domingo, 19 de junho de 2011

CASO CESARE BATTISTI - TEMA DA PRÓXIMA AULA DE REDAÇÃO

CASO CESARE BATTISTI DIVIDE OPINIÕES NO BRASIL


Poucas vezes na história do Brasil um julgamento atingiu a dimensão política alcançada pelo caso Cesare Battisti. Militante comunista na Itália dos anos 1970, Battisti foi preso em junho de 1979 e sentenciado a pena de 12 anos, acusado de participação em grupo armado, assalto e receptação de armas. Escapou em outubro de 1981, e passou a viver na França, protegido pela Lei Mitterrand, que concedia refúgio a "pessoas envolvidas em atividades terroristas na Itália até 1981 e que tivessem abandonado a violência".
O caso Battisti foi reaberto na Itália, e novas acusações se somaram contra ele, todas baseadas unicamente em depoimentos de testemunhas, sem apresentação de provas materiais. Em outubro de 2004, as leis mudaram na França e o governo Chirac aprovou a extradição de Battisti, insistentemente pedida pela Itália. Com auxílio da própria polícia francesa, Battisti fugiu novamente, agora para o Brasil, onde foi detido (no Rio de Janeiro) em outubro de 2007. A partir daí começou a batalha jurídica entre os favoráveis e os contrários à sua extradição, exigida pelo governo italiano.
Dada a relevância histórica do caso, reproduzimos nesta edição a opinião de dois expoentes da batalha em curso; o professor Carlos Lungarzo e o jornalista Mino
Carta, o primeiro contrário e o segundo favorável à extradição. (...)


Carlos Lungarzo, representante da seção brasileira da organização Anistia Internacional, assumiu um lugar de destaque na luta contra a extradição de Cesare Battisti. Ele afirma que Battisti foi condenado por um processo irregular e repleto de erros, num momento em que a Itália vivia sob estado de exceção. Diz, que não foi apresentada contra Battisri nenhuma prova material, mas apenas "delações premiadas" (em que as supostas testemunhas de determinado crime recebem benefícios em troca de seus depoimentos).

Publicamos em seguida um artigo de Lungarzo escrito com exclusividade para Mundo. Carlos Lungarzo foi professor titular da Unicamp e da UERJ, e pesquisador do CNPq na área de ciências exatas. Desde 1981 militou em diversas seções de Anistia Internacional. Vive definitivamente no Brasil desde 1976. Para os interessados, ele deixa o seu e-mail: carlos.lungarzo@gmail.com.


"EXTRADIÇÃO É UMA FARSA"

Tenho pouco espaço para dizer muito; então, vou ser curto. Tudo o que digo aqui e muito mais pode ser totalmente comprovado com documentos italianos e brasileiros que estão no site: http://sites.google.com/site/lungarbattisti. Vocês podem baixar, copiar, distribuir livremente, citar, publicar. Dos documentos italianos temos apenas seis volumes com as sentenças de 1981,1983,1988, 1990 e 1993 e o histórico, conseguidos com dificuldade. A Itália não permitiu o acesso aos relatórios de provas que eles dizem ter nem aos depoimentos das testemunhas.
A Itália acusa Battisti de ter matado quatro pessoas; dois empresários e dois policiais. Na sentença de 1981, Battisti foi julgado por guardar armas, por estar num grupo guerrilheiro, e por furtar alguns valores para uso político. Nunca se fala de que matasse alguém. Aliás, já nessa data, os verdadeiros assassinos eram conhecidos, e seus nomes aparecem na sentença: Pietro Mutti, Sante Fatone, Giuseppe Memeo, Sebastiano Masala, Lavazza e Grimaldi. Todos eles cumpriram penas médias ou curtas, salvo Lavazza que foi capturado na Espanha.
Na sentença de 1988, o Tribunal de Milão quer passar a culpa a Battisti, porque Mutti e Fatone o acusam dos quatro crimes. Isso se chama delação premiada. Os juízes preferiram colocar todas as culpas em Battisti, porque queriam salvar os delatores. A justiça italiana não tem provas nem testemunhas contra Battisti. Eles mencionaram várias pessoas como testemunhas só pelo sobrenome, mas não dão nenhum outro dado: primeiro nome, sexo, profissão, idade, domicílio. Essas pessoas são chamadas Ronco, Menegon, Linassi, Suriano, Zampieri, Pagano, mas jamais foram entrevistadas por jornalistas e suas fichas não estão publicadas na sentença de 1988. As descrições que eles fazem do homem que encontraram "perto" do lugar do crime não coincidem: eles discrepam na cor do cabelo, altura, complexão física, etc. Ninguém descreve o rosto. Só dizem que tem uns 25 anos.
Na sentença de 1988 há contradições: numa parte diz que a primeira vítima foi morta por dois tiros, em outra parte diz que foram três. Numa folha dizem que a arma era uma pistola Glisenti, propriedade de Battisti. Em partes anteriores se diz que Battisti tinha só duas pistolas (Beretta e Browning). Uma "testemunha" diz que viu o atirador de outro crime, que era loiro e alto. Battisti é castanho e não é alto.
O tribunal de Milão recusou-se a nos deixar ver os relatórios das provas de balística, as perícias dos carros dos matadores, provas de sangue e outras provas físicas. Mas tampouco os verdadeiros matadores poderiam ser extraditados porque nenhum país civilizado extradita autores de crimes políticos. Isso está na Constituição Brasileira. Na sentença de 1988, o tribunal enumera os delitos em que interveio Battisti (posse de armas, subversão, oposição ao estado, propaganda política, etc.). Em total, a sentença repete 33 vezes que os crimes foram políticos e não comuns. Por isso, o ex-ministro da Justiça Tarso Genro deu o refúgio, que não pode ser negado a preso político. A Itália diz agora que os crimes foram comuns.
A Itália diz que sua soberania foi agredida. Ridículo. O Brasil não está dentro da jurisdição italiana. Eles agridem o Brasil, porque pretendem arrancar de solo brasileiro uma pessoa que está aqui. Pessoas não são propriedades de seus países. A Itália proferiu graves insultos contra o presidente, os ministros, os juristas e outros, que foram relatados durante o processo pelo juiz Marco Aurélio. Temos o direito de submeter Battisti a nossas leis. Qualquer pessoa que vá voluntariamente a outro país se está submetendo a essas leis. Isso é lei e praxe internacional.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil aprovou a extradição de Battisti no dia 9 de setembro de 2009, por cinco votos contra quatro, mas no dia 16 de novembro também aprovou, também por cinco a quatro, que a decisão de aplicar ou não a extradição depende do Poder Executivo. Em todos os países de Ocidente, e até na própria Itália, o Tribunal diz se o governo pode ou não pode extraditar. Se o STF diz, que não pode, o presidente deve obedecer. Se diz que pode, então apenas está permitindo, mas não obrigando. Juízes não podem expulsar um estrangeiro. É o presidente ou o primeiro-ministro que pode fazê-lo.
No relatório do juiz Peluso, favorável à extradição, há várias inverdades. Na página 53, por exemplo, Peluso diz que Battisti atirou no açougueiro, enquanto um colega o protegia. Na página 102, diz que o colega foi quem atirou. Este colega era Giacomini, e ele confessou ter matado o açougueiro, mas nunca disse que Battisti era o seu acompanhante. Peluso nega que a Itália dos anos 1970 estivesse controlada pelo fascismo. Mas, isto é bem conhecido e está atualmente em dúzia de livros e artigos. O atual ministro de Defesa foi um importante dirigente fascista juvenil.
Peluso e outros juízes negam que a pena esteja prescrita. Mas, para estes supostos crimes, a pena prescreve aos 20 anos. A sentença foi proclamada em 1988. Battisti deveria ter sido libertado nesse ano.


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O jornalista Mino Carta é um dos mais eloquentes entre os que defendem a extradição de Cesare Battisti. Para ele, Battisti é um criminoso comum, e o governo Lula errou ao tratar o caso como se fosse uma batalha para afirmar a soberania do Brasil diante das pressões pela extradição feitas pelo governo italiano. Além disso, Mino Carta afirma que a Itália é um estado de direito e não uma ditadura, visão compartilhada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e outros favoráveis à extradição de Cesare Battistii.

Reproduzimos, em seguida, um artigo escrito por Mino Carta sobre o tema e publicado na revista Carta Capital em 1O de janeiro. Além de ser fundador e ocupar o cargo de diretor de redação da revista, Mino Carta criou as revistas Quatro Rodas e Veja e o Jornal da Tarde.


"A INJUSTIÇA DÓI"

Ao negar a extradição de Cesare Battisti, Lula conseguiu reunir a direita italiana à sombra de uma única bandeira, como se deu em manifestações de protesto encenadas em Roma diante da embaixada do Brasil e em Milão em frente ao consulado. Os direitistas viviam desavenças de diversos matizes, a ponto de pôr em xeque a maioria parlamentar de Silvio Berlusconi, agora marcham juntos, contra aquela que consideram afronta à nação e à pátria.

Enredo penoso, nutrido em grande parte por ignorância, incompreensão, hipocrisia, recalques e retórica. Há “patriotas”, e ponho a palavra entre aspas de caso pensado, dos dois lados. Dar guarida a um delinquente comum em nome da soberania nacional é patético. Quanto à afronta que na Itália inflama ânimos reacionários, existe quando se pretende que Battisti, caso extraditado, sofreria perseguição política e correria risco físico. Ou seja, o Estado italiano, democrático e de Direito, não tem condições de garantir a segurança dos seus presos. Ora, em relação ao ex-terrorista só haveria uma certeza: devolvido à Itália, iria para a cadeia. Certamente, com a pena sensivelmente reduzida.

Escreve Sergio Romano, historiador e ex-diplomata de valor: “Gostaria de acreditar que Lula julga a Itália com os óculos de sua experiência brasileira”. Aprecio a definição, mas dia 31 de dezembro o presidente agiu ao sabor da sua índole e a alegada soberania de fato é a visão de um grupelho de correligionários mais ou menos milenaristas, e nem todos de boa-fé. Lula, que diz nunca ter sido de esquerda, quis agradar a um grupelho de fanáticos do Apocalipse distante da compreensão do papel que hoje cabe a um verdadeiro esquerdista em um país ainda humilhado por graves diferenças sociais e por uma lei da anistia imposta pela ditadura.

O caso nasce do erro clamoroso de Tarso Genro, à época ministro da Justiça, ao enxergar em Battisti um foragido político, com a pronta adesão de quantos, poucos felizmente, mas influentes, não percebem a diferença entre quem pega em armas para enfrentar a ditadura e quem as pega com o propósito declarado de derrubar um Estado Democrático de Direito. Sustentava então o professor Dalmo Dallari que a Itália dos anos de chumbo estava entregue a um governo de extrema-direita, para espanto até mesmo daqueles que têm conhecimento apenas superficial da história recente. Governava a península uma coligação de centro-esquerda, o presidente da República era o socialista Sandro Pertini e dois líderes do porte de Aldo Moro, democrata­ cristão, e Enrico Berlinguer, comunista, preparavam-se a selar um grande entendimento dito compromesso storico.

A este gênero de ignorância juntavam-se a manifesta intenção de pôr em julgamento as sentenças dos tribunais italianos, cominadas em três instâncias à revelia, pois Battisti estava foragido. Ouvi do próprio Genro a afirmação de que, em outras circunstâncias, o ex-terrorista teria sido absolvido. Compete ao ministro da Justiça do Brasil discutir as decisões das cortes de um Estado Democrático de Direito? Na Itália, a Justiça é até hoje um poder independente e não hesita em causar notáveis dissabores ao premier Berlusconi, este sim tão diferente dos líderes da década de 70. E foi em 1978 que Moro foi assassinado pelas Brigadas Vermelhas em um cenário de terrorismo até o último sangue em que se infiltravam os serviços secretos das potências de então, a começar pelos EUA, tão escassamente inclinados a aceitar a ideia do compromisso histórico.

Triste episódio, o caso Battisti, qualquer que venha a ser seu desfecho. A Itália mantém polpudos interesses no Brasil, onde suas multinacionais faturam alto. E o nosso país é um emergente de futuro certo, aposta de olhos fechados. Donde a previsão de que a questão se componha sem maiores sequelas é possível, se não provável. Sobraria uma inevitável ponderação: a injustiça dói.

Claudio Magris, que concorreu ao Nobel com Doris Lessing em 2007, diz em um artigo publicado pelo Corriere della Sera: “O presidente Lula, que continuaremos a admirar pela inteligência e pela coragem com que enfrentou tantos problemas cruciais do seu país, manchou o fim do seu excelente mandato com ofensas gratuitas à Itália e com a proteção oferecida ao pluriassassino Cesare Battisti”. Magris professa ideais de esquerda.





Mundo - Geografia e Política Internacional. março/2011.




ENTENDA A POLÊMICA





STF nega extradição de Cesare Battisti e italiano é libertado


09/06/2011

STF nega extradição de Cesare Battisti e italiano é libertado

Da redação

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu negar a extradição de Cesare Battisti na segunda vez em que deliberou sobre o destino do italiano, na quarta-feira, dia 8 de junho. Com isso, o escritor foi finalmente liberado em Brasília.

No ano passado, a instância havia deliberado que a decisão sobre o pedido de extradição feito pela justiça italiana cabia ao presidente brasileiro e, no último dia de seu mandato, Luiz Inácio Lula da Silva determinou a liberação de Battisti, preso desde 2007 no Brasil.

Apesar do desfecho, Battisti seguiu detido, aguardando um novo julgamento do STF sobre seu caso, uma vez que o governo italiano pediu a revisão da decisão de Lula. Desta vez, o Supremo avaliou que a decisão de um chefe do Executivo não poderia ser contestada por um governo estrangeiro, considerando que isto colocaria a soberania nacional em risco.

Numa votação polêmica, os ministros Luis Fux, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Marco Aurélio Mello votaram a favor da libertação de Battisti, enquanto Gilmar Mendes, relator do processo, e Ellen Gracie e Cezar Peluso votaram por sua extradição. Mendes defendeu a extradição imediata de Battisti e afirmou que o Supremo teria autonomia para descumprir a decisão de Lula, sendo criticado pelo Ministro Luis Fux.

Entenda a polêmica

A condenação de Battisti a prisão perpétua na Itália é permeada de contradições, considerada por alguns como uma decisão mais política do que de fato judicial.

As falhas apontadas no processo foram retratadas em reportagem publicada na edição 168, de janeiro de 2011, da Revista Caros Amigos. Confira abaixo a reportagem na íntegra:



Cesare Battisti: o eterno fugitivo

Condenado num processo cheio de falhas, e até falsificações, que correu à sua revelia, o escritor italiano se tornou alvo do ódio da direita mundial e passou a vida sendo perseguido pelo Estado italiano e, nos últimos anos, pelo judiciário brasileiro. Conheça os detalhes do caso Battisti.

Por Débora Prado

Amplamente divulgado na grande mídia de diversos países, o debate acerca da extradição de Cesare Battisti se tornou tema de discussão no Brasil e na comunidade internacional. O Estado e a justiça italiana, o judiciáio brasileiro, a extrema direita e os reacionários de plantão se empenham na campanha pela entrega dele ao sistema penitenciário italiano para que permaneça encarcerado até o fim de sua vida. No Brasil, a propaganda contra o escritor e ex-militante de extrema esquerda também é intensa e, apesar do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter decidido negar sua extradição no último dia de mandato, Battisti continua preso, ilegalmente, e vai passar por novo julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Condenado durante processo que correu à sua revelia por quatro assassinatos cometidos na década de 1970, o que pouca gente sabe é que Battisti já havia passado por um julgamento na Itália. Neste primeiro julgamento, sentenciado em 1981, foi condenado a 13 anos e alguns meses de prisão por suas atividades militantes, ou ‘crime de subversão’ e por porte de armas. Não houve, no entanto, qualquer condenação ou sequer citação dos quatros assassinatos que lhe são atribuídos hoje em dia. Quase ninguém diz ainda que seu segundo julgamento na Itália está permeado de contradições (ver Box), assim como o relatório do STF brasileiro, de autoria do Ministro Cezar Peluso.

Na verdade, a condenação a prisão perpétua - reivindicada agora pelo governo italiano para justificar a extradição – só aconteceu no segundo processo, de 1988, baseado numa prática chamada ‘delação premiada’. “Durante o primeiro processo, houve muitas torturas, são 13 casos declarados. Mas, mesmo sob a tortura, ninguém nunca pronunciou o nome de Battisti” explica Fred Vargas, historiadora, arqueóloga e escritora francesa, complementando: “Em troca das acusações no segundo processo, outros presos ganharam consideráveis reduções na pena. Nenhum dos arrependidos e dissociados teve prisão perpétua, o único membro do grupo com essa condenação foi o ausente: Battisti”.

Em suas pesquisas sobre o caso, ela constatou ainda que as procurações supostamente assinadas por Battisti para os advogados que o representaram no segundo processo são falsas. “Ele foi representado falsamente durante os onze anos do processo. Isso já seria suficiente para anular sua condenação” diz. Com tanta sujeira embaixo do tapete, fica evidente que os motivos para a condenação de Battisti são muito mais políticos do que de fato judiciais.

Dalmo de Abreu Dallari, jurista e professor emérito da USP (Universidade de São Paulo), explica que se fossem considerados apenas os aspectos legais, Battisti já deveria estar em liberdade. “A prisão de uma pessoa cuja extradição o foi pedida tem caráter preventivo, visando garantir a execução da decisão do Chefe do Executivo, caso este decida favoravelmente ao pedido. A partir do momento em que o Presidente decidiu não conceder a extradição, já não havia motivos para manter Cesare Battisti preso, não havendo qualquer fundamento legal para essa tremenda restrição de seus direitos fundamentais, avalia o jurista, concluindo: “Assim, não há dúvida de que a motivação não foi jurídica, mas influenciada por outras determinantes”.

Para Carlos Alberto Lungarzo, professor titular da Unicamp aposentado e militante da Anistia Internacional (AI), é totalmente impossível que Battisti tenha cometido algum assassinato e, além de injustiçado, sua extradição pode representar uma sentença de morte. “Se ele voltar à Itália e ficar vivo durante um tempo seria um milagre. O sentimento de rancor contra ele já existia antes, mas a agitação do caso na França e no Brasil está deixando em evidência a enorme corrupção da justiça italiana e a falta de seriedade e dos políticos” afirma.

O professor conta que a perseguição tomou tamanha proporção que uma região da Itália está proibindo os livros de centenas de escritores que assinaram um manifesto pela não extradição de Battisti. “É necessário entender um ponto sensível da cultura italiana, pelo menos nos últimos dois séculos: o sentimento de vingança muito generalizado. O Tribunal precisava dar uma satisfação aos parentes e ter um culpado universal. Claro que também há interesses políticos fortes: ameaçar a pouca esquerda que resta na Itália, mas que vai crescendo, fazer o papel de vítima no cenário europeu e por aí vai” diz. Os estudiosos do caso apontam mais de uma justificativa para a perseguição de Battisti. Para Lungarzo, é simplista dizer que Berlusconi quer ocultar seu fracasso político e seus escândalos sexuais, uma vez que a campanha contra o escritor aumentou a medida que seus livros críticos ficaram mais conhecidos.

“Inicialmente, tudo indica que os magistrados italianos carregaram todos os assassinatos em Battisti, porque ele estava longe e não poderia se defender. Ele foi apenas um bode expiatório. Quando ele voltou à França, em 1990, a Itália tentou extraditá-lo - ‘por que não mais um?’. Mas, a extradição foi recusada e não se fez nenhum alvoroço. Então surgiu a verdadeira razão: Battisti se tornou um escritor de sucesso, com 15 livros publicados antes de vir ao Brasil. Suas histórias sobre perseguição, exílio e fascismo são romances lidos por pessoas que nunca leriam um livro de história. Há uma prova que eu acho muito clara disso: em quase todas as mensagens e comentários de ódio de leitores de jornais que se publicam na Itália sempre se fala que ele é um ‘afrancesado’, um rebelde, um homem que pinta uma imagem horrível da Itália, que não é católico, e coisas assim. Isso é muito duro para um país onde domina a Máfia, o fascismo e a Igreja” avalia Lungarzo.

De acordo com o filósofo e professor da USP aposentado Paulo Arantes, no governo italiano a extradição de Battisti se tornou um ponto de honra, assim como um ponto de honra para o aparato repressivo brasileiro e seus aliados impedir qualquer tipo de julgamento público das atrocidades cometidas pela Ditadura Militar. “Óbvio que se trata de um ponto de honra para a magistratura e para o Estado italiano, porque ele é fugitivo há 20 anos. E na Itália há uma unanimidade sobre isso entre a direita e a esquerda, se é que essa distinção ainda faz sentido lá”, avalia. Ele explica que, apesar de seu passado glorioso, o Partido Comunista italiano sujou as mãos durante a repressão italiana. “Muitos dos magistrados implicados nos julgamentos, na tortura e na repressão ou eram filiados ou gravitaram na ordem do Partido Comunista”, complementa Arantes.

Segundo a historiadora Fred Vargas, existe ainda uma relação importante entre o caso de Battisti e a participação italiana na Guerra do Iraque para preparar a população italiana - que era contra a entrada da Itália na Guerra. “O governo quer fabricar um amálgama entre os antigos ‘terroristas’ dos anos de chumbo, e o novo terrorismo” explica.

Outros países já negaram a extradição de Battisti, como a Grécia, Suíça, França, Inglaterra, Canadá, Argentina, Nicarágua e Japão. “Talvez por causa dessas negativas e porque pretendem usar Cesare Battisti como um troféu, alguns Ministros do governo italiano agridem tão violentamente o Brasil”, analisa Dalmo Dallari. Ele identifica também uma forte motivação política, “bastando lembrar que o atual Ministro da Defesa da Itália, Ignazio La Russa, foi militante ativo da Aliança Nacional, organização neofascista. A par disso, é público e notório que a Itália vem enfrentando uma crise política, tendo havido várias manobras legislativas e judiciárias, visando impedir que o Primeiro Ministro Silvio Berlusconi seja processado criminalmente. Battisti vem sendo usado também em manobra para distrair a atenção do povo”, diz.

Extradição

A perseguição a Battisti na Itália respingou no STF, que ignorou as contradições no julgamento italiano que condenou Battisti. Na instância máxima da justiça brasileira, o pedido de extradição ganhou com 5 a favor e 4 contra, cabendo, então, ao presidente Lula dar a palavra final. Em sua cruzada para desfazer as contradições presentes no processo, Fred Vargas enviou uma carta com 13 perguntas ao ministro Cezar Peluso, apontando as falhas no processo italiano. Não obteve resposta. Em seu relatório, o ministro Peluso havia afirmado que a Itália e sua justiça seguiram escrupulosamente as regras da democracia e de um Estado de Direito durante os ‘anos de chumbo’. “Isto é falso, a justiça italiana desta época utilizou ameaças, pressões, arrependidos, torturas, sem falar nas procurações falsas”, contesta Vargas.

Carlos Lungarzo também avalia que há uma perseguição de “ambos chefões” do STF (Cezar Peluso e Gilmar Mendes), por diferentes razões: “Por um lado, salvo para poucos casos, o poder judiciário da maior parte do mundo não se preocupa em prender inocentes. Isto é comum nos Estados Unidos e absolutamente comum no Brasil. Então, as pessoas que acompanharam o voto do relator, salvo Gilmar Mendes, podem ter simplesmente votado por conformismo, por medo de discordar, por banalização da vida humana”.

Para ele, entretanto, Peluso e Mendes estão promovendo uma verdadeira perseguição política, pois são típicos representantes da direita- o primeiro do conservadorismo católico e o segundo do estilo da direita brasileira. “Mendes sempre votou contra réus da esquerda. No caso de Mendes, por seu histórico, sua relação com a oposição política e outros detalhes, não há dúvida que a perseguição contra Cesare foi uma maneira de enfraquecer o governo, colocando Genro e Lula no meio de um conflito. Peluso é um radical católico, e me parece que nele há o sentimento não político-ideológico, mas algo mais profundo, que eu chamo ‘ódio inquisitorial’. Battisti é não apenas de esquerda. É uma pessoa crítica do sistema social, que escreveu mais de 10 livros onde denuncia a situação da Itália”, caracteriza.

O professor Paulo Arantes também avalia que a inclinação política dos magistrados influenciou na decisão pela extradição de Battisti: “É uma instituição majoritariamente conservadora, os ministros são visceralmente reacionários, portanto, a palavra de ordem deles aqui também ‘nada que saia fora da linha pode ser relevado’, desde um estudante que quebra uma vidraça numa ocupação de reitoria, até o caso de Battisti. É a política da tolerância zero, apoiada pela opinião publica, que abomina a junção de luta política com gesto de força” define. Agora, o que está em jogo, segundo Arantes, é decidir se a autorização dada pelo STF para Lula decidir se iria aceitar ou recusar a extradição foi séria, ou foi apenas brincadeira. “Eu acho quase impossível que, além de Peluso e Mendes, alguém possa votar que foi ‘pura brincadeira’. Tudo indica que a decisão de Lula será mantida”, diz.

Para Dalmo Dallari, a falha grave do STF foi a manutenção de Battisti na prisão mesmo depois de publicada a decisão do Presidente da Repúlica negando atendimento ao pedido de extradição. “A decisão do Presidente Lula foi absolutamente correta, do ponto de vista jurídico. Quanto aos fundamentos da decisão, também não cabe qualquer reparo. Com efeito, o Presidente decidiu no uso de suas competências constitucionais e tendo por base, quanto conveniência e oportunidade, disposições expressas do tratado de extradição assinado por Brasil e Itália em 1993. As condições concretas, a conveniência e oportunidade da extradição, isso fica no âmbito das competências exclusivas do Presidente”, explica.

Para o jurista, a decisão de Lula deve ser mantida. “Apesar dessas grosseiras investidas, não acredito que haja a mínima possibilidade de modificação da decisão tomada regularmente pelo Presidente Lula. Embora alguns brasileiros se posicionem a favor da pretensão italiana, é preciso não perder de vista que o Brasil não pode ceder sua soberania para ser agradável a uma corrente política italiana” afirma.



BOX: As contradições no segundo julgamento

Autor de um livro sobre a trajetória de Battisti e a perseguição sofrida pelo escritor, Carlos Alberto Lungarzo reuniu informações sobre os processos judiciais contra o italiano. Em entrevista a Caros Amigos, ele apontou algum elementos problemáticos , embora afirme:”Há muitos detalhes confusos e contraditórios, mas são tantos que não caberiam em nenhuma revista”. Veja abaixo algumas contradições levantadas pelo professor:

- No parágrafo 8 da página 448, o relator diz que, no caso do homicídio do açougueiro Sabbadin, o escolta do atirador era Battisti. Para provar que foi Battisti, disse que, além de provas (que não mostra), estão as testemunhas daqueles que assistiram ao homicídio ou seja, os clientes do açougue. Entretanto, algumas páginas antes diz que os clientes não puderam reconhecer ninguém porque os assaltantes estavam disfarçados.

- No caso do policial Andrea Campanha, o juiz toma como prova o fato de que, segundo a testemunha Manfredi, sogro do morto, o matador seria um homem loiro de uns 25 anos. Na página 522, o juiz reconhece que Battisti não é loiro, mas disse que pode ser ele, porque Battisti é castanho claro, e esta cor se parece com loiro.

- No primeiro homicídio, o do carcereiro Antonio Santoro, os magistrados mencionam várias testemunhas, todas pelo nome de família, sem indicar sexo, idade, profissão, domicílio nem nenhum outro dado. Entre as páginas 238 e 244, se mencionam Ronco, Menegon, Zampieri, Linassi, Pagano, Suriano, e na página 247, Ardizzone e Del Tosto. Nenhum deles foi jamais encontrado por jornalistas, nem aparecem em nenhuma outra lista. O que eles testemunharam foi que, num horário próximo ao do crime, havia um casal jovem que estava a uma pequena distância do local (não diz quanto). Ardizzone e Del Tosto descrevem apenas a mulher. Os outros descrevem ambos, mas os detalhes não coincidem. Ninguém descreve exatamente o corpo. O relatório disse ainda, numa parte, que o matador aplicou dois tiros pelas costas, e em outra parte, que aplicou três. Afirma-se que a arma usada era uma Glisenti, cuja propriedade foi atribuída a Battisti, porque teria sido encontrada na casa onde ele foi preso. Porém, na sentença de 1981, as 4 armas curtas encontradas na casa em que Battisti foi preso são descritas em detalhes: uma Berettam uma Browninge dois revólveres, um 38 e um 375. Nenhuma era uma Glisenti.

Dalmo de Abreu Dallari, jurista, também indica problemas que comprometeram a realização de um julgamento justo e imparcial. Ele afirma: “Tive acesso a muitos dados relativos ao processo que culminou com a condenação de Battisti. Examinando esses dados, verifiquei a ocorrência de vários vícios extremamente graves, que contrariam a afirmação de que houve um julgamento imparcial e justo. Assim, por exemplo, não foi assegurado ao acusado o direito de defesa, pois atuou no processo, aparentemente fazendo a defesa de Battisti, um advogado que utilizou procuração comprovadamente falsa e que não denunciou a falsidade das alegações da acusação, nem a precariedade das provas. Assim, Battisti foi condenado por dois homicídios praticados no mesmo dia e quase na mesma hora, em Milão e Veneza Mestre, locais que estão separados um do outro por dezenas de quilômetros, sendo praticamente impossível que ele estivesse nos dois lugares na hora em que os homicídios foram cometidos. A par disso, não foi apresentada qualquer testemunha presencial e a base da acusação foi o depoimento de um ‘arrependido’ na verdade um dos líderes do grupo a que Battisti estava filiado como um personagem menor, que fez as a acusações usando o mecanismo da ‘delação premiada’, recebendo benefícios em troca da acusação de outros. Portanto, não foi um julgamento imparcial e justo”.



BOX: Trajetória de uma fuga sem fim

Battisti nasceu em 1954, filho e neto de comunistas. Quando adolescente, cometeu alguns roubos, sendo preso em Udine, onde conheceu Arrigo Cavallina, um preso político do grupo de extrema esquerda, o PAC (Proletários Armados para o Comunismo). Battisti entrou para o PAC como um militante comum. Na Itália, assim como em toda Europa, os anos 1960-1970 foram marcados por lutas sociais, com o aumento das manifestações de ruas, ocupações e, inclusive, da luta armada e da via insurrecional. Conhecidos como os ‘anos de chumbo’, o movimento de revolta foi muito mais violento na Itália.

“A extrema esquerda luta contra o poder, que é corrompido e associado à máfia e, em parte, extrema direita. O poder utiliza a extrema direita para pôr bombas e atribuir os atentados extrema esquerda, o que os historiadores chamam de ‘Estratégia de Tensão’. Então, a extrema esquerda cai na armadilha e recorre as armas também” explica Fred Vargas. Segundo a historiadora francesa, nos anos 1970, existiu cerca de 600 grupos armados na Itália.

O PAC se forma no auge da ‘Estratégia de Tensão’, com a proliferação dos atentados praticados pela extrema direita com apoio da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), de acordo com o professor Paulo Arantes. “O que se passou na Itália foi um maio de 1968 (momento de insurreição na França) que durou 10 anos. Houve várias tentativas de Golpe de Estado, nesse contexto, houve estouros violentos dos dois lados, tanto da extrema direita, como da extrema esquerda. O PAC era uma das muitas organizações e não chegou a ter mais de 60 militantes ativos. Não era nenhuma ameaça para o governo italiano”, caracteriza Arantes.

Entre junho de 1978 e fevereiro de 1979, o PAC assumiu a autoria de quatro assassinatos: de um carcereiro chamado Antonio Santoro, do açougueiro Lino Sabbadin, membro do partido fascista MSI, do ourives Pierluigi Torregiani e do motorista do serviço secreto da polícia Andrea Campagna.

Por suas atividades no PAC, em 1979, Battisti foi detido e julgado pelos crimes de possuir armas não registradas e associação para cometer atos subversivos. Ele foi condenado a mais de 12 anos de prisão, sentença considerada exagerada por Carlos Lungarzo. “Durante o julgamento terminado em 1981, o Tribunal do Jurí de Milão não tem nenhum plano contra Battisti, os magistrados ainda não tinham decidido acusá-lo de nenhum homicídio. Ele foi julgado porque era conhecido como membro dos PAC, porém um membro pouco importante, e ele foi encontrado numa casa onde se guardavam algumas armas. O fato de que ele pegasse uma pena enorme (13 anos e 5 meses, depois reduzidos para 12 e 10 meses) se deve ao fato de que qualquer militante da esquerda armada tinha penas muito maiores que os autores de delitos comuns equivalentes”, afirma.

Em 4 de outubro de 1978, o serviço de inteligência da polícia de Milão identifica Pietro Mutti, um dos líderes do PAC, como autor da morte de Santoro, junto com uma mulher que seria sua escolta. Mutti, procurado durante mais de um ano, é capturado em janeiro de 1982, quando Battisti já não estava na Itália. Nessa época, a sentença de 1981 estava sendo apreciada em segunda instância e depois foi parcialmente confirmada pelo tribunal de apelações. Ou seja, o caso de Cesare estava fechado.

Por conta da presença de Mutti, e outros que foram capturados com ele, se abre um segundo processo, chamado PAC BIS, no qual Battisti é julgado de novo. Pelo acordo em que delata Battisti, Mutti teve sua pena reduzida de prisão perpétua para 8 anos. Neste período, Battisti já estava longe da Itália. O escritor foge da prisão em outubro 1981, atravessando os Alpes a pé rumo França. Lá ele permanece por alguns meses até se refugiar no México.

“Ele já está longe quando começa o segundo processo do PAC, em 1982, do qual ele seria informado apenas em 1990, quando retorna a França. Depois, ele vive durante 13 anos lá legalmente, sendo escritor e porteiro. Tem uma mulher e duas filhas”, conta Fred Vargas.

Battisti vive na França durante os anos da chamada Doutrina Miterrand, quando em 1985, o presidente francês François Mitterrand oferece proteção aos militantes da esquerda armada italiana. O pacto foi rompido, entretanto, pelo governo de direita de Jaques Chirac, e atualmente também por Nicolas Sarkozy.

Com isso, Battisti continua em sua fuga sem fim e, em 2005, se refugia no Brasil. A Itália pede a extradição do escritor e, em novembro de 2009, o Supremo Tribunal Federal decide por cinco votos a quatro pela extradição de Battisti, mas deixa palavra final para o presidente da República. Lula, no último dia de seu mandato, decide negar a extradição. A Itália contesta a decisão no STF, que voltará se manifestar sobre o tema. Enquanto isso, Battisti segue preso.

Em uma carta divulgada recentemente no Brasil, Battisti afirma:

“Depois de 14 anos de asilo, a França de Sarkozi me vendeu Itália de Berlusconi em troca do trembala [comboio de grande velocidade] de Lyon-Turin. Desde o ano 2000, estamos assistindo impiedosa tentativa do Estado italiano enterrar definitivamente a tragédia dos anos de chumbo, jogando na prisão e levando à morte o bode expiatório Cesare Battisti. Entre centenas de refugiados dos anos 1970 que se encontram em vários países do mundo, não fui escolhido eu por acaso nem pela importância do papel de militante, mas pela imagem pública que eu tinha enquanto escritor, o que me dava o acesso à grande mídia para denunciar os crimes de Estado naquela época e os atuais”.



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