sexta-feira, 10 de abril de 2009

Brasil não é nem vira-lata nem rottweiler


País não depende de afago de Obama ou de quem quer que seja para se sentir importante, mas também não tem a vocação de ferocidade indispensável para comandar a matilha


Manifestantes com máscaras de Obama e de Lula durante protesto na Indonésia contra a reunião do G20, realizada em Londres CLÓVIS ROSSIENVIADO ESPECIAL A LONDRES Se estivesse vivo, Nélson Rodrigues babaria de ódio ao ver que o complexo de vira-lata que ele atribuía aos brasileiros saiu em bloco aos salões depois que o presidente Barack Obama saudou Luiz Inácio Lula da Silva como "my man" e o apontou como o presidente mais popular do mundo. O tratamento dado ao episódio por uma parte da mídia passa a impressão de que Lula só se tornou popular porque Obama disse que Lula é popular -e os microfones da BBC pegaram. Mais fantástica é a ideia de que Obama ungiu, com o gesto, o novo líder global, na figura de Lula. O próprio Lula, na entrevista coletiva que concedeu horas depois do episódio, pôs as coisas no seu devido e correto contexto: 1) Foi uma "brincadeira", brincadeira facilitada pelo fato de que Lula "trata as pessoas muito bem" e vê os presidentes como "companheiros" tanto ou mais do que como presidentes. É fato. Lula é cordial com todos, de direita e de esquerda, ricos e pobres, a ponto de ter conseguido a proeza de ser chamado de "meu amigo" por George Walker Bush e de "my man" por seu antípoda Barack Obama. 2) Essa história de liderança é "uma bobagem teórica", sempre segundo Lula, para quem "todos [os países] querem ser líderes e ninguém passa o bastão para ninguém". Bingo. Contexto explicado diretamente pelo personagem central da história, convém deixar claro que Lula é, sim, uma personalidade mundial, uma espécie de pop star, antes e acima de tudo por sua história de vida. De alguma forma, é até melhor que a de Obama, cuja eleição causou tanta excitação no planeta. Afinal, Obama tem diploma universitário -e de universidade de grife-, exigência não escrita para ser presidente em qualquer lugar do mundo. Lula não tem, mas seu governo não passa vergonha diante dos doutores que o antecederam (aliás, escrevi algo parecido muito antes de Lula se eleger ou de ter chances reais de ganhar). O prestígio de Lula se deve também a ter se convertido ao credo hegemônico no planeta. Só é aceito nos salões do homem branco e de olhos azuis porque assina textos como o do G20 que diz: "A única base segura para uma globalização sustentável e crescente prosperidade para todos é uma economia aberta baseada em princípios de mercado, regulação efetiva e instituições globais fortes". O venezuelano Hugo Chávez não assinaria algo parecido. Não é convidado para os salões que Lula frequenta, mas Lula é convidado para os salões que Chávez frequenta porque não tem preconceitos ideológicos. Nem cria caso. Popularidade e aceitação não se confundem, no entanto, com liderança. Para ficar apenas no âmbito do G20, o próprio Lula disse que, em seu discurso aos "companheiros" presidentes, apenas pedira que os países ricos resolvessem a sua crise. Não ofereceu, portanto, nenhuma luz, não abriu caminhos que os outros devessem seguir, como fazem os líderes. Mesmo o Barack Obama que o tratou como "my man", no exercício de humildade que foi a sua entrevista coletiva após a cúpula do G20, não citou o Brasil entre as potências que estão surgindo ou se consolidando. Mas citou a Europa, a China e a Índia. Nem é culpa de Lula, no caso. É culpa do país que ele representa, ainda pobre, além de profundamente desigual. O Brasil é o quinto mais pobre do G20, à frente apenas de China, Índia, Indonésia e África do Sul. Não quer dizer, no entanto, que o papel do Brasil seja irrelevante ou secundário. Ao contrário, foi ativíssimo, ainda mais pela coincidência de ter sido o presidente de turno do G20 até o ano passado. Por isso, os grupos de trabalho criados após a cúpula de Washington para preparar a de Londres foram comandados pela "troika": os co-presidentes eram um brasileiro, um sul-coreano, que terá a presidência no ano que vem, e um britânico, que preside o conglomerado em 2009. Posições brasileirasDe modo geral, aliás, as posições brasileiras acabaram contempladas no texto final: mais regulação/supervisão, enfrentamento dos paraísos fiscais, mais recursos para o FMI -todas essas eram posições brasileiras. Mas foram também empurradas por grandes potências (França e Alemanha, em especial, no caso da regulação e dos paraísos fiscais). Nem entre os Brics (Brasil, Rússia, Índia e China, as potências mundiais até 2050, segundo uma empresa de investimentos) o Brasil consegue impor posições. Na véspera da reunião de ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais do G20, há três semanas, o ministro Guido Mantega defendeu, em encontro dos Brics, que o grupo deveria apoiar a estatização dos bancos. A tese foi derrotada e não apareceu nem no documento dos Brics nem nos textos finais dos ministros nem dos chefes de governo. Tudo somado, fica claro que o Brasil não é mais vira-lata e, portanto, não depende de um afago de Obama ou de quem quer que seja para se sentir importante, mas também não é um rottweiler -nem tem a vocação de ferocidade indispensável para comandar a matilha.



CLÓVIS ROSSI , colunista da Folha , cobre viagens presidenciais ao exterior desde que o general Ernesto Geisel visitou França e Inglaterra em 1976, há 33 anos, portanto.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0404200921.htm

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