A alienação social
Marx era filósofo,
advogado e historiador, e interessou-se por um estudo feito por um outro
filósofo, Feuerbach. Este investigara o modo como se formam as religiões, isto
é, o modo como os seres humanos sentem necessidade de oferecer uma explicação
para a origem e a finalidade do mundo.
Ao buscar essa
explicação, os humanos projetam fora de si um ser superior dotado das
qualidades que julgam as melhores: inteligência, vontade livre, bondade,
justiça, beleza, mas as fazem existir nesse ser superior como superlativas,
isto é, ele é onisciente e onipotente, sabe tudo, faz tudo, pode tudo.
Pouco a pouco, os
humanos se esquecem de que foram os criadores desse ser e passam a acreditar no
inverso, ou seja, que esse ser foi quem os criou e os governa. Passam a
adorá-lo, prestar-lhe culto, temê-lo. Não se reconhecem nesse Outro que
criaram. Em latim, “outro” se diz: alienus. Os homens se alienam e Feuerbach
designou esse fato com o nome de alienação.
A alienação é o
fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência
a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma, deixam-se
governar por ela como se ela tivesse poder em si e por si mesma, não se
reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um ser-outro, separado dos homens,
superior a eles e com poder sobre eles.
Marx não se
interessou apenas pela alienação religiosa, mas investigou sobretudo a
alienação social. Interessou-se em compreender as causas pelas quais os homens
ignoram que são os criadores da sociedade, da política, da cultura e agentes da
História. Interessou-se em compreender por que os humanos acreditam que a
sociedade não foi instituída por eles, mas por vontade e obra dos deuses, da
Natureza, da Razão, em vez de perceberem que são eles próprios que, em
condições históricas determinadas, criam as instituições sociais – família, relações
de produção e de trabalho, relações de troca, linguagem oral, linguagem escrita,
escola, religião, artes, ciências, filosofia – e as instituições políticas –
leis, direitos, deveres, tribunais, Estado, exército, impostos, prisões. A ação
sociopolítica e histórica chama-se práxis e o desconhecimento de suas origens e
de suas causas, alienação.
Por que os seres
humanos não se reconhecem como sujeitos sociais, políticos, históricos, como
agentes e criadores da realidade na qual vivem? Por que, além de não se
perceberem como sujeitos e agentes, os humanos se submetem às condições
sociais, políticas, culturais, como se elas tivessem vida própria, poder próprio,
vontade própria e os governassem, em lugar de serem controladas e governadas
por eles? Por que existe a alienação social? Por que os homens se deixam
dominar pela sua própria obra ou criação histórica? Por que filósofos, teólogos,
cientistas (portanto, o sujeito do conhecimento) elaboram teorias que reforçam
a alienação? Por que filósofos dizem que a sociedade é produzida pela Natureza?
Por que teólogos dizem que a família e o Estado existem por vontade de Deus?
Por que os cientistas afirmam que a sociedade é racional e criada pela Razão
Universal?
Para compreender o
fenômeno da alienação, Marx estudou o modo como as sociedades são produzidas
historicamente pela práxis dos seres humanos.
Verificou que, historicamente, uma sociedade (pequena, grande,
tribal, imperial, não importa) sempre começa por uma divisão e que essa divisão
organiza todasas relações sociais que serão instituídas a seguir. Trata-se da
divisão social do trabalho. Na luta pela sobrevivência, os seres humanos se
agrupam para explorar os recursos da Natureza e dividem as tarefas: tarefas dos
homens adultos, tarefas das mulheres adultas, tarefas dos homens jovens,
tarefas das mulheres jovens, tarefas das crianças e dos idosos. A partir dessa
divisão, organizam a primeira instituição social: a família, na qual o homem
adulto, na qualidade de pai, torna-se chefe e domina a mulher adulta, sua
esposa e mãe de seus filhos, os quais também são dominados pelo pai.
As famílias
trabalham e trocam entre si os produtos do trabalho. Surge uma segunda
instituição social: a troca, isto é, o comércio. Algumas famílias conquistam
terras melhores do que outras e conseguem colheitas ou gado em maior quantidade
que outras, trocando seus produtos por uma quantidade maior que a de outras.
Ficam mais ricas. As muito pobres, não tendo conseguido produzir nada ou muito
pouco, vêem-se obrigadas a trabalhar para as mais ricas em troca de produtos
para a sobrevivência. Começa a surgir uma terceira instituição social: o
trabalho servil, que desembocará na escravidão.
Os mais ricos e
poderosos reúnem-se e decidem controlar o conjunto de famílias, distribuindo
entre si os poderes e excluindo algumas famílias de todo poder.
Começa a surgir
uma quarta instituição social: o poder político, de onde virá o
Estado.
Nessa altura, os
seres humanos já começaram a explicar a origem e a finalidade do mundo, já
elaboraram mitos e ritos. As famílias ricas e poderosas dão a alguns de seus
membros autoridade exclusiva para narrar mitos e celebrar ritos. Criam uma
outra instituição social: a religião, dominada por sacerdotes saídos das famílias
poderosas e que, por terem a autoridade para se relacionar com o sagrado,
tornam-se temidos e venerados pelo restante da sociedade. São um novo poder
social.
Os vários grupos de famílias dirigentes disputam entre si terras,
animais e servos e dão início a uma nova instituição social: a guerra, com a
qual os vencidos se tornam escravos dos vencedores, e o poder econômico,
social, militar, religioso e político se concentra ainda mais em poucas mãos.
Como escreveu Maquiavel, toda sociedade é constituída pela divisão entre o
desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido
nem comandado.
Com essa descrição, Marx observou que a sociedade nasce pela
estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão
social do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas,
divisão social do poder econômico, divisão social do poder militar, divisão
social do poder religioso e divisão social do poder político. Por que divisão?
Porque em todas as instituições sociais (família, trabalho, comércio, guerra,
religião, política) uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, ideias e
saberes, terras, trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não possui
nada disso, estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída.
Esse conjunto
estruturado de divisões torna-se cada vez mais complexo, intrincado, numeroso,
multiplicando-se em muitas outras divisões, sob a forma de numerosas
instituições sociais e acabam por revelar a estrutura fundamental das
sociedades como divisão social das classes sociais. A esse conjunto (tanto simples
quanto complexo) de instituições nascidas da divisão social Marx deu o nome de
condições materiais da vida social e política. Por que materiais?
Porque se referem
ao conjunto de práticas sociais pelas quais os homens garantem sua sobrevivência
por meio do trabalho e da troca dos produtos do trabalho, e que constituem a
economia.
A variação das condições materiais de uma sociedade constitui a
História dessa sociedade e Marx as designou como modos de produção. A História
é a mudança, passagem ou transformação de um modo de produção para outro. Tal mudança
não se realiza por acaso nem por vontade livre dos seres humanos, mas acontece
de acordo com condições econômicas, sociais e culturais já estabelecidas, que
podem ser alteradas de uma maneira também determinada, graças à práxis humana
diante de tais condições dadas.
O fato de que a
mudança de uma sociedade ou a mudança histórica se faça em condições
determinadas, levou Marx a afirmar que: “Os homens fazem a História, mas o
fazem em condições determinadas”, isto é, que não foram escolhidas por eles.
Por isso também, ele disse: “Os homens fazem a História, mas não sabem que a
fazem”.
Estamos, aqui, diante de uma situação coletiva muito parecida com
a que encontramos no caso de nossa vida psíquica individual. Assim como
julgamos que nossa consciência sabe tudo, pode tudo, faz o que pensa e quer,
mas, na realidade, está determinada pelo inconsciente e ignora tal
determinação, assim também, na existência social, os seres humanos julgam que
sabem o que é a sociedade, dizendo que Deus ou a Natureza ou a Razão a criaram,
instituíram a política e a História, e que os homens são seus instrumentos; ou,
então, acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam porque são
indivíduos livres, autônomos e com poder para mudar o curso das coisas como e
quando quiserem.
Por exemplo, quando alguém diz que uma pessoa é pobre porque quer,
porque é preguiçosa, ou perdulária, ou ignorante, está imaginando que somos o
que somos somente por nossa vontade, como se a organização e a estrutura da
sociedade, da economia, da política não tivesse qualquer peso sobre nossas
vidas. A mesma coisa acontece quando alguém diz ser pobre “pela vontade de
Deus” e não por causa das condições concretas em que vive. Ou quando faz uma
afirmação racista, segundo a qual “a Natureza fez alguns superiores e outros
inferiores”.
A alienação social
é o desconhecimento das condições histórico-sociais concretas em que vivemos,
produzidas pela ação humana também sob o peso de outras condições históricas
anteriores e determinadas. Há uma dupla alienação: por um lado, os homens não
se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas instituições, mas,
por outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se indivíduos plenamente livres, capazes
de mudar suas vidas individuais como e quando quiserem, apesar das instituições
sociais e das condições históricas. No primeiro caso, não percebem que
instituem a sociedade; no segundo caso, ignoram que a sociedade instituída
determina seus pensamentos e ações.
As três formas da alienação
social
Podemos falar em
três grandes formas de alienação existentes nas sociedades modernas ou
capitalistas:
1. A alienação
social, na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições
sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou aceitam passivamente tudo o
que existe, por ser tido como natural, divino ou racional, ou se rebelam
individualmente, julgando que, por sua própria vontade e inteligência, podem
mais do que a realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o
outro (alienus), algo externo a nós, separado de nós, diferente de nós e com poder
total ou nenhum poder sobre nós.
2. A alienação
econômica, na qual os produtores não se reconhecem como produtores, nem se
reconhecem nos objetos produzidos por seu trabalho. Em nossas sociedades
modernas, a alienação econômica é dupla:
Em primeiro lugar, os trabalhadores, como classe social, vendem
sua força de trabalho aos proprietários do capital (donos das terras, das
indústrias, do comércio, dos bancos, das escolas, dos hospitais, das frotas de
automóveis, de ônibus ou de aviões, etc.). Vendendo sua força de trabalho no
mercado da compra e venda de trabalho, os trabalhadores são mercadorias e, como
toda mercadoria, recebem um preço, isto é, o salário. Entretanto, os
trabalhadores não percebem que foram reduzidos à condição de coisas que
produzem coisas; não percebem que foram desumanizados e coisificados.
Em segundo lugar,
os trabalhos produzem alimentos (pelo cultivo da terra e dos animais), objetos
de consumo (pela indústria), instrumentos para a produção de outros trabalhos
(máquinas), condições para a realização de outros trabalhos (transporte de
matérias-primas, de produtos e de trabalhadores). A mercadoria trabalhador
produz mercadorias. Estas, ao deixarem as fazendas, as usinas, as fábricas, os
escritórios e entrarem nas lojas, nas feiras, nos supermercados, nos shoppings
centers parecem ali estar porque lá foram colocadas (não pensamos no trabalho
humano que nelas está cristalizado e não pensamos no trabalho humano realizado
para que chegassem até nós) e, como o trabalhador, elas também recebem um
preço.
O trabalhador olha
os preços e sabe que não poderá adquirir quase nada do que está exposto no
comércio, mas não lhe passa pela cabeça que foi ele, não enquanto indivíduo e
sim como classe social, quem produziu tudo aquilo com seu trabalho e que não
pode ter os produtos porque o preço deles é muito mais alto do que o preço
dele, trabalhador, isto é, o seu salário.
Apesar disso, o
trabalhador pode, cheio de orgulho, mostrar aos outros as coisas que ele
fabrica, ou, se comerciário, que ele vende, aceitando não possuí-las, como se
isso fosse muito justo e natural. As mercadorias deixam de ser percebidas como
produtos do trabalho e passam a ser vistas como bens em si e por si mesmas
(como a propaganda as mostra e oferece).
Na primeira forma de alienação econômica, o trabalhador está
separado de seu trabalho – este é alguma coisa que tem um preço; é um outro
(alienus), que não o trabalhador. Na segunda forma da alienação econômica, as
mercadorias não permitem que o trabalhador se reconheça nelas. Estão separadas
dele, são exteriores a ele e podem mais do que ele. As mercadorias são
igualmente um outro, que não o trabalhador.
3. A alienação intelectual, resultante da separação social entre
trabalho material (que produz mercadorias) e trabalho intelectual (que produz ideias).
A divisão social entre as duas modalidades de trabalho leva a crer que o
trabalho material é uma tarefa que não exige conhecimentos, mas apenas
habilidades manuais, enquanto o trabalho intelectual é responsável exclusivo
pelos conhecimentos.
Vivendo numa
sociedade alienada, os intelectuais também se alienam. Sua alienação é tripla:
Primeiro, esquecem ou ignoram que suas ideias estão ligadas às
opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem, isto é, a classe
dominante, e imaginam, ao contrário, que são ideias universais, válidas para
todos, em todos os tempos e lugares.
Segundo, esquecem
ou ignoram que as ideias são produzidas por eles para explicar a realidade e
passam a crer que elas se encontram gravadas na própria realidade e que eles
apenas as descobrem e descrevem sob a forma de teorias gerais.
Terceiro, esquecem ou ignoram a origem social das ideias e seu
próprio trabalho para criá-las; acreditam que as ideias existem em si e por si
mesmas, criam a realidade e a controlam, dirigem ou dominam. Pouco a pouco,
passam a acreditar que as ideias se produzem umas às outras, são causas e
efeitos umas das outras e que somos apenas receptáculos delas ou instrumentos
delas. As ideias se tornam separadas de seus autores, externas a eles,
transcendentes a eles: tornam-se um outro.
As três grandes
formas da alienação (social, econômica e intelectual) são a causa do
surgimento, da implantação e do fortalecimento da ideologia.
In: Convite à
Filosofia, Marilena Chaui
http://bahiapsicosocial.com.ar/biblioteca/Convite%20%20Filosofia%20-%20Marilena%20Chaui.pdf
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