quinta-feira, 23 de junho de 2011

ESCREVER É FÁCIL?

ESCREVER É FÁCIL?

Gustavo Bernardo







Para estimular crianças e jovens a escrever, há quem diga que escrever é fácil: basta pôr no papel o que está na cabeça. Na maioria das vezes, porém, este estímulo é deveras desestimulante.

Há boas explicações para o desestímulo. Primeira: se a pessoa não consegue escrever, convencê-la de que escrever é fácil na verdade a convence apenas da sua própria incompetência, a convence apenas de que ela nunca vai conseguir escrever direito. Segunda: não se escreve pondo no papel o que está na cabeça, sob pena de ninguém entender nada. Terceira: quem escreve profissionalmente nunca acha que escrever é fácil, nem mesmo quando escreve há muito tempo – a não ser que já escreva mecanicamente, apenas repetindo frases e fórmulas.

Via de regra, nosso pensamento é caótico: funciona para alimentar nossas decisões cotidianas, mas não funciona se for expresso, em voz alta ou por escrito, tal qual se encontra na cabeça. Para entender o nosso próprio pensamento, precisamos expressá-lo para outra pessoa. Ao fazê-lo, organizamos o pensamento segundo um código comum e então, finalmente, o entendemos, isto é, nos entendemos. Não à toa o jagunço Riobaldo, narrador do romance “Grande sertão: veredas”, dizia: “professor é aquele que de repente aprende”.

Todo professor conhece este segredo: você entende melhor o seu assunto depois de dar sua aula sobre ele, e não antes. Ao falar sobre o meu tema, tentando explicá-lo a quem o conhece pouco, aumento exponencialmente a minha compreensão a respeito. Motivado pelas expressões de dúvida e até de estupor dos alunos, refino minhas explicações e, ao fazê-lo, entendo bem melhor o que queria dizer. Costumo dizer que, passados tantos anos de profissão, gosto muito de dar aula, principalmente porque ensinar ainda é o melhor método de estudar e compreender.

Ora, do mesmo jeito que ensino me dirigindo a um grupo de alunos que não conheço, pelo menos no começo dos meus cursos, quem escreve o faz para ser lido por leitores que ele potencialmente não conhece e que também não o conhecem. Mesmo quando escrevo um diário secreto, o faço imaginando um leitor futuro: ou eu mesmo daqui a alguns anos, ou quem sabe a posteridade. Logo, preciso do outro e do leitor para entender a mim mesmo e, em última análise, para ser e saber quem sou.

Exatamente porque esta relação com o outro, aluno ou leitor, é tão fundamental, todo professor sente um frio na espinha quando encontra uma nova turma, não importa há quantos anos exerça o magistério. Pela mesma razão, todo escritor fica “enrolando” até começar um texto novo, arrumando a escrivaninha ou vagando pela internet, não importa quantos livros já tenha publicado. Pela mesmíssima razão, todo aluno não quer que ninguém leia sua redação enquanto a escreve ou faz questão de colocá-la debaixo da pilha de redações na mesa do professor, não importa se suas notas são boas ou não na matéria.

Porque escrever definitivamente não é fácil, expondo-nos no momento mesmo de fazê-lo. Como diz João Cabral de Melo Neto, num dos poucos poemas que sei de cor e de coração:



Escrever é estar no extremo

de si mesmo, e quem está

assim se exercendo nessa

nudez, a mais nua que há,

tem pudor de que outros vejam

o que deve haver de esgar,

de tiques, de gestos falhos,

de pouco espetacular

na torta visão de uma alma

no pleno estertor de criar.



Quem escreve põe o pé na beira do seu próprio abismo, porque abala suas certezas e multiplica suas dúvidas.

Quem escreve despe mais do que as próprias roupas, porque enquanto escreve ainda não sabe o que mostra para os outros.

Quem escreve sente de repente todas as suas hesitações, lacunas e omissões, percebendo como o seu próprio pensamento é incompleto e o quanto ainda precisa pensar.

Quem escreve de repente entende o quanto a sua própria pessoa é incompleta e fraturada, o quanto ainda precisa se refazer, se inventar, enfim: se reescrever.

In: Revista Eletrônica do Vestibular da UERJ, 14/03/2011



http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a704.htm

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