quarta-feira, 21 de julho de 2010

"A FITA BRANCA"





quinta-feira, 11 de março de 2010

entrevista com Haneke


A FITA BRANCA É REFLEXO DE TODOS OS EXTREMISMOS*



Esbanjando vitórias com “A fita branca” (“Das weisse Band — Eine deutsche Kindergeschichte”), Michael Haneke nunca sorriu tanto. Aos 67 anos, o cineasta de nacionalidade austríaca, nascido em Munique, na Alemanha, parece imbatível na briga pelo Oscar de filme estrangeiro, fortalecido pelos aplausos da crítica e por 13 prêmios conquistados mundialmente. Inclua entre eles a Palma de Ouro no Festival de Cannes e o Globo de Ouro. O sucesso quebrou a notória sisudez do diretor, respeitado por “Funny games — Violência gratuita” (1997), “A professora de piano” (2001) e “Caché” (2005). Até Hollywood se curvou diante de seu novo longa-metragem, filmado em Leipzig e em Lübeck, ao custo de 12 milhões. Nele, Haneke revive episódios reais ocorridos em solo alemão, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, nos quais crianças e adolescentes cometem atos de violência, plantando a semente do que viria a se chamar nazismo.



Podemos assumir que os meninos e meninas de “A fita branca” encarnaram o sentimento de opressão que deu origem à filosofia nazista?


MICHAEL HANEKE: Busquei revelar as raízes do mal de maneira generalista. Tentei mostrar que a adesão de uma pessoa a uma ideologia pode ser consequência de um mal-estar particular. Podemos transpor o que é mostrado em “A fita branca” para qualquer outro contexto, seja político, tanto de direita quanto de esquerda, ou seja religioso. Os mecanismos são sempre os mesmos. Uma vez que uma pessoa constrói para si um princípio absoluto, ela, pouco a pouco, perde a sua humanidade, encaminhando-se para a prática do terror.

É por isso que, desde Cannes, seu filme vem sendo visto como uma alegoria sobre o fundamentalismo associado aos ataques de 11 de setembro de 2001 contra Nova York e mesmo à guerra do Iraque?

HANEKE: Tenho a sensação de que esse ambiente de princípios absolutos de que eu falava pode ser aplicado a uma sociedade muçulmana fundamentalista que produz terroristas e homens-bomba. Eu observo nelas os mesmos processos que norteiam os meninos do filme: humilhação, ideologias baseadas na noção de que a obediência pode extinguir os sofrimentos. “A fita branca” é um reflexo de todos os extremismos, sejam eles de direita ou de esquerda.

Qual seria a justificativa estética para o uso do preto e branco no filme?

HANEKE: Uma das invenções da fotografia é a constatação de que o preto e branco torna mais fácil e ágil o acesso ao passado, uma vez que ele cria uma fratura na observação do real. O preto e branco rompe com o realismo e isso é essencial para um filme que não se pretende naturalista.

Como o senhor orientou as pesquisas históricas dos eventos ocorridos no interior da Alemanha em 1913, representados no filme como delitos cometidos por crianças, entre elas os filhos de um pastor?

HANEKE: A Alemanha que encontramos às vésperas de 1914 não me parece ser um paraíso perdido, que viria a ser maculado pelo nazismo. A barbárie e a perda da humanidade já faziam parte daquele mundo. Mas o ano de 1913, especificamente, marca a primeira grande ruptura cultural no país (poucas décadas após a Unificação Alemã, onde diferentes estados germânicos se juntaram numa só nação, sob a égide do estadista prussiano Otto von Bismarck). Por isso, eu precisava resgatar aquele período. Ele era essencial para a motivação: flagrar a gênese do mal. Naquela época, um antigo regime, guiado por Deus e por práticas autoritárias, ainda funcionava. Mas começavam a voar os primeiros estilhaços dessa estrutura política.

Sobram estilhaços inclusive para o vilarejo rural onde se passa o filme, narrado por um professor interpretado pelo estreante Christian Friedel?

HANEKE: A pequena vila de “A fita branca” entra na tela como um modelo para a estrutura social da Alemanha de 1913, com todas as suas hierarquias. Tudo transcorre às escondidas, por trás das portas. O padrão intelectual daquela população não é dos mais elevados, mas ela experimenta uma perturbação inexplicável. Numa sequência decisiva do filme, seu narrador diz: “Tudo vai mudar”. Ali, ele exprime um desejo consciente de seus conterrâneos e das pessoas em geral. Ele não tem certeza do que vai mudar, nem do que precisa ser mudado, mas ele almeja uma transformação. Ele também não percebe que uma mudança sem orientação pode ser perigosa. Esse desejo é um reflexo do sofrimento. O sofrimento e a humilhação preparam o terreno para a perversão de ideias. E uma ideia pervertida se transforma em ideologia. E uma ideologia se justifica com um bode expiatório que possa ser imolado em seu nome.

No dia 27 de fevereiro, “A fita branca” pode ganhar o prêmio da American Society of Cinematographers, que reúne os fotógrafos de Hollywood. Nos EUA, as associações de críticos de Nova York e de Los Angeles, duas das mais influentes da imprensa cinematográfica, elegeram as imagens clicadas por Christian Berger, para o filme, como as mais bonitas do ano. Ele fotografa seus filmes desde “Benny’s video” (1992). Como o senhor avalia a contribuição de Berger para o longa?

HANEKE: Na concepção visual de “A fita branca”, Christian e eu trabalhamos muito sobre a noção de contrastes de cor, buscando as especificidades do preto e do branco isoladamente. Costumo dar muito trabalho aos fotógrafos, inventando o máximo que posso no set, não apenas nos enquadramentos da câmera, mas também na iluminação. Já tenho suficiente experiência no cinema para saber se uma lâmpada vai produzir o efeito que eu pretendo alcançar ou não. Quando Christian comemorou seu 60 aniversário, ele conseguiu publicar como livro os diários de filmagens de “A professora de piano” e de “Caché”. Ele reclamava muito de mim nesses dois trabalhos, mas temos uma afinação muito boa. Ninguém fotografa cinco filmes de um diretor se não se der bem com ele.

* Entrevista para o jornal O Globo.



http://lisandronogueira.blogspot.com/2010/03/entrevista-com-haneke.html



Mauricio Stycer - iG, o mundo é de quem faz24/10/2009 - 12:52

As raízes do mal: Haneke explica “A Fita Branca”


O austríaco Michael Haneke é um dos mais importantes cineastas em atividade. Seus filmes costumam provocar perplexidade e mal-estar, por abordarem a violência, física ou psicológica, inclusive contra crianças, de forma muito direta, sem rodeios. Seus filmes mais famosos são “A Professora de Piano”, com Isabelle Hupert, e “Caché”, com Juliette Binoche, ambos exibidos no circuito comercial brasileiro. Também dirigiu “Violência Gratuita” e “Código Desconhecido”.

Com o assustador, mas imperdível, “A Fita Branca”, que venceu o Festival de Cannes este ano, Haneke volta a provocar incômodo. Filmado em preto-e-branco, conta a história de uma comunidade rural na Alemanha, entre 1913 e 1914, onde estranhos e violentos incidentes começam a ocorrer.

Somos apresentados a um conjunto de personagens fortes: o barão dono das terras e seus empregados submissos, o médico autoritário, a parteira e seu filho com problemas mentais, o pastor protestante rigoroso, o professor tímido, um enxame de crianças reprimidas e entediadas.

Impossível não sair do cinema pensando que Haneke procurou, com “A Fita Branca”, explicar as origens das raízes culturais da geração que abraçou o nazismo, 20 anos depois dos fatos que narra no filme. Mas essa é uma leitura rasa, diz o próprio cineasta, numa excelente entrevista a Anthony Lane, na revista “New Yorker” (5 de outubro de 2009, infelizmente não disponível online).

Transcrevo a seguir, numa tradução livre, a longa resposta que Haneke dá à tentativa de rotular seu filme como uma parábola sobre o nazismo:

“Não ficaria feliz se esse filme fosse visto como um filme sobre um problema alemão, sobre o nazismo. Este é um exemplo, mas significa mais que isso. É um filme sobre as raízes do mal. É sobre um grupo de crianças, que são doutrinadas com alguns ideais e se tornam juízes dos outros – justamente daqueles que empurraram aquela ideologia goela abaixo deles. Se você constrói uma idéia de uma forma absoluta, ela vira uma ideologia. E isso ajuda àqueles que não têm possibilidade alguma de se defender de seguir essa ideologia como uma forma de escapar da própria miséria. E este não é um problema só do fascismo da direita. Também vale para o fascismo da esquerda e para o fascismo religioso. Você poderia fazer o mesmo filme – de uma forma totalmente diferente, é claro – sobre os islâmicos de hoje. Sempre há alguém em uma situação de grande aflição que vê a oportunidade, através da ideologia, para se vingar, se livrar do sofrimento e consertar a vida. Em nome de uma idéia bonita você pode virar um assassino.”

Este é Michael Haneke.


http://colunistas.ig.com.br/mauriciostycer/2009/10/24/as-raizes-do-mal-haneke-explica-%E2%80%9Ca-fita-branca%E2%80%9D/



Crítica do filme “A Fita Branca”, de Michael Haneke (2009)

Postado por Bruno Leal em 19 outubro 2009 às 14:30

.A Incompreensão Requentada

Novo filme do diretor Michael Haneke marca por sua exuberante fotografia em preto e branco, mas argumento sobre questão histórica é ulrapassado


Por Bruno Leal

O novo filme do diretor austríaco Michael Haneke foi uma das sessões mais disputadas da última edição do Festival de Cinema do Rio de Janeiro. E o lugar na platéia justifica-se, a começar pela ousadia do projeto: “Das weiβe Band” (“A Fita Branca”) tenta explicar a origem histórica do nazismo e do holocausto. Para isso, Haneke volta a um discreto vilarejo na Alemanha às vésperas da Primeira Guerra Mundial, cuja paz rotineira é perturbada por uma série de crimes misteriosos. A cena de abertura coincide com o primeiro desses crimes. O médico do vilarejo está voltando para casa, montado em seu cavalo, quando um arame esticado entre duas cercas o derruba. Semanas depois, acontecem novos crimes: um celeiro inteiro é incendiado e o filho do barão local é seqüestrado e torturado. Em pouco tempo, o medo a desconfiança se apoderam do lugar.

O que Haneke oferece ao espectador é uma verdadeira anatomia moral e psicológica dos moradores do vilarejo alemão. Em "A Fita Branca", o diretor consegue um efeito parecido com outro filme seu, "Caché" (2005): enquanto o público se preocupa em desvendar os crimes, o filme passa por um deslocamento, indo do espaço público para o espaço privado, sempre com muita sensibilidade. Dentro das quatro paredes de diferentes famílias, tomamos conhecimento de uma estrutura patriarcal altamente autoritária, marcada pelo signo da punição e da disciplina. Em uma cena, por exemplo, vamos um pai bolinar a própria filha durante a madrugada. Enquanto isso, outro pai, o pastor da cidade, amarra as mãos do filho adolescente na cama para impedir que ele se masturbe (um pecado mortal). Por isso, não surpreende que o professor do vilarejo chegue à bizarra conclusão de que são aquelas crianças, em sua maioria submetida a uma educação fortemente repressora, as responsáveis pelos misteriosos crimes.

A tese de Haneke é que esta estrutura autoritária da sociedade alemã, sobretudo a patriarcal, gerou fortes sentimentos de indiferença, crueldade e desprezo entre a geração de jovens do início do século XX, a mesma geração que anos mais tarde abraçaria a causa do nazismo, tendo em Hitler muito mais do que um governante, mas um verdadeiro pai (sabemos, por exemplo, que o próprio Hitler tivera vários problemas com o seu pai durante a infância e adolescência). Logo no início do filme, o próprio narrador em off avisa: “os eventos que se passaram ali, naquele vilarejo, no início do século, são de extrema importância para se compreender os eventos dramáticos que aconteceriam na Alemanha, décadas depois”.

Essas relações de cunho causal aparecem em diversas marcas simbólicas ao longo do filme. A mais evidente é a tal fita branca do título, que o pastor força seus filhos a usarem. As crianças deveriam usar a fita para que pudessem sempre lembrar a sua condição de pecadores, uma antevisão da estrela de David usada pelos judeus durante parte do Terceiro Reich como elemento de uma estratégia de distinção social. Outra marca que merece destaque é o desprezo com que uma criança com deficiência mental (filho do médico) é tratada pelas demais crianças e adultos do vilarejo, ao ponto de ter seus olhos furados pelos autores dos demais crimes. O uso deste acontecimento, no filme, não tem nada de fortuito. Sabe-se que a Alemanha assassinou milhões de alemães deficientes mentais, sob a defesa de extirpar os “incapazes socialmente”. Esses crimes são considerados por diversos historiadores, inclusive, como um preâmbulo macabro para o que aconteceria com os judeus pouco tempo depois. Por fim, o mesmo tipo de alusão pode ser percebida quando um pai grita e espanca violentamente o filho (uma das cenas mais fortes do filme) ao saber que ele havia roubado a flauta do filho do barão. É praticamente impossível não reconhecer naquela cena o mesmo ímpeto de violência praticado pelos SS em campos de concentração.

Tudo isso é contado através da incrível técnica narrativa de Michael Haneke. A qualidade técnica é inegável. O filme é todo filmado em preto e branco impecável. O uso das câmeras é fascinante, não somente por conta da função do close-up para registrar as nuances dos personagens, mas também para seguir o ator em sua movimentação pelo cenário. Durante as filmagens à noite, o uso das penumbras e do som estalado provoca arrepios. Em nenhum momento, há falas exageradas nas bocas dos personagens. Não soubéssemos da magia do cinema, poderíamos dizer que as filmagens ocorreram sem que os filmados soubessem de absolutamente nada, tamanha é a naturalidade das atuações. Um filme tecnicamente impecável, um exemplo de como as imagens podem nos transportar para um universo totalmente diferente.



No entanto, apesar de todas as qualidades descritas anteriormente, o filme é uma tremenda tragédia. E o que explica esta tragédia é o argumento do filme de Haneke. Ao explicar o nazismo e o holocausto pela via do germanismo, em particular por sua estrutura patriarcal castradora, “A Fita Branca” é um enorme passo atrás na compreensão desses fenômenos.

Primeiramente, é preciso dizer que esta tese não é nova. O que Haneke faz é endossar uma idéia do intelectual alemão Theodor Adorno, o mesmo autor dos principais estudos sociológicos da “Indústria Cultural” (“A Personalidade Autoritária”, 1950). Baseado em pesquisas feitas com norte-americanos que viviam, em sua maioria, na costa leste dos Estados Unidos na década de 1950, Adorno e sua equipe estavam certos que havia uma relação íntima entre opiniões antissemitas pronunciadas, um etnocentrismo acentuado e opiniões de direita no plano político, com o fascismo potencial e com características autoritárias. Segundo o alemão, relações de severidade excessiva de um dos pais, em geral o pai, em relação ao filho (algo para Adorno muito típico entre as famílias alemães do início do século XX), fortalece uma série de sentimentos ambivalentes, como aqueles que variam do temor do castigo a transformação da hostilidade reprimida em sadismo em relação às pessoas que a vítima considera como o “outro grupo”. Um caso de transferência de repressão, uma relação de amor e ódio em relação ao pai autoritário (no filme de Haneke, essa transferência fica clara quando as crianças passam a violentar outras crianças, diferentes delas). No caso da Alemanha, esse ódio, nos anos trinta e quarenta, foi transferido para a imagem do judeu, convertido em corpo estranho dentro da sociedade ariana germânica.

A explicação de Adorno para o nazismo e para o holocausto, requentada mais de cinqüenta anos depois por Haneke, é extremamente problemática. Em primeiro lugar, a tese é frágil porque tenta levar para o plano coletivo (das massas) conceitos e justificativas que são usados pela psicologia e, sobretudo, pela psicanálise, no âmbito individual. Ao fazer isso, ela não só trata erroneamente a massa como um indivíduo unificado (psicologização excessiva da história), mas também ignora fatos políticos e econômicos do período histórico do qual se refere. Em segundo lugar, olhar para o passado alemão buscando uma origem retroativa do nazismo é extremamente conveniente. O problema está sempre lá, visível, encubado, pronto para se transformar naquilo que já conhecemos de antemão. Mas isso é apenas um mascaramento do universo marco. Segundo uma série de historiadores, dentre os quais se destaca o francês Michael R. Marrus, a Alemanha estava longe de ser o país mais antissemita da Europa na primeira metade do século XX. Se naquela época pudéssemos apostar em um país onde o holocausto iria acontecer, certamente França e Rússia seriam os mais cotados, tamanho era o grau de preconceito e perseguição sofriada pelos judeus (os famosos pogroms). Em terceiro lugar, do ponto de vista da pesquisa histórica, a história do autoritarismo alemão, do qual a estrutura familiar é o maior exemplo, é uma aposta no escuro. Como é possível explicar a morte de seis milhões de pessoas tendo em vista a justificativa de transferência psicológica? E mais: o que leva a crer (e como medir) que na Alemanha o autoritarismo patriarcal era mais intenso do que em outros países europeus? Não existe nenhuma evidência particular e incontestável que ligue uma coisa a outra. Muito mais correto, pelo contrário, parece ser compreender o antissemitismo como um sentimento existente em vários graus. Até mesmo para o Terceiro Reich, o assassinato em massa nem sempre foi algo planejado, mas ditado por uma série de circunstâncias históricas, ocorridas a partir, principalmente, de 1941.

A tese de Adorno, defendida de forma apaixonante por Haneke, foi duramente criticada e derrubada por dois trabalhos brilhantes no século XX. O primeiro desses trabalhos foi publicado em 1961, pelo maior especialista do holocausto: Raul Hilberg, com a sua obra monumental “The Destruction of the European Jews”. Hilberg chamava a atenção para o caráter industrial do Holocausto, para a natureza fria e burocrática dos crimes cometidos nos campos de concentração, tratados como um negócio qualquer do Estado, que pela primeira vez aplicava todo o conhecimento e técnicas industriais na destruição de todo um grupo social. Ou seja, não é o elemento germânico que está em jogo, mas sim a noção de mundo industrial.

O segundo grande trabalho ao qual me refiro, intitula-se “Modernidade e Holocausto”, escrito pelo cultuado sociólogo Zygmunt Bauman. O livro foi publicado em 1989 e não fortuitamente conquistou os mais importantes prêmios literários do mundo naquele ano. O livro de Bauman é uma espécie de revitalização das idéias de Hilberg, hoje aceita por praticamente todos os historiadores e sociólogos que se dedicam ao estudo do nazismo. Bauman rejeita todas as teses que germanizam e particularizam o Holocausto. Em suas palavras, “o Holocausto nasceu e foi executado na nossa sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano, e por essa razão é um problema dessa sociedade, dessa civilização e cultura”.

Nesse sentido, tratar do holocausto como uma questão de patologia psicológica e marcadamente alemã seria ignorar a incômoda verdade de que o holocausto é o símbolo do fracasso da modernidade. O holocausto é uma questão planetária e germanizá-lo pode ser uma cegueira perigosa. Bauman conclui acertadamente que os defensores da germanização do holocausto acreditam que uma vez estabelecida a responsabilidade moral e material da Alemanha, dos alemães e dos nazistas, a procura das causas está concluída. Em outras palavras, suas causas foram confinadas num espaço e num tempo limitados, para nossa sorte, o passado. Não raro, o nazismo foi durante um bom tempo classificado como uma “doença alemã”, um “desvio da civilização”, um “momento de cegueira”, quando, na verdade, trata-se de uma questão ligada a gênese do mundo moderno. O holocausto aconteceu na Alemanha dos anos quarenta, mas poderia ocorrer na França dos anos trinta. Poderia acontecer hoje, muito mais próximos do que podemos supor. E é isso o que apavora: não vivemos um mundo diferente daquele que produziu o holocausto. Para Bauman, a tese de Haneke não resulta apenas no conforto moral da auto-absolvição, mas também em um tempo de desarmamento moral e político. “Tudo aconteceu ‘lá’ – em outra época, em outro país Quanto mais culpáveis forem ‘eles’, mais seguros estaremos ‘nós’, e menos teremos que fazer para defender essa segurança. Uma vez que a atribuição de culpa for considerada equivalente à identificação das causas, a inocência e sanidade do modo de vida que tanto nos orgulhamos não precisam ser colocadas em dúvidas”.

Quem deseja conhecer este confronto de idéias, “Modernidade e Holocausto” trata-se de uma obra bastante minuciosa. Desmonta os mitos do filme de Haneke um a um. Sua abordagem identifica todos os pontos modernos e burocráticos da indústria da morte nazista, relacionando-os ao modos operandi da modernidade. Méritos para Bauman, que em um certo momento de sua argumentação, expõe como as duas coisas estão totalmente imbricadas: do gás usados nas câmaras da morte aos caminhos das linhas férreas que levavam os condenados para os campos. Elementos consagrados da indústria metalurgia e química do século XX. E tudo isso planejado de acordo com os preceitos básicos e modernos, típicos dos manuais consagrados de administração, até hoje usados.

Assim, se “A Fita Branca” pode ser primoroso do ponto de vista técnico-cinematográfico, do ponto de vista do argumento do roteiro, cuja vida é dada pela direção persuasiva e brilhante de Haneke, trata-se de uma tragédia completa. Para o diretor austríaco (vale lembrar que a Áustria recebeu com flores a anexação na Alemanha de Hitler) o nazismo é representado como um “problema de alemães”. E se a opinião pública compra essa idéia, ainda bem arraigada na mente de certos produtores de sentido sobre o passado, seria a comprovação de que não aprendemos ainda a maior lição deixada pelo holocausto.



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