sexta-feira, 10 de abril de 2009

JOÃO PEREIRA COUTINHOO


ABC da Aids
O problema da visão do Vaticano é imaginar que o mundo é composto por anjos, e não por homens



TENHO UMA amiga que não gosta do atual papa. Razões? Ela responde: "Acho que ele é demasiado católico". A primeira vez que ouvi a tese, chorei de rir. Mas chorei com respeito. A tese expressa, com rigor e humor, o espírito do tempo sempre que o papa resolve ser papa. Mas, antes, vamos ao essencial: se eu fizesse uma viagem pela África, onde existem 22 milhões de infectados com o vírus da Aids (no mínimo), não teria dúvidas em aconselhar o uso da camisinha. Mais: hipocondríaco como sou, o mais natural era aconselhar o uso de várias camisinhas ao mesmo tempo, e ainda de uma roupa de mergulho, e de um escafandro, e de uma rede de apicultor. Eu nunca facilito. Acontece que, ao contrário do que possam imaginar, eu não sou o papa. E o papa, a caminho do continente negro, limitou-se a repetir o que toda a gente sabe mas finge que não ouve: que a Igreja Católica, com total legitimidade, tem uma particular doutrina sobre a sexualidade humana, onde a abstinência (antes do casamento) e a fidelidade (depois do casamento) constituem-se como valores centrais. Centrais e absolutamente lógicos. Não é preciso ser católico para comprovar a eficácia do método. Basta usar a cabeça, caso exista uma: se os seres humanos fossem capazes de trilhar a visão de perfeição proposta pelo papa, a possibilidade de contágio seria nula, ou quase. Acusar o papa de espalhar a Aids na África não é apenas insulto grosseiro; é irracionalismo grosseiro. Se as pessoas seguissem a doutrina da Igreja em matéria sexual, não haveria Aids no mundo. Só que os seres humanos, ao contrário do que pensa Ratzinger, não são perfeitos em suas condutas privadas. E o problema da visão do Vaticano sobre a sexualidade humana é imaginar que o mundo é composto por anjos, e não por homens. Uma lamentável falácia. Isso significa que o papa está absolutamente errado quando defende na África a doutrina católica em matéria sexual? Os profissionais da indignação, que espumaram ódio nos últimos dias, não têm dúvidas: o papa é um genocida/criminoso/irresponsável (riscar o que não interessa) ao "proibir" o preservativo na África. Infelizmente, os profissionais da indignação deveriam saber que o papa não proíbe, no sentido policial do termo, coisa nenhuma: ele fala para quem o ouve; e quem o ouve decide o que fazer com inteira liberdade pessoal. Além disso, os profissionais da indignação deveriam suspender os seus próprios dogmas e, olhando para a África, aprender alguma coisa. Sobretudo com os casos de maior sucesso no combate à Aids: em Uganda, na Etiópia, no Malawi, mesmo no Quênia. Fato: os casos de sucesso mostram que o uso de preservativo teve um papel fundamental na diminuição da epidemia. Mas esses casos de sucesso mostram também que a luta contra a Aids não se limitou ao uso alargado do preservativo. Como relembra qualquer especialista no assunto, vencer o flagelo no continente pressupõe um respeito e uma promoção do conhecido "ABC" da Aids na África: "A" de "abstinence" (abstinência); "B" de "be faithful" (fidelidade); e, finalmente, "C" de "condoms" (preservativos). Por outras palavras: sem a redução do número de parceiros; sem uma maior fidelidade dentro do matrimônio; mas também sem uma responsável educação sexual entre os mais jovens, o simples uso do preservativo não resolve a mortandade. Pelo contrário: os países africanos que acreditaram no preservativo como resposta única e milagrosa para o problema da Aids (é o caso trágico de Botsuana), viram aumentar o número de infectados. Paradoxal? Nem por isso: numa cultura, como a africana, que simplesmente não usa os preservativos disponíveis; ou então usa-os mal; ou, pior, usa de forma irregular, acreditando numa espécie de "compensação de risco" (palavras da ONU) que permite multiplicar o número de parceiros pelo uso intermitente de proteção, o preservativo cria uma ilusão de segurança que não é compensada por uma alteração responsável dos comportamentos. O papa está errado quando exclui o preservativo de qualquer estratégia de combate à Aids. O papa erra, no fundo, quando apaga a letra "C" do abecedário básico da luta contra a epidemia. Mas o papa não erra quando fala das letras "A" e "B". Tudo ao contrário dos profissionais da praxe, que sobre a matéria só conhecem a letra "I". De "indignação", sim. Mas, sobretudo, de "ignorância". jpcoutinho@folha.com.br

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