terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

“Efervescência democrática no mundo árabe"

1. Jovens: em trânsito, engarrafados, em chamas

Lucas Mendes, De Nova York para a BBC Brasil



A Grande Recessão americana foi campeã de desempregos: 8 milhões. Mais do que as quatro anteriores juntas.

Mas em dezembro, na indústria privada, o número de contratações foi excepcional e cresce entre os que têm alguma educação universitária. Quanto mais diplomas, melhor, mas estes não garantem emprego imediato nem salários altos.

Jovem americano, homem ou mulher, desempregado ou mal empregado, muda de cidade ou Estado. Raramente muda de país em busca de empregos, mas, desde 2008, milhares se mandaram para a Índia. Com passagem de ida e volta.

Os peregrinos desembarcaram nos Estados Unidos no século 17 sem passagem de volta para a Europa e os milhões de imigrantes que chegaram depois, com raríssimas exceções, vieram para ficar. Inclusive a maioria dos estudantes universitários que vêm fazer mestrados e doutorados.

Ano passado, quase 700 mil jovens vieram estudar nas faculdades americanas. Chineses, 128 mil, e indianos, 105 mil, foram os maiores contingentes. Com os coreanos, eles formam o melhor time em matemática, ciências e informática do mundo.

Milhares de chineses e indianos, com seus mestrados e doutorados, voltaram para seus países. O recrutamento chinês é agressivo, com vídeos das novas faculdades, novos centros de estudos e pesquisas, ofertas de bons salários, garantias e benefícios. A paciência dos jovens, como a grana, é curta. Diante de um aceno tentador, bye bye Tio Sam.

Não é fácil calcular este prejuízo. Os jovens estrangeiros estão entre os maiores empreendedores no país: o co-criador do Google é um russo, do eBay, iraniano, do Yahoo, taiuanês, da MicroSystems, indiano.

Os jovens japoneses, que foram tão criativos em indústrias campeãs - Sony, Honda, Toyota - hoje são menos empreendedores e mais engarrafados. Como os americanos, os japoneses raramente saem do país em busca de empregos, mas até os bem diplomados japoneses estão mal empregados, vítimas da "democracia grisalha". O Japão é um país de tradições e mesmo quando a economia está por baixo, os mais velhos estão por cima.

As empresas não demitem os veteranos. Contratam os jovens por salários menores, menos tempo, não pagam pensões nem seguro de desemprego. Sem dinheiro para pagar suas próprias e mandatórias pensões, os jovens saem fora do sistema. Daqui a quarenta, cinquenta anos, quando se aposentarem, serão velhos miseráveis.

A juventude árabe vai pior até do que a africana. Os mais e os menos educados, a maioria desempregada, a juventude árabe está nas ruas e não busca só empregos. Uma indignidade banal pode implodir este universo corrupto, onde milhões são reprimidos, torturados e mortos impunemente todos os dias.

Um tapa na cara queimou a ditadura na Tunísia e ameaça tantas outras. Muhamed Bouazizi tinha diploma universitário, mas, aos 26 anos, era um vendedor de frutas numa cidade pobre e pequena da Tunísia. Os fiscais exigiam e ele pagava os subornos, mas neste começo de ano, Muhamed estava duro.

Naquele dia, além de multá-lo, a fiscal confiscou sua balança nova e ia jogar as frutas fora. Ela puxou o carrinho de lá, ele puxou de cá. Levou um tapa na cara, cuspidas e um chega pra lá dos parceiros da fiscal. No departamento em que deu queixa, foi posto para fora com ameaças de novas multas. Comprou um solvente de tintas, foi para a porta do palácio do governador, se encharcou, e acendeu um fósforo.

Nos países afluentes, os jovens querem empregos e futuro. No mundo árabe, querem o básico: dignidade.


2. “Revolução árabe” anuncia novas tragédias

José Arbex Jr.

A "revolução árabe" começou a ser defla¬grada em 17 de dezembro, por um singular mas trágico incidente: Mohammed Bouazizi, 25 anos, vendedor ambulante de hortaliças, ao ter as suas mercadorias apreendidas pela polícia (cena, aliás, bastante comum em São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais brasileiras), foi levado ao desespero e imolou-se em fogo, na localidade de Sidi Buzid (perto de Túnis). O auto-sacrifício incendiou o país; manifestações de revolta na capital, cidades e vilarejos derrubaram o ditador Zine Ben Ali (no poder desde novembro de 1987), expulso finalmente da Tunísia em 14 de janeiro. Foi o sinal para que grandiosas manifestações eclodissem sem aviso na Argélia, na Jordânia, no Iêmen e, sobretudo, no Egito. Centenas de milhares de jovens, trabalhadores e trabalhadoras, donas de casa, intelectuais, artistas e pequenos comerciantes saíram às ruas contra odiosas ditaduras e monarquias. Em l de fevereiro, no Cairo, Alexandria e outras cidades, pelo menos l milhão exigiram a renúncia imediata de Hosni Mubarak, há três décadas um servo fiel das determinações da Casa Branca. O espectro da revolta sacode o Oriente Médio e o norte da África e cria imensas indagações sobre os novos cenários geopolítico, econômico e financeiro do mun¬do contemporâneo.
À primeira vista, o grandioso tsunami árabe é inexplicável. Assume a aparência de um evento fortuito, que tenderá a desaparecer com a mesma rapidez com que eclodiu. Nada poderia ser mais equivocado. Se o sacrifício de um jovem ambulante é capaz de incendiar uma região inteira do planeta, isso se deve a determinações profundas, inconscientes, muitas vezes invisíveis, mas que se combinam de forma explosiva e imprevisível em determinados momentos históricos. Ninguém controla ou domestica a história, diria a grande revolucionária polonesa Rosa Luxemburgo, cujas análises sobre a Revolução Russa oferecem a chave para entender o que acontece hoje no Oriente Médio. Quem diria, até o final de novembro de 2001, que, em menos de quinze dias, uma multidão enfurecida, incluindo senhoras de classe média, muito bem vestidas, saquearia supermercados e bancos em Buenos Aires, e expulsaria os inquilinos eleitos da Casa Rosada? Ou quem afirmaria, em outubro de 1989, que em 9 de novembro cairia o Muro de Berlim? Os manifestantes árabes, principalmente os jovens, não reclamam apenas reformas econômicas. Manifestam uma revolta incontrolável contra regimes que, durante décadas, oprimiram, torturaram, perseguiram, assassinaram os seus opositores, além de terem devotado uma submissão canina a um sistema imperialista que construiu um imenso edifício de preconceito, ódio e segregação ao mundo árabe e islâmico.
Justamente o Egito é um elo crucial desse processo, por uma razão ao mesmo tempo simples, trágica e grandiosa: durante 16 anos, a partir de 1954, ele foi governado por Gamal Abdel Nasser (1918 - 1970), responsável, em 26 de julho de 1956, pela nacionalização do Canal de Suez, e pela vitória, quatro meses depois, sobre o assalto combinado de tropas britânicas, francesas e israelenses que queriam recuperar o controle sobre o canal - resultado que provocou a renúncia, em janeiro de 1957, de Anthony Eden, o então arrogante primeiro-ministro britânico. "Tudo o que nos foi roubado por aquela empresa imperialista, por aquele Estado dentro do Estado, enquanto morríamos de fome, nós vamos reaver... O governo decidiu sobre a seguinte lei: um decreto presidencial que nacionaliza a Companhia Internacional do Canal de Suez. Em nome da nação, o presidente da república declara que a Companhia Internacional do Canal de Suez é uma companhia limitada egípcia", declarou Nasser em 26 de julho, durante um comício realizado em Alexandria. Com Nasser, o mito da "grande nação árabe" encontrava o seu momento histórico mais brilhante: um líder carismático, símbolo da luta contra o imperialismo britânico, finalmente demonstrava a possibilidade de os povos árabes recuperarem sua dignidade e autoestima.

EXPANSÃO ISLÂMICA

A vitória obtida na Guerra do Suez, graças à mobilização massiva da população, que foi armada pelo governo para resistir aos invasores, criou a sensação, entre milhões de árabes de todo o Oriente Médio, de que a mensagem pan-arabista preconizada por Nasser era o caminho indiscutível rumo à recuperação da glória que um dia os povos árabes conheceram, no auge da expansão islâmica. A vitória egípcia estimulou manifestações populares em todos os países árabes cujos governos eram identificados com as potências imperialistas, especialmente no Iraque do primeiro-ministro Nuri al-Said, visto como um vassalo de Londres. Como resultado das mobilizações populares, caíram Said e a monarquia iraquiana, em julho de 1958. Também como resultado da campanha de Suez, e por impulso só de correntes nacionalistas sírias, principalmente organizadas pelo Partido Baas, foi criada, em 22 de fevereiro de 1958, a República Árabe Unida (RAU), que, integrando Egito e Síria, com capital no Cairo, era destinada a ser o embrião do primeiro Estado pan-árabe (extinto em 1961). O prestígio de Nasser atingia o seu ponto máximo.
Após a vitória de Suez, Nasser reprimiu violentamente e perseguiu os próprios aliados, incluindo militantes de sindicatos e partidos de esquerda, bem como a Irmandade Muçulmana. Além disso, claro, foi humilhado pela derrota na Guerra dos Seis Dias (junho de 1966). Mas o mito sobreviveu à história, e foi ainda reforçado, em certa medida, pela vitória do Exército egípcio, indissoluvelmente vinculado à figura de Nasser, na fase inicial da Guerra do Yom Kippur contra Israel (outubro de 1973). Israel só conseguiu rechaçar o ataque conjunto dos exércitos da Síria e do Egito graças a uma tremenda mobilização de forças colocada em ação por Washington. É dessa história que deriva o imenso prestígio atual do exército egípcio - o décimo maior do planeta -, como também a recusa de seus generais a disparar contra a multidão, embora o próprio Mubarak tenha sido comandante da Força Aérea (entre 1972 e 1975), antes de assumir a presidência. A fábula do "exército popular", fonte do poder e barganha dos generais, seria destruída por uma ação sangrenta. E também como decorrência dessa história os Estados Unidos concederam ao governo fantoche de Mubarak "subsídios" avaliados em cerca de 2 bilhões de dólares anuais, utilizados para o andamento do exército e obras de infraestrutura. Como se vê, não é só o Estada de Israel que vive do parasitismo na região.
Fica fácil compreender porque as manifestações no Egito, em particular, provocaram alarme nos Estados Unidos, em Israel e na União Europeia, ainda que em sua fase inicial elas não tenham assumido um caráter explicitamente anti-imperialista ou sequer anti-israelense. Mesmo a ditadura chinesa ficou alarmada. Os mandarins travestidos de vermelho bloquearam, nos programas de busca da Internet, qualquer menção às palavras "Egito", "Hosni Mubarak" e outras que remetam à revolta egípcia, a qual evoca na China, inevitavelmente, o massacre da Praça da Paz Celestial, por eles ordenado em 4 de junho de 1989. Em face da catástrofe política, os porta-vozes da Casa Branca não poderiam ser mais patéticos. No escasso intervalo de cinco dias, a secretária de Estado Hillary(ante) Clinton mudou sua caracterização segundo a qual o governo Mubarak era "estável" (25 de janeiro) para outra que pedia o "início imediato" do processo de "transição para a democracia". Barak Obama, impotente e alarmado, foi obrigado a oscilar entre o tímido apoio aos manifestantes, que exigiam "mudanças" (lema de sua própria campanha presidencial) e a condenação de um fiel cão de guarda dos interesses de Washington. Explica-se a patética cautela: se Obama abandona subitamente Mubarak, os demais regimes árabes fantoches de Washington vão se sentir ainda mais frágeis e em pânico, intensificando a instabilidade regional.


PETRÓLEO E GEOPOLÍTICA

A queda de Mubarak sob o impacto de um poderoso movimento de massas é a pior notícia que as grandes potências e Israel poderiam receber, por múltiplas razões. Primeiro, porque o Canal de Suez - eterno símbolo do mito nacional árabe - é essencial para assegurar a estabilidade dos fluxos mundiais de petróleo. Um governo instável, ou com algum traço de coluna vertebral poderia criar "problemas" para o uso do canal, que seriam insuportáveis, no quadro da atual crise, mesmo afastando a hipótese (nada irreal) de seu eventual ainda que momentâneo fechamento. Não por acaso, o preço do barril do petróleo disparou com o início das manifestações no Egito, superando o teto dos cem dólares pela primeira vez desde outubro de 2008 (no auge de uma das fases da crise financeira).
Do ponto de vista geopolítico, a equação fica ainda mais tenebrosa para Casa Branca e aliados. O Egito de Mubarak sempre funcionou como carrasco do povo palestino. Bloqueia a sua fronteira com a Faixa de Gaza com uma ferocidade equiparável ou ainda mais violenta do que a praticada por Israel. Seu alinhamento incondicional a Washington é fonte de pressão sobre governos menos "dóceis" do Oriente Médio, como o sírio, e serve como fator de estabilidade regional (em combinação com os fantoches da Arábia Saudita e Jordânia), além de jogar um peso importante no norte da África. Se isso é uma verdade historicamente genérica, torna-se agudamente dramática no quadro atual de extrema tensão, em que a Turquia ensaia uma aproximação, ainda que moderada, com o mundo árabe e islâmico, em que se acumulam as tensões com o Irã, e em que os Estados Unidos são obrigados a amargar o fiasco no Iraque e no Afeganistão. A Casa Branca não pode perder o controle sobre o Egito, é simples assim. Do ponto de vista de Obama e aliados, essa alternativa não está posta sobre a mesa.
Mas uma coisa é o que desejam os governos e as potências. Outra, bem diferente, é a dinâmica dos processos históricos. A “revolução árabe” está, no momento, muito distante de seu final. A pergunta que paira é: qual será a próxima monarquia ou ditadura que vai sentir o gosto amargo da rebelião?
Basta pensar no que aconteceria com a desestabilização da Arábia Saudita, maior exportador de petróleo do mundo, cuja família real, que adora o fundamentalismo wahabita, acumula fortunas fabulosas, à custa da pobreza de boa parte dos trabalhadores, cuja maioria (cerca de 80%) é formada por mão de obra estrangeira não qualificada. Amigos íntimos da família Bush e frequentadores dos altos círculos financeiros estadunidenses, os reis, príncipes e magnatas sauditas (incluindo os Bin Laden) funcionam como uma espécie de garantia de suprimento de petróleo aos Estados Unidos, onde mantêm investimentos bilionários. Há muitos anos as tensões se acumulam na Arábia Saudita, agravadas pelo fato de que a monarquia cedeu território para funcionar como base estadunidense e britânica para ataques ao Iraque durante as duas guerras do Golfo.
Mesmo a desestabilização súbita da Síria seria uma má notícia para Washington e Israel. Submetida a uma feroz ditadura, em que se pratica o culto à personalidade do presidente Bashar Assad (desde julho de 2000, quando substituiu o seu falecido pai Hafez), a Síria reclama a soberania sobre as Colinas de Golã, anexadas por Israel durante a Guerra dos Seis Dias. Mas, ainda que seja qualificada como parte do "eixo do mal" pelos trogloditas mais à direita dos Estados Unidos e Israel, e acusada de financiar o Hezbolá e o Hamas, a ditadura síria faz o jogo diplomático, evita o confronto direto (como faz, por exemplo, Mahmoud Ahmadinejad), contém a minoria curda (outro fator explosivo em toda a região) e procura soluções "pragmáticas". No atual quadro, é menos pior para a Casa Branca ter um "inimigo" conhecido mas controlável do que esperar uma alternativa que não se sabe bem qual seria.

GRANDE INCÓGNITA

Finalmente, em todos os países da região fermenta uma grande incógnita, que foge completamente aos parâmetros tradicionais da política: o Islã. Mesmo no caso da "Revolução do Jasmim" tunisiana - onde o fundamentalismo parece não ter grande expressão - ou no caso do Egito - onde a Irmandade Muçulmana (berço do fundamentalismo islâmico contemporâneo) parece ter adotado a posição mais de espectadora e multiplica promessas de "moderação" - a força que a religião pode oferecer como um elemento de identidade transnacional não pode ser subestimada. Trata-se de um componente que ninguém controla. Assim como não basta recitar o Corão para, automaticamente, arrastar multidões, tampouco adianta evitar o Islã como forma de manter os movimentos dentro de limites seculares. Numa situação em que o nacionalismo pan-árabe dificilmente voltará a exercer o fascínio que teve à época de Nasser, o Islã pode muito bem apresentar-se como o eixo de unificação das lutas nacionais parciais e fragmentárias, ainda que ninguém proclame desejá-lo.
Essa é, finalmente, a tragédia da atual “revolução árabe”. Durante as últimas décadas, a suposta “identidade árabe” foi artificialmente cimentada e sustentada pela retórica contra o “inimigo comum” – em particular, os Estados Unidos e o estado de Israel. Hoje, quando as ditaduras, monarquias e governos corruptos são forçados a mostrar abertamente seu caráter, e quando se abre historicamente a possibilidade de uma afirmação positiva, na via da construção de uma alternativa popular, identificada aos interesses da juventude e dos trabalhadores, não há organizações capazes de liderar esses movimentos e organizar a resistência aos ataques imperialistas, que serão inevitáveis. Mas há o Islã, cuja contrapartida é a retórica não menos fundamentalista e belicista de Israel e a política da Casa Branca.
Mais uma vez, o heroísmo de jovens, homens e mulheres árabes, que nas ruas realizam a sua revolução, ainda não conseguiu construir uma saída para a tragédia que se anuncia. E talvez nem haja tempo para isso, no horizonte previsível. (“Revolução árabe” anuncia novas tragédias. José Arbex Jr. Caros Amigos. Nº 167)


3. Reviravolta árabe e seus impasses

Renato Pompeu

Para entender a situação no mundo árabe, vale recorrer a especialistas em revolução: o russo Vladimir Lenin, a polonesa Rosa Luxemburg e o ucraniano Lev Trotsky, comunistas atuantes um século atrás. Lenin escreveu: “Para que haja uma revolução, não basta que os de baixo não consigam mais viver como antes, é preciso que os de cima não consigam mais viver como antes”. Rosa Luxemburg escreveu: “A revolução é como uma locomotiva – ou tem impulso desde o início da subida para chegar até o ponto mais alto ou não consegue chegar ao cume, interrompe o curso no meio da subida e tende a recuar”. Para Trotsky, uma situação de crise se torna uma situação realmente de mudança quando ao poder vigente se contrapõe um poder emanado das ruas.
De fato, há indicações no Egito, Tunísia e Iêmen de que os de baixo não podiam mais viver como antes e saíram às ruas para o tudo ou nada. Mas os de cima, ao menos por ora, ainda estão conseguindo viver como antes: a não ser pelo afastamento do líder principal, não parece estar ocorrendo grandes modificações. E também nem sequer se sabe qual é o ponto mais alto que a locomotiva da mudança pode alcançar, ou seja, se ocorrerão apenas mudanças das pessoas no poder (o recuo para trás e para baixo), mudanças no campo das liberdades democráticas e eleitorais (parece o caso do Egito), ou se haverá uma mudança na economia e no emprego, a instalação de regimes antiamericanos e/ou anti-israelenses, um estatismo de esquerda ou de direita ou um regime islâmico.
E mais: fora formas difusas de organização de manifestações por torcidas de futebol, instituições religiosas, sindicatos, redes sociais, grupos da sociedade civil e ONGs, em nenhum caso surgiu um poder paralelo do qual emane um governo provisório. Mudanças são pedidas pelos de baixo, mas as poucas mudanças que ocorrem são controladas pelos de cima. Isso, é claro, pode mudar.(Renato Pompeu é escritor e jornalista. http://www.redebomdia.com.br/Opiniao=S0104-68292007000200013&script=sci_arttext)

4. Seis escritores opinam sobre as revoltas em curso no mundo árabe


Nem todos estão otimistas sobre o futuro das revoluções em curso, mas os seis escritores que se pronunciam a seguir ressaltam em uníssono que o mundo árabe está vivendo acontecimentos históricos no norte da África.

A reportagem é do jornal El País e reproduzida pelo Portal Uol, 11-02-2011.

Boualem Sansal (escritor argelino)

Sou pessimista

De um confim ao outro, o mundo árabe se encontra em um estado de efervescência que chegou a níveis críticos ou os ultrapassou, como na Tunísia e no Egito, onde reina uma situação revolucionária patente.

Essa evolução, que muitos pressentiam, é o resultado da decadência extrema em que se encontram esses países há muito tempo, sob o olhar fascinado, indiferente ou cúmplice dos governos ocidentais. De um lado temos regimes desgastados pela idade, a doença e o vício, mas capazes de uma grande violência, e de outro populações pisoteadas que se debatem na miséria.

Entre os dois, um vazio espantoso que foi ocupado pouco a pouco pelos islâmicos e por organizações mafiosas (ligadas ao poder dos islâmicos) que prometem o paraíso. Os partidos de oposição democrática tolerados proporcionam a fachada democrática das ditaduras, e os rebeldes foram obrigados a exilar-se na Europa.

No que me diz respeito, sou pessimista: sem uma sociedade civil organizada e decidida, sem o apoio ativo dos democratas de todo o mundo, os poderes atuais e os islâmicos vão se aproveitar da ira da população e apoderar-se da aposta. O clã dos ditadores e a internacional islâmica vão se mobilizar para vencer e se impor à população, e dessa vez os islâmicos estarão no primeiro plano. É por isso que devemos absolutamente ganhar esta batalha. O assunto não é somente um assunto árabe, é mundial.

Mahi Binebine (escritor marroquino)

"Hogra"

A palavra "hogra" é intraduzível para as línguas românicas. É um sentimento que conjuga o desprezo e a arrogância do dominador com a impotência temerosa do dominado. Um sentimento ancestral herdado do feudalismo e que o período colonial não fez outra coisa além de reforçar.

Os colonos nos cravaram uma faca nas costas, e ao partir só levaram o punho, substituído em seguida por outro, o das presidências monárquicas, o dos clãs, o das máfias sanguinárias que continuaram chupando com deleite o sangue dos anêmicos sob o olhar cúmplice de um Ocidente que, ao mesmo tempo que cantava o hino da democracia e dos direitos humanos, continuava apoiando por interesse esses regimes que negavam as liberdades elementares.

No passado, a guerra denominada "fria" provocou a miopia complacente; hoje é o fantasma do perigo islâmico que domina e atormenta as boas consciências. "Hogra" é um sentimento que também inclui a sede de justiça. Os regimes de fachada já não podem toldar os olhares fixos sobre a sorte dos palestinos em Gaza e em outros lugares. A população tunisiana, a qual nós, magrebinos presunçosos, qualificamos de covarde e sem personalidade, nos mostrou o caminho. O Egito está prestes a seguir seus passos. E outros inevitavelmente seguirão esse caminho.

Um mundo globalizado não tem só inconvenientes. A rebelião popular da Tunísia já mudou o sentido da história! Quem entre nós teria imaginado ver em tão breve prazo o final do medo e a rejeição radical da injustiça e da humilhação? Porque estou convencido de que, mais que uma revolta socioeconômica, é uma sublevação a favor do respeito e pelo fim da injustiça, é uma aposta na dignidade, no respeito e na liberdade, contra a "hogra".

Habib Selmi (escritor tunisiano)

Revolução da Dignidade

A Revolução dos Jasmins na Tunísia (eu prefiro chamá-la de Revolução da Dignidade) é um acontecimento sem precedentes. Surpreendeu todo mundo, incluindo os políticos da oposição e intelectuais, o que demonstra, se é que havia necessidade de demonstrá-lo, como a elite está afastada da população, sobretudo a dessas regiões distantes como Sidi Bouzid ou Kasserine, de onde partiu essa revolução. O que aconteceu na Tunísia e no Egito, e pode ser que aconteça muito em breve na Argélia, prova que os árabes, ao contrário de tudo o que se diz no Ocidente com uma certeza tingida de certa arrogância, sentem um profundo apego pela liberdade e a democracia.

Na minha opinião, três fatores contribuíram para que a revolução na Tunísia fosse possível. O mais importante é a juventude tunisiana, que desencadeou essa revolução e pagou um alto preço (a grande maioria dos assassinados pela polícia e as milícias armadas do antigo regime são jovens). A Tunísia é o país do Magreb com o índice de alfabetização mais alto. O segundo fator é a existência de uma classe média, em contraste com o que ocorre na maioria dos países árabes. O último fator reside no lugar tão importante - em comparação com os demais países árabes - que a mulher ocupa na Tunísia. Sei que o caminho ainda é longo até que a Tunísia se converta em um verdadeiro país democrático, mas sou bastante otimista, e como não ser, depois de tudo o que esse pequeno país nos demonstrou.

Omar El Keddi (escritor líbio)

Emigrar para o mundo virtual

A grande semelhança das revoltas tunisiana e egípcia confirma que vamos contemplar outras mais nos países árabes, que às vezes terão perfis diferentes, conforme a natureza das populações e a estrutura de seus sistemas políticos.

Os elementos mais importantes para conseguir que qualquer revolta triunfe são os seguintes:

1 - Um número consistente de jovens ativistas nas redes sociais, como Facebook e Twitter, incluindo blogueiros como os que informaram sobre as torturas nas delegacias egípcias.

2 - Suficientes organizações da sociedade civil, porque constituem um requisito para poder negociar com o regime e fazer parte de um novo governo.

3 - Ter certeza de que o exército está senão a favor da população, como na Tunísia, pelo menos não a favor do regime, como no Egito.

Os jovens árabes tinham várias opções:

Emigrar legal ou ilegalmente para o Ocidente.

Emigrar para o Afeganistão, Iraque, Iêmen ou Somália e lutar ali.

Imigrar para a corrupção e pisar na população de seu próprio país.

Emigrar para um mundo virtual. Este último foi exatamente o que fizeram. Ali encontraram um mundo agradável, onde podem criar as coisas que acontecem e as notícias, onde se expressam com liberdade, mesmo que sejam ateus ou homossexuais.

Esse mundo lhes dá a coragem de que necessitam para mudar o mundo real. Como não têm experiência política, não são capazes de transformar sua revolta em uma revolução completa. No entanto, agora descobriram sua força e provavelmente entrarão na política, como os estudantes europeus de 1968.

Com certeza esses jovens transmitirão sua esperança a suas populações, o que quer dizer que não só acabarão com as ditaduras como também com o fundamentalismo islâmico. Entretanto, se lhes roubarem sua revolta haverá uma nova onda de terrorismo no estilo das Brigadas Vermelhas ou do Exército Vermelho alemão.

A democracia agita o mundo árabe, mas teremos de esperar pelo menos 15 anos para vê-las funcionar ativamente, como ocorreu na América Latina.

Na Líbia não existe suficiente sociedade civil, nem partidos políticos e não há Constituição desde 1969. Por outro lado, há suficiente ativismo na Internet e o exército é demasiado frágil para se comparar com as brigadas de segurança do regime. O Estado tem muito dinheiro para resolver qualquer problema e comprar as vontades das tribos. Creio que a menos que trabalhemos para resolver esses problemas veremos muitas revoltas, mas sem resultados positivos.

Gana Nouri (escritor tunisiano)

O terreno está fértil

Em 14 de janeiro, os protestos maciços na Tunísia obrigaram Ben Ali a fugir para a Arábia Saudita. Hoje o país é dirigido por um governo de coalizão e serão realizadas eleições dentro de seis meses. A revolução tunisiana iniciou um processo irreversível de democratização em todo o mundo árabe, exemplificado pelo que está acontecendo no Egito.

Todos os árabes têm tantos desejos de mudança quanto os tunisianos ou os egípcios, mas cada revolução tem seu momento, seu contexto e suas causas específicas. É difícil prever em que outro lugar do mundo árabe haverá uma próxima revolução, mas é fácil afirmar que o terreno está fértil para que ocorra em qualquer lugar e a qualquer momento. Para mim é um motivo de regozijo esse grande passo adiante, esse sentimento de esperança e a possibilidade, depois de décadas de decadência árabe; e esta é a última conquista da revolução tunisiana.

Mas o caminho a seguir ainda é árduo, como demonstra o caso tunisiano. Não serão só as eleições que garantirão a saúde da democracia, senão a prática cotidiana da democracia exercida pelo povo. Mais que nunca, a Tunísia necessitará de toda a assistência e ajuda da comunidade internacional e da ONU para superar o delicado período posterior a essa revolução popular.

Ahmad Jamani (poeta egípcio)

Os jovens querem uma mudança radical

O que está acontecendo hoje no Egito é, na minha opinião, algo totalmente novo; desde a revolta egípcia de 1919 contra a ocupação inglesa não houve qualquer outra revolução popular com a intensidade da atual. Alguns já a chamam de "maio de 68 árabe". Jovens modernos chamados de "os do Facebook", a maioria dos quais carece de filiação política, decidiram começar a revolta em 25 de janeiro, dia nacional da polícia egípcia, o que se transformou em um símbolo contra a violência e a tortura. Decidem e conseguem, levando a centelha tunisiana para um país que tem tanta dificuldade para se mover e de grande importância tanto geopolítica quanto demográfica.

Jovens que sentiram a necessidade de uma mudança radical em todos os níveis. Escutamos um legítimo grito comum de um povo depois de 30 anos de brutal ditadura contra um Estado policial no qual reinava a lei de emergência: "O povo quer derrubar o regime!" Aconteça o que acontecer, a mudança já está aqui.

Instituto Humanitas Unisinos

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