzir?
Não. Não tem nada a ver com a produção. A questão é somente especulativa. É a Bolsa de Chicago que fixa os preços internacionais dos grãos.

E como o senhor vê as afirmações de alguns estudiosos de que o planeta, com uma população na casa dos 7 bilhões de pessoas, se torna incapaz de produzir alimentos para nutrir tanta gente?
Isso é totalmente falso. Segundo a FAO, teoricamente a Terra pode facilmente nutrir 10 ou 12 bilhões de habitantes.

E a questão energética, também faz parte desse cenário de crise?
A crise de energia vai além da explosão conjuntural dos preços do petróleo e faz parte do esgotamento dos recursos naturais explorados pelo modelo de desenvolvimento capitalista. Uma coisa é clara: a humanidade vai ter que mudar a fonte de sua energia nos próximos 50 anos. Os picos de petróleo, urânio e gás podem ser discutidos em termos de anos precisos, mas ainda assim sabemos que esses recursos não são inesgotáveis e que as datas não estão longe. Com o esgotamento, inevitavelmente vem o aumento dos preços das commodities, com todas as consequências sociais e políticas. Além disso, o controle internacional de fontes de energia fósseis e outros materiais estratégicos é cada vez mais importante para as potências industriais, que não hesitam em usar a força militar para se apropriar deles. É no contexto de escassez de energia no futuro que se insere parte do problema dos agrocombustíveis. Diante da expansão da demanda e da redução esperada em recursos energéticos fósseis, há uma certa urgência de se encontrar soluções. Como novas fontes de energia exigem o desenvolvimento de tecnologias ainda não muito avançadas (como a solar ou à base de hidrogênio) e outras soluções são interessantes, mas economicamente marginais ou não rentáveis (mais uma vez, a solar e a eólica), a dos agrocombustíveis pareceu interessante.

Mas a produção dos agrocombustíveis traz também graves consequências.
A produção de agrocombustível é feita na forma de monocultura. Em muitos casos, isso envolve a remoção de grandes florestas. Na Malásia e na Indonésia, em menos de 20 anos 80% da floresta original foi destruída pelas plantações da palma e eucalipto. A biodiversidade é removida, com todas as consequências sobre a reprodução da vida. Para produzir é usado não só muita água, mas um monte de produtos químicos, como fertilizantes ou pesticidas. O resultado é uma poluição intensiva de água subterrânea, dos rios que desembocam no mar, e um perigo real de falta de água potável para as populações. Além disso, os pequenos agricultores são expulsos e muitas comunidades indígenas perdem suas terras ancestrais, causando uma série de conflitos sociais, até mesmo violentos. O desenvolvimento de agrocombustíveis corresponde à negligência das externalidades ambientais e sociais, típicas da lógica do capitalismo.

E como o senhor vê a questão climática nesse cenário atual?
A crise climática é bem conhecida e as informações estão se tornando mais precisas, graças a várias conferências da ONU sobre clima, biodiversidade, geleiras etc. Enquanto o atual modelo de desenvolvimento continuar emitindo gases de efeito-estufa (especialmente CO2), destruindo os sumidouros de carbono, ou seja, sítios naturais de absorção desses gases, especialmente florestas e os oceanos, a crise continuará. A pegada ecológica é de tal ordem que, de acordo com estimativas, em 2010, em meados de agosto, o planeta tinha esgotado a sua reprodução natural. Além disso, de acordo com o relatório do Dr. Nicholas Stern para o governo britânico, em 2006, se as tendências atuais continuarem na metade do século existirão entre 150 e 200 milhões de migrantes climáticos, e os mais recentes números são ainda mais elevados.

E como o senhor avalia as medidas adotadas pelas elites e governos para tentar superar essas crises? E quais são as soluções?
A primeira solução é a do sistema. Alguns, principalmente preocupados com a crise financeira, propuseram mudar e punir os responsáveis. Essa é a teoria do capitalismo (teoria neoclássica em economia), que vê elementos positivos na crise, porque eles permitem a liberação de elementos fracos ou corruptos para retomar o processo de acumulação em bases saudáveis. Atores são alterados, e não se muda o sistema. Evidentemente não é solução. A segunda visão é propor regulamentos. É reconhecido que o mercado regula a si mesmo e que os organismos nacionais e internacionais têm necessidade de executar essa tarefa. Os Estados e organizações internacionais devem ser envolvidos. O G8, por exemplo, propôs certos regulamentos do sistema econômico global, mas ligeiros e temporários. Em vez disso, a ONU apresentou uma série de regulamentações muito mais avançadas. Propôs a criação de um Conselho de Coordenação Econômica Global, em pé de igualdade com o Conselho de Segurança, e também um painel internacional de especialistas para acompanhar permanentemente a situação econômica global. Outras recomendações tratadas foram a abolição dos paraísos fiscais e do sigilo bancário e, também, maiores requisitos de reservas bancárias e um controle mais rígido das agências de notação de crédito. A profunda reforma das instituições de Bretton Woods foi incluída, bem como a possibilidade de se criar moedas regionais em vez de ter como referência única o dólar. Os regulamentos propostos pela Comissão Stiglitz para reconstruir o sistema financeiro e monetário, apesar de algumas referências a outros aspectos da crise, tais como clima, energia, alimentos – e apesar do uso da palavra sustentável para qualificar o crescimento – não têm a profundidade suficiente para fazer a pergunta: para que reparar o sistema econômico? Para desenvolver, como antes, um modelo que destrói a natureza e é socialmente desequilibrado? É provável que as propostas para reformar o sistema monetário e financeiro serão eficazes para superar a crise financeira, e muito mais do que o que foi feito até agora, mas é suficiente para responder a desafios globais contemporâneos? A solução é dentro do capitalismo, um sistema historicamente esgotado, mesmo que tenha ainda muitos meios de adaptação. A gravidade da crise é tal que devemos pensar em alternativas, não somente em regulações.


E, quais seriam, por exemplo, essas outras alternativas?
Questionar o próprio modelo de desenvolvimento. A multiplicidade de crises que foram exacerbadas nos últimos tempos é resultado da lógica de mesmo fundo: uma concepção de desenvolvimento que ignora as “externalidades” (danos naturais e sociais); a ideia de um planeta inesgotável; o foco no valor de troca em detrimento do valor de uso; e a identificação da economia com a taxa de acumulação de lucro e do capital que cria, consequentemente, enormes desigualdades econômicas e sociais. Esse modelo resultou em um crescimento espetacular da riqueza global, mas seu papel histórico se perdeu, devido à sua natureza destrutiva e da desigualdade social que resultou. A racionalidade econômica do capitalismo, escreve Wim Dierckxsens, não apenas tende a negar a vida da maioria da população mundial como também destrói a vida natural.
Temos que discutir alternativas ao modelo econômico capitalista prevalecente hoje e os meios para rever o próprio paradigma (orientação básica) da vida coletiva da humanidade sobre o planeta, conforme definido pela lógica do capitalismo, que hoje é global. A vida coletiva é composta por quatro elementos que chamamos de base, porque as exigências são parte da vida de toda sociedade, desde as mais antigas até as mais contemporâneas: a relação com a natureza; a produção da base material da vida física, cultural e espiritual; a organização social e política coletiva; e a leitura do real e autoenvolvimento dos atores na sua construção da cultura. Ou seja, cada sociedade tem essa tarefa para realizar.

Mas as alternativas necessariamente passam pelo envolvimento do conjunto da sociedade organizada, dos movimentos sociais.
Exatamente. As alternativas são tão importantes que não vão chegar por si só. É somente pela pressão dos movimentos sociais, movimentos políticos também, que podemos esperar chegar a redefinir os objetivos fundamentais da presença humana no planeta e o desenvolvimento humano no planeta. E isso significa transformar a relação com a natureza. Passar da exploração ao respeito. Significa outra definição da economia. Não somente produzir um valor agregado senão produzir as bases da vida. Da vida física, cultural, espiritual de todos os seres humanos no planeta. Isso é a economia. Porém, isso não corresponde à definição do capitalismo. Também é preciso generalizar a democracia a todas as instituições, não somente políticas e econômicas mas também na relações humanas, relações entre homens e mulheres etc. É necessário também não identificar desenvolvimento com civilização ocidental e dar a possibilidade a todas as culturas, religiões, filosofias de participar dessa construção. Isso é o que chamo de construir o bem comum da humanidade, que é a vida; assegurar a vida, a vida do planeta e a vida da humanidade. Isso é um projeto alternativo, que pode parecer utópico. Porém não é utópico porque existem milhares de organizações e movimentos sociais que já trabalham para transformar esses aspectos da vida comum da humanidade, para melhorar a relação com a natureza, para ter outro tipo de economia, para ter uma participação, uma democracia que seja participativa e para renovar a cultura. Existem muitas iniciativas. Isso posso chamar de construção do socialismo. Porque socialismo não é uma palavra. É um conteúdo. E eu penso que devemos redefinir o conteúdo do socialismo.

Como o senhor analisa a América Latina neste contexto da crise e qual é o papel dos movimentos sociais?
É muito interessante porque a América Latina é o único continente do mundo onde temos tido alguns avanços. Não ainda na opção de novo paradigma, nova orientação fundamental, porém, pelo menos avanços, que não existem em outros continentes até agora. Mas não é algo generalizado na América Latina. Há alguns países que só reproduzem o sistema, com sua dependência ao capital internacional, particularmente do norte do continente americano. São países como México, Colômbia, Chile, Panamá, Costa Rica, Honduras etc. São países onde a burguesia local está totalmente vinculada com o sistema internacional e, nesse sentido, não tem outro projeto senão um projeto muito repressivo contra as populações.

Subordinação total.
Exatamente. Há uma segunda realidade, que são os países que podemos chamar de “adaptações ao sistema”. E aí existem dois tipos de países. Há os que dizem: sim, o sistema necessita de mudanças fundamentais e devemos nos adaptar à lógica do capitalismo. E para se ter mais justiça social e repartir parte do lucro, como já dizia Marx, com o rápido avanço das forças produtivas, temos um aumento dos lucros e da destruição da natureza. Nesse tipo de desenvolvimento se inserem Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, que possuem programas sociais eficazes. Com resultados indubitáveis porque milhões de pessoas saíram da pobreza, o que não podemos desprezar, porém, esse modelo não transforma profundamente a sociedade; isso representa apenas uma redistribuição de parte do lucro. Não podemos dizer que é uma mudança de paradigma. Entretanto, há países como Venezuela, Equador e a Bolívia, que têm outro discurso, o do socialismo do século 21, que pelo menos faz uma alusão a uma transformação fundamental. Pelo menos no Equador e na Bolívia, entre o discurso e a prática eu vejo grande avanços, em que as práticas dos governos seguem uma orientação das demandas sociais apresentadas pelos movimentos sociais.

Então, neste contexto de crise, os países que estão mais vulneráveis sofrem mais as consequências?
Não estou seguro. Teoricamente pode-se dizer que sim, esses países serão mais afetados em médio prazo. Porém, no momento é igual em todas as partes. Mas, evidentemente, os países mais vinculados ao sistema serão mais afetados em médio prazo. Entretanto, desgraçadamente, países como Venezuela e Bolívia também são indiretamente dependentes do sistema global e sofrerão as consequências. O que eu acho que é cedo demais pra se dizer, com diz Samir Amin, que eles conseguiram fazer uma desconexão. Não, não conseguiram. Mas é óbvio que as economias mais vinculadas à economia do Norte sofrerão as consequências a curto prazo.

No caso da América Latina, uma maior integração dos países seria uma alternativa frente a esse cenário mundial? O papel do Estado é fundamental neste contexto?
Absolutamente. Mas, para encerrar a tipologia, eu penso que a Venezuela é um país que avança para um novo modelo, onde as mudanças são mais aprofundadas. O papel do Estado não pode ser concebido sem levar em conta a situação dos grupos mais marginalizados socialmente, os sem-terra, as castas mais baixas ignoradas por milênios, os povos indígenas da América e os excluídos de ascendência africana; e, nesses grupos, as mulheres são muitas vezes duplamente marginalizadas. A expansão da democracia também se aplica para o diálogo entre os movimentos políticos e sociais. A organização de instâncias de consulta e diálogo pertence ao mesmo conceito, respeitando a autonomia mútua. O projeto de um conselho de movimentos sociais na arquitetura geral da Alba é uma tentativa original nessa direção. O conceito de sociedade civil muitas vezes utilizados para esse fim ainda é ambíguo, porque ela é também o lugar da luta de classes: há realmente uma sociedade civil de baixo e de cima e o uso do termo de forma não qualificada permite muitas vezes a criação de uma confusão e a apresentação de soluções que ignoram as diferenças sociais. Por outro lado, as formas de democracia participativa, como os encontrados em vários países latino-americanos, também entram na mesma lógica da democracia em geral. Todas as novas instituições regionais latino-americanas, como o Banco do Sul, a moeda regional (o sucre) e a Alba, serão objeto de atenção especial na direção de propagação da democracia. E o mesmo vale para os outros continentes.

François Houtart é sociólogo e professor da Universidade Católica de Louvain (Bélgica). É diretor do Centro Tricontinental, entidade que desenvolve trabalho na Ásia, África e América Latina. Entrevista publicada originalmente em 20/01/2012 no Brasil de Fato.