sexta-feira, 10 de junho de 2011

VÁRIOS TEXTOS SOBRE A HOMOAFETIVIDADE

Só os viris e discretos serão amados?

Por: CARRARA, Sérgio

Sérgio Carrara*

Paradas do orgulho de lésbicas, gays, transgêneros e bissexuais se multiplicam pelo país e começam a merecer a devida atenção dos institutos de pesquisa. Na última parada paulistana, o Datafolha investigou manifestantes e opiniões através de um "survey". Começa a ser também divulgada pesquisa conduzida em 2004, na parada carioca, pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), Grupo Arco-Íris e Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Universidade Candido Mendes). Na pesquisa do Datafolha, chamou a atenção o fato de 76% dos entrevistados concordarem, total ou parcialmente, com a idéia de que "alguns homossexuais exageram nos trejeitos, o que alimenta o preconceito contra os gays". A pesquisa do Rio revelou que, entre os homens homossexuais, 44,6% preferem parceiros "mais masculinos", contra apenas 1,9% que os preferem "mais femininos" (para íntegra dos resultados ver www.clam.org.br). Para alguns, por aumentar o preconceito, a feminilidade parece politicamente incorreta nos homens. Para outros, deve ser cuidadosamente policiada pelos que se aventuram no mercado dos afetos e paixões.
Devemos concluir que a androginia perdeu seus poderes de contestação (tão caros à contracultura) e que sua beleza está sendo destruída em infindáveis sessões de musculação? Resultados de pesquisas quantitativas devem ser analisados com cautela, antes de se propor qualquer interpretação. Eles desenham tendências ou mapeiam diferenças sociologicamente relevantes em dada população, mas raramente desvendam seu significado mais profundo. Nessa tarefa, apenas auxiliam os sociólogos a construir hipóteses interpretativas.Como compreender então essa espécie de condenação política dos "trejeitos" femininos e a contemporânea valorização erótica de certa aparência viril?



"Inversão sexual"

É certo que, nas últimas décadas, a emergência pública do fenômeno "gay" tem mostrado que homossexualidade masculina não é sinônimo de "efeminação". E para muitos a afirmação de uma homossexualidade viril é de fato questão política, pois desestabiliza o paradigma da "inversão sexual", no qual a homossexualidade masculina aparece como resultado do aprisionamento de suposta alma feminina em um corpo masculino. Assim, por muito tempo e ainda hoje para várias pessoas, homossexuais devem ser considerados, senão pecadores ou doentes, ao menos desajustados ou desviantes: uma alma "errada" em um corpo "certo" ou vice-versa.

A necessidade política de afirmação de uma homossexualidade viril pode não explicar inteiramente a rejeição da feminilidade nos homens, detectadas pelas duas pesquisas nos planos erótico e político. É mais provável que estejamos frente a uma complicada resposta à discriminação, também presente em outras populações estigmatizadas. Nela, a rejeição da feminilidade reflete uma tentativa de desviar o preconceito, que ameaça a todos, para um subgrupo ainda mais vulnerável, para quem as conhecidas acusações de "mulherzinha" ou "mariquinhas" seriam adequadas e até aceitáveis. Recusa-se o estigma, mas, ao atribuí-lo ao "outro", perpetuam-se os termos sobre os quais ele se constrói.

Os limites a essa estratégia estão dados dentro do próprio universo homossexual, no qual assistimos nos últimos anos à crescente organização e visibilidade política dos -ou das- transgêneros (travestis e transexuais), para quem a incorporação da feminilidade é fundamental no processo de construção de suas identidades. Porém, mesmo nesses casos, não temos mais a afirmação política da androginia, e sim a reiteração das fronteiras simbólicas de gênero que separam homens e mulheres, independente de seu sexo biológico.

Trata-se de hipótese e apenas novas pesquisas, especialmente as qualitativas, podem ou não confirmá-la. Se ela é plausível frente aos dados disponíveis, devemos começar a nos perguntar até que ponto a adequação às normas de gênero vigentes é, para muitos, o preço para ingressar no universo da cidadania ou da conjugalidade bem sucedida. Afinal, apenas os homossexuais viris, discretos e bem comportados merecem o paraíso?

*Sérgio Carrara é antropólogo, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.

Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1906200509.htm.

Publicada em: 20/06/2005 às 17:36 Comportamento Sexual
http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=330&sid=89&tpl=view_BR_0125




“Ou o sal não salga, ou....”

*Sérgio Carrara

Em tempos de pânico moral todo o cuidado é pouco. Pânicos morais, como o que agora cerca o chamado kit anti-homofobia do Ministério da Educação, são como pântanos. Qualquer movimento para sair deles pode apenas nos empurrar ainda mais ao fundo. Para escapar de um pânico moral é crucial, em primeiro lugar, agarrar-se aos fatos. Em segundo, agarrar-se à lógica ou à razão, colocando questões diferentes daquelas formuladas pelos principais atores interessados em produzi-lo ou que, com o restante da população, nele permanecem presos.
Primeiro, os fatos. Há alguns anos o governo federal tem estabelecido as bases de uma política voltada a combater o preconceito sexual e, consequentemente, a discriminação e a violência que nele têm origem. Essa política envolve diferentes ministérios e a criação paulatina de uma série de novos dispositivos institucionais
(como o Conselho Nacional LGBT, Centros de Referência contra a Violência Homofóbica, campanhas publicitárias etc.). Como a presidente Dilma Rousseff deixou claro ao ser interpelada por jornalistas: “O governo é contra a homofobia”. No contexto dessa política, o Ministério da Educação desenvolve algumas ações e projetos como o “Escola sem Homofobia”, do qual fazem parte os filmes que estão no centro do furacão.
Em estreito diálogo com técnicos do ministério e grupos e redes LGBT, esse material
tem sido desenvolvido por universidades e organizações da sociedade civil que, além de sérias, têm larga experiência nessa temática.
Com os esclarecimentos recentes do próprio ministro da Educação aos jornalistas, sabemos que esse material não era dirigido a crianças (não que elas não devam discutir o assunto), que seria distribuído seletivamente a escolas que estivessem
enfrentando problemas de homofobia e que aguardava ainda a avaliação final do Ministério para sua efetiva distribuição. Absolutamente nada a ver com o que dizem os
deputados que iniciaram a confusão. Sabemos igualmente que a demanda por projeto dessa natureza originou-se no próprio Congresso, apoiada pelo Ministério Público, que
cobrava do governo ação mais enérgica no combate à violência por preconceito sexual
nas escolas. Apenas essas informações, bem divulgadas, já teriam sido suficientes para frustrar a malícia e o oportunismo de quem aposta na desinformação e no medo para impor a todos suas convicções morais e religiosas. Aliviada, a sociedade se daria conta de que, enfim, o governo não está empenhado em corromper nossas crianças.
Porém, frente ao pânico que tinha a obrigação de extinguir o mais rapidamente possível, a ação do governo foi errática e confusa. Intempestivamente, Dilma manda
“suspender” o material, embora não fique claro se o que se suspendia era sua produção, sua distribuição ou o convênio que lhe deu origem. Ao invés de simplesmente dizer que o material ainda estava sob análise e que tinha certeza de que a equipe do Ministério teria discernimento suficiente para impedir que qualquer ideia “inapropriada” fosse divulgada, a presidente condenou o resultado do projeto “Escola sem Homofobia” baseada no que teria visto na televisão como sendo supostamente parte do material a ser enviado às escolas. Para ela, o material “propagandeava uma opção sexual” e isso seria inaceitável. Fomos depois esclarecidos de que Dilma se referia a uma frase contida em um dos três filmes, eles mesmos apenas parte de um material mais extenso. A frase em questão corporificava os dilemas de um adolescente que, sentindo-se atraído igualmente por rapazes e moças, chegava à conclusão de que, afinal, ser bissexual não era lá tão ruim, uma vez que, apesar do preconceito, seriam maiores suas probabilidades de encontrar alguém interessante. Estaria assim em vantagem em relação àqueles e àquelas que preferem apenas o mesmo ou apenas o outro sexo.
Então toda essa confusão se deve a uma simples frase contida em um material ainda em discussão pelo governo? Teria sido também por isso que deputados investiram tão ferozmente contra o ministro? Que estranho poder teria essa afirmação para provocar toda essa gritaria? Por que teria alarmado deputados preocupados com a moral e os bons costumes, colocando militantes em pé de guerra e exigindo o pronunciamento da mais alta autoridade da nação? Colocando bissexuais em posição privilegiada em relação a homo e heterossexuais, mais limitados em suas “opções” (para usar a expressão da presidente), a ideia pode até ser considerada infeliz. Mas, convenhamos,
em um mundo em que certas orientações sexuais ainda são consideradas pecado, imoralidade e até doença, o que haveria de tão escandaloso nessa quase risível fabulação de um adolescente que procura ver alguma vantagem onde todos tendem a ver somente desvantagem? Isso não seria apenas um detalhe pueril, facilmente contornável em um material didático necessário e ainda em elaboração?
Como dito no “Sermão de Santo Antônio aos peixes”, do Padre Antonio Vieira,
“ou o sal não salga ou a terra não se deixa salgar...”, podemos dizer que ou todo esse imbróglio esconde “tenebrosas transações” (como muitos acreditam), ou revela uma
certa concepção sobre os considerados sexualmente diferentes que urge submeter à crítica. Os filmes (e aqui me refiro aos três) optaram por abordar a homofobia sem
vitimizar homossexuais, travestis e bissexuais. Ou seja, ao invés de atacar os que
vilipendiam ou desprezam tais grupos, escolheram valorizá-los, apresentando sua diferença como algo positivo. Aparentemente, nesse caso, como aliás no caso de mulheres, negros e populações indígenas, condenar a desvalorização social a que são
submetidos ou valorizar a diferença que os torna objeto de injúria seriam apenas
caminhos diferentes que conduziriam ao mesmo resultado. Combater a homofobia não significa reconhecer a homossexualidade como orientação sexual tão digna de respeito
quanto a heterossexualidade? Mas esse raciocínio não parece se aplicar em relação à
declaração de Dilma. Quando afirma que o governo “combate a homofobia, mas não propagandeia qualquer opção sexual”, parece dizer que a homossexualidade é uma
espécie de defeito, uma desventura, um infortúnio; que não há nada de positivo nela.
Como outros “deficientes”, homossexuais devem ter seu “problema” tolerado. Mas
dizer que não se trata de um problema, como parece fazer o material do Ministério da
Educação, seria incentivar a homossexualidade. Não estaríamos aqui apenas frente a
uma espécie de tradução laica do mantra esquizofrenizante repetido ad nauseam por
pastores e padres segundo o qual o pecador deve ser amado, mas não o pecado, ou seja,
que homossexuais devem ser acolhidos, mas não a homossexualidade?
Ou talvez não seja nada disso que a presidente quis dizer. Talvez ela realmente considere heterossexualidade, homossexualidade e bissexualidade como orientações
afetivo-sexuais igualmente válidas, igualmente merecedoras de respeito e dos mesmos
direitos à cidadania. Então, para que o pânico moral seja realmente contido e para que os danos que já causou sejam reparados, ela deve vir a público dizer que os que afirmam ser a homossexualidade pecado, imoralidade ou doença, os que negam os direitos de cidadania a homens e mulheres homossexuais, como fazem os deputados responsáveis por esse lamentável imbróglio, estão implícita ou explicitamente “propagandeando” a heterossexualidade e que isso é também inaceitável. Que venha a público dizer que seu governo não combate apenas a barbárie homofóbica, mas defende a completa igualdade de direitos, fazendo suas as palavras de todos os juízes do STF quando decidiram sobre o estatuto das uniões homoafetivas. Sob pena de se misturar aos que consideram a homossexualidade inferior à heterossexualidade e deram início a toda essa confusão, deve deixar claro que os motivos que a fazem condenar parte do material produzido pelo Ministério não são os mesmos dos bolsonaros e garotinhos.
Enfim, um país que foi capaz de produzir a lucidez implacável de um Padre Antonio Vieira, não pode exigir menos de seus governantes: que em nome da razão, da lógica e dos bons costumes mentais assumam suas posições claramente e digam com todas as letras o que pensam e as razões de suas decisões. Caso tais razões sejam da ordem do inconfessável, que se calem. Será constrangedor para o Governo se o pânico moral, irresponsavelmente implantado entre nós em torno desse projeto do Ministério, acabe se transformando em uma ópera bufa, em mais uma comédia de erros.
* Antropólogo, professor da UERJ e coordenador do Centro Latino Americano em sexualidade e Direitos Humanos

* Esta é a versão completa do artigo editado publicado no jornal O GLOBO do dia 07/06/2011

http://www.clam.org.br/publique/media/Artigo_Carrara_3.pdf



“Não podemos interferir na vida privada das pessoas”

*Profa. Dra. Berenice Bento/UFRN

Até pouco tempo escutávamos que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Também era um costume lavar a honra com o sangue da mulher assassinada. Casos de mulheres assassinadas por seus parceiros dificilmente chegavam à justiça. Nas últimas décadas houve uma proliferação de movimentos e estudos mostrando que o espaço da casa, o lar doce lar, é marcado pela violência e que para alterar hábitos seculares era importante combinar ações dos movimentos sociais com políticas públicas que objetivassem acabar com violência no espaço familiar, ao mesmo que se aprovaram leis que penalizam os criminosos. Portanto, o espaço doméstico tem sido um dos lugares mais normatizados pelo Estado nas últimas décadas, a exemplo da Lei Maria da Penha e do Estatuto da Infância e Adolescente. Quando a Presidenta Dilma afirma que “não podemos interferir na vida privada das pessoas”, contraditoriamente, esquece o papel fundamental do Estado brasileiro, pressionado por movimentos socais, na transformação desse espaço.
Nesse processo histórico de politização do privado, a violência contra os filhos e as filhas homossexuais passou a ter visibilidade. O que pode um pai e uma mãe contra um filho homossexual? Tudo? Se o argumento for pelo costume, ou seja, aquilo que tem força reguladora das relações entre as pessoas pela repetição, então, neste, caso, os pais podem tudo, principalmente contra filhos não heterossexuais. E, de fato, as pesquisas mostram a violência brutal dos pais que descobrem que seus filhos são gays, lésbicas ou transexuais ou travestis. A resposta costumeira para esta descoberta tem sido a expulsão de casa. Pela declaração da Presidenta, nada se poderá fazer. Mas a família não está só na tarefa de preservação do “costume heterossexual”, tem como aliada outra instituição poderosa: a escola.
As inúmeras teses e pesquisas produzidas por pesquisadores/as de universidades brasileiras apontam que a escola é um dos espaços mais violentos para crianças que apresentam comportamentos “não adequados” para os “costumes heterossexuais”. Não basta falar de bullying, palavra asséptica, que não revela o heteroterrorismo a que estas crianças e adolescentes são submetidos. A reiteração de agressões verbais e físicas contra meninos femininos e meninas masculinas desfaz qualquer ilusão de que a heterossexualidade é um dado natural. Desde que nascemos somos submetidos diariamente a um massacre: “comporte-se como menina, feche as pernas, seja homem, menino não chora”. A produção da heterossexualidade é um projeto diário e violento.
Imaginem o sofrimento de um estudante que precisa freqüentar a escola, mas sabe que ali será agredido física e psicologicamente. Uma das mulheres transexuais que entrevistei afirmou: “Era um horror. Na hora do recreio eu ficava sozinha. Ninguém brincava comigo. Eu me sentia uma leprosa. Por várias vezes, a professora viu os meninos me xingando de viadinho e ela só fazia ri.” O riso da professora seria um costume? Desnecessário afirmar que esta mulher transexual, como tantas outras, não conclui seus estudos. Os indicadores de sucesso e fracasso escolar, ou evasão, subestimam a variável violência homofóbica.
Muitos professores argumentam que não têm instrumentos didáticopedagógicos para fazer uma reflexão com seus estudantes sobre respeito e diversidade sexual.
A disputa que assistimos em torno do material pedagógico Escola Sem Homofobia nos revela que produção da heterossexualidade não tem nada a ver com “costumes” inseridos no âmbito do privado, mas com poder. A bancada religiosa do Congresso Nacional sabe muito bem disso. Sabe que a produção de uma pessoa heterossexual é um projeto que deve contar com o apoio absoluto de todas as instituições: a família, a escola e, claro, os representantes do Estado.

*Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Coordenadora do
Núcleo Tirésia-UFRN
http://www.clam.org.br/publique/media/Art_Berenice_Bento.pdf

http://www.clam.org.br/publique/media/O%20STF%20E%20A%20UNIAO%20ESTAVEL%20HOMOSSEXUAL.pdf



Alexandre, alexandres...

Sérgio Carrara1

Nos últimos meses, a expressão “homofobia” entrou definitivamente na linguagem corrente da mídia brasileira. Mais do que a incorporação de uma nova palavra, o fenômeno aponta para uma crescente inquietação social em relação a uma atitude intolerante e preconceituosa específica. Aparentada ao machismo e ao sexismo, freqüentemente articulada ao racismo e à xenofobia, a homofobia designa a rejeição que, em certos contextos chega ao ódio e ao extermínio, de que são objeto pessoas que não manifestam atributos - práticas, inclinações, desejos - convencionalmente vinculados ao sexo que lhes foi atribuído ao nascer. Homens considerados excessivamente femininos, mulheres consideradas masculinas e, em especial, aqueles e aquelas que desejam sexualmente pessoas do mesmo sexo continuam a ser estigmatizados e atirados ao terreno da vergonha, da injúria e da abjeção, onde se tornam vulneráveis a diferentes formas de violência. A homofobia é, portanto, o preconceito contra o qual vem se batendo há várias décadas o movimento LGBT e os defensores dos direitos humanos em diferentes países.
Assistimos recentemente a mais um assassinato cometido, ao que tudo indica (a investigação policial ainda está em curso), por jovens vinculados a grupos cuja ideologia organiza-se em torno da homofobia e de valores homofóbicos. A vítima, um adolescente de 14 anos que morava na cidade de São Gonçalo (RJ), foi trucidado de forma covarde e brutal por ser gay ou, como declara sua mãe, por ter amigos gays. Isso não importa. A se confirmar a motivação do crime, não estamos frente a um caso isolado que possa ser compreendido apenas como fruto da perversidade ou da maldade de alguns indivíduos. Trata-se, sim, da manifestação mais radical do preconceito ainda mantido por parte significativa da população brasileira e presente em nossas instituições, valores e leis (ou na ausência delas). Esse preconceito vem suprimindo a vida de muitos homens e mulheres, cuja morte civil decretada pela homofobia, muitas vezes precede e prepara a morte real.
Além de chorar os mortos e exigir que a justiça seja feita de modo exemplar nesses casos, devemos pensar como enfrentar a homofobia e os crimes de ódio que ela motiva, compreendendo o ambiente social onde medram esses horrores. Um esforço importante nesse sentido foi feito recentemente pela Fundação Perseu Abramo, ao conduzir em 2009 uma pesquisa nacional sobre o tema. De modo
1 Antropólogo, Professor Adjunto da UERJ, Coordenador do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, Pesquisador do CNPq.
geral, ela mostra a força da homofobia na sociedade brasileira. Quando convidados, por exemplo, a declarar o que sentem sobre diferentes tipos de pessoas, nada menos do que 20% dos homens e mulheres entrevistados disseram sentir “antipatia”, “repulsa” e até “ódio” por lésbicas, gays, travestis e transexuais e cerca de 40% ainda consideram a homossexualidade uma “safadeza”, “falta de caráter” ou “doença”. Além disso, os resultados da pesquisa ajudam a perceber melhor como essa forma particular de ódio se distribui por diferentes categorias sociais. Como esperado, homens tendem a ser, de modo geral, mais homofóbicos que mulheres e a homofobia cresce sistematicamente conforme diminuem os anos de estudo. O que surpreende, entretanto, é que os homens jovens, com idades entre 16 e 24 anos, são mais homofóbicos do que seus pais e quase tão homofóbicos quanto seus avôs. Em contraste, entre as mulheres, a homofobia tende a aumentar progressivamente, conforme aumenta a idade das entrevistadas, sendo as mais jovens significativamente mais tolerantes que as mais velhas. Assim, se apenas 1% das mulheres mais jovens declarou que expulsaria um filho gay ou uma filha lésbica de casa, 14% dos homens nessa faixa etária disseram que tomariam tal medida.
Muito provavelmente a marcada atitude homofóbica presente entre os homens jovens, como os que estão sendo acusados de matar Alexandre Ivo, explica-se pelo modo como se processa a afirmação da identidade masculina nessa fase da vida. Para ser “homem de verdade” é preciso dar provas de que se é macho, o que, nesse caso, significa a rejeição, em si e nos outros, de quaisquer características ou desejos considerados tipicamente femininos. No caso do último assassinato, suspeita-se que, além de homens e jovens, os criminosos fizessem parte de certas gangues urbanas cuja ideologia, ao entrelaçar a homofobia ao racismo e ao sexismo, tem se mostrado letal não apenas para gays, lésbicas e travesti, mas também para mendigos, trabalhadores pobres, negros e imigrantes.
Os poderes públicos têm uma urgente agenda a cumprir para por fim a esse circo de horrores. No plano educacional, devem incentivar a emergência e desenvolvimento de novas formas de viver a masculinidade. No plano legal, devem dar sinais claros a toda a sociedade brasileira de que gays, lésbicas, travestis e transexuais merecem o mesmo respeito e amparo legal de que gozam todos os cidadãos. A Justiça e o Executivo vêm tomando medidas importantes, mas o Congresso parece ainda hesitar em aprovar projetos fundamentais, como o que, alterando o Código Civil, abre a instituição do casamento a quaisquer indivíduos, independente de seu sexo e orientação sexual, ou o que altera o Código Penal, criminalizando a homofobia. E essa hesitação deve também ser considerada a causa da morte desse e de tantos outros alexandres, que o preconceito, o silêncio e a indiferença de tantos abandonam à intolerância e ao ódio de alguns.

http://www.clam.org.br/publique/media/Alexandre,%20alexandres_%20Artigo%20Sergio%20Carrara_pdf.pdf

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