quarta-feira, 18 de abril de 2012

TEMA: MITIFICAÇÃO x MISTIFICAÇÃO

O mito é o homem simplificado - contra isso nada se tem a objetar. Porém a mitificação do homem não tem necessariamente que ser mistificadora - pois contra isso muito se deve objetar. Em nada nos aborrece o mito de Espartacus, embora saibamos que talvez não tenha sido tão enorme sua valentia. Nada nos aborrece em Caio Graco e sua Reforma Agrária. Porém o mito de Tiradentes nos perturba. Por quê?
O processo mitíficador consiste em magnificar a essência do fato ocorrido e do comportamento do homem mitificado. O mito de Caio Graco é muito mais revolucionário do que deve ter sido o homem Caio Graco, porém é verdade que o homem distribuiu terras aos camponeses e foi por isso morto pelos senhores da terra. A diferença entre o homem e o mito é, aqui, apenas de quantidade, pois a essência do comportamento e dos fatos é a mesma: magnificam-se os dados essenciais e eliminam-se os circunstanciais. Seus cozinheiros, seus vizinhos e seus amores, por exemplo, não integram o mito, embora possam ter integrado o homem. Para a instituição do mito Caio Graco é irrelevante saber se o romano tinha amantes ou se gostava delas, como para a instituição do mito Tiradentes é igualmente irrelevante acrescentar-lhe sua filha ilegítima e sua concubina, embora para Joaquim José pudessem ser as duas relevantíssimas - o que em nenhum momento duvidamos.
Se a mistificação de Tiradentes tivesse consistido exclusivamente na eliminação de fatos inessenciais, nenhum mal haveria. Porém as classes dominantes têm por hábito a "adaptação" dos heróis das outras classes. A mitificação, nestes casos, é sempre mistificadora. É sempre o mesmo processo: eliminar ou esbater, como se fosse apenas circunstância, o fato essencial, promovendo, por outro lado, características circunstanciais à condição de essência. Assim foi com Tiradentes. Nele, a importância maior dos atos que praticou reside no seu conteúdo revolucionário. Episodicamente, foi ele também um estóico. Tiradentes foi revolucionário no seu momento como o seria em, outros, inclusive no nosso. Pretendia, ainda que romanticamente, a derrubada de um regime de opressão e desejava substituí-lo por outro, mais capaz de promover a felicidade do seu povo. Isso ele pretendeu em nosso país, como certamente teria pretendido em qualquer outro. No entanto, esse comportamento essencial ao herói é esbatido e, em seu lugar, prioritariamente, surge o sofrimento na forca, a aceitação da culpa, a singeleza com que beijava o crucifixo na caminhada pelas ruas com baraço e pregação.
Hoje, costuma-se pensar em Tiradentes como o mártir da Independência, e esquece-se de pensá-lo como o herói revolucionário, transformador de sua realidade. O mito está mistificado. Não é o mito que deve ser destruído, é a mistificação. Não é o herói que deve ser empequenecido; é a sua luta que deve ser magnificada. (Augusto Boal)

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