sábado, 20 de abril de 2013

TEXTOS COMPLEMENTARES SOBRE A "PEC DOS EMPREGADOS DOMÉSTICOS"

As empregadas e a escravidão

Publicado em 16/04/2013 | Deixe um comentário
Por Urariano Mota.*

Por caminhos tortos, Joaquim Nabuco teve uma das suas iluminações quando escreveu: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”. Sim, por caminhos tortos, porque depois de uma frase tão magnífica – de gênio do futuro –, Joaquim Nabuco, sem pausa, continuou num encanto que esconde a crueldade:

“Ela [a escravidão] espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor…”.

Penso na primeira frase de Nabuco (a da escravidão como característica do Brasil) nesses dias em que o Congresso dá um primeiro passo para a superação da herança maldita. Não quero falar aqui sobre as conquistas legais para as empregadas domésticas, da nova lei sobre a qual os jornais tanto têm falado como num aviso: “patroas, cuidado: domésticas agora têm direitos”. Falo e penso nas empregadas que vi e tenho visto no Recife e em São Paulo. No aeroporto de Guarulhos eu vi Danielle Winits, a famosa atriz da Globo, muito envolvida com o seu notebook, concentradíssima, enquanto o filhinho de cabelos louros berrava. Para quê? A sua empregada, vestida em odioso e engomado uniforme, aquele que anuncia “sou de outra classe”, cuidava para que a perdida beleza da atriz não fosse importunada. Tão natural… os fãs de telenovelas não viam nada de mais na mucama no aeroporto, pois faziam gracinhas para o bobinho lindinho.

Em outra ocasião, numa terça-feira de carnaval à noite, vi no Recife uma jovem à minha frente, empenhada em ver a passagem de um maracatu. Tão africano, não é? Junto a ela uma senhora – desta vez sem uniforme, mas carregando no rosto e modos a servidão – abrigava nos braços um bebê. Os tambores, as fantasias, eram de matar qualquer atenção dirigida à criança, que afinal estava bem cuidada, sob uma corda invisível que amarrava a empregada. Então eu, no limite da raiva, oferecei o meu lugar à sua escrava sobrevivente, com a frase: “a senhora, por favor, venha com o seu filho aqui para a frente”. A empregada quis se explicar, coitada, morta de vergonha, enquanto a doce mamãe não entendia o chamamento irônico, pois me olhava como se eu fosse um marciano. Espantada, parecia me dizer: “como o meu filho pode ser dessa aí?”.

O desconhecimento de direitos elementares às empregadas domésticas (como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual aos patrões) creio que sobreviverá até mesmo à nova lei. É histórico no Brasil, atravessa gerações e atinge até mesmo os mais jovens e pessoas que se declaram à esquerda. É como se estivesse no sangue, como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até antes delas vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes vemos nos restaurantes jovens casais com suas lindas crias, tendo ao lado as escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos domingos e feriados, pois esses são os dias das patroazinhas se divertirem. É justo, não é? O feminismo se faz para que mulheres sejam cidadãs, mas a cidadania só alcança os iguais, é claro.

Em todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas por deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em laços afetivos. A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que, afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem, porque não exagero. Não faz muito tempo, no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem os grandes e largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os minúsculos quartinhos de empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr dizia serem a prova de que no Brasil empregadas não têm sexo no WC.

Não posso concluir sem observar que os pobres copiam os ricos, e que o tratamento dado às domésticas se estende em democracia para todas as classes sociais. Menos para as empregadas, é claro. “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil”, dizia Nabuco.

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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.


http://blogdaboitempo.com.br/2013/04/16/as-empregadas-e-a-escravidao/


Desassossego na cozinha

Patroas descobrem, aflitas, que as empregadas não aceitam receber salário-mínimo, querem seguro-desemprego, FGTS e não mais dormir no local de trabalho. Por que o espanto com a reviravolta dessas herdeiras da escravidão?


RUY BRAGA*
Se confiarmos no atual estado de desassossego dos bairros nobres da cidade, concluiremos que a luta de classes chegou às cozinhas. Patroas descobrem aflitas que as empregadas não aceitam mais receber um salário-mínimo. Além dos direitos garantidos, como férias de 20 dias úteis e vale-transporte, elas passaram a demandar o seguro-desemprego. Faltam braços e afloram comportamentos inusitados: suprema audácia, as domésticas requerem o depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e recusam-se a dormir no trabalho. Remanescente arquitetônico dos tempos da casa-grande, o cubículo dos fundos dos apartamentos paulistanos está lentamente mudando de serventia e vira depósito.

Eis a lamúria. No entanto, se deixarmos de lado as enraizadas disposições culturais da classe média alta, o momento atual do trabalho doméstico adquire tonalidades menos agudas. Em primeiro lugar, não é verdade que o aquecimento do mercado de trabalho brasileiro enfraqueceu a oferta de serviços domésticos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, entre 1999 e 2009 o número de trabalhadores domésticos saltou de 5,5 milhões para 7,2 milhões. Aquietai-vos, patroas, pois o emprego doméstico segue firme como a principal ocupação nacional, acompanhado de longe pelo trabalho no telemarketing (1,4 milhões).

Na realidade, o baixo nível de desemprego, em torno de 5% da população economicamente ativa - índice mascarado pela grande participação do emprego formal precarizado -, elevou as expectativas dos trabalhadores subalternos. De fato, as empregadas estão mais exigentes. Mas, afinal, o que isso significa? Apenas que não aceitam trabalhar por menos de um salário-mínimo e meio, esperando alcançar direitos sociais já desfrutados pelos demais trabalhadores. Por que isso causaria assombro?

A razão é simples: no Brasil, o emprego doméstico é uma das mais antigas formas de trabalho assalariado, remontando ao período da escravidão. Assim, não é coincidência que, ainda hoje, mais de 60% da força de trabalho doméstica seja formada por negros. Além disso, cerca de 93% dos mais de 7 milhões de trabalhadores domésticos são mulheres. Elas são as genuínas herdeiras das escravas da casa-grande. Invisíveis à fiscalização do poder público, mesmo na principal metrópole brasileira, em 2009 apenas 38% das empregadas tinham carteira de trabalho. Em todo o País, a formalização do trabalho doméstico mal alcança os 30%.

Contribuem para esses números vexatórios a baixa escolarização e as enormes dificuldades autoassociativas inerentes ao processo de trabalho doméstico. Sem mencionar as tradicionais formas passivas de resistência “molecular”, como atrasos e faltas frequentes, ficaria surpreso se as empregadas não aproveitassem a atual correlação de forças existente no mercado de trabalho para exigir, além do pleno début na cidadania salarial, salários e condições de trabalho menos degradantes. Ao fazê-lo, elas apenas percorrem a trajetória histórica da classe trabalhadora: do campo para as cidades, atraída por direitos sociais, serviços públicos e oportunidades de profissionalização.

Em minha pesquisa de campo sobre os operadores de telemarketing, publicada recentemente no livro Política do Precariado: Do Populismo à Hegemonia Lulista (Boitempo), tive a oportunidade de entrevistar inúmeras filhas de empregadas que identificavam no contraponto ao trabalho doméstico - destituído de prestígio, desqualificado, sub-remunerado e incapaz de proporcionar um horizonte profissional - a principal razão de ter buscado o call center em vez de seguir os passos das mães - mesmo quando a diferença salarial era favorável ao emprego doméstico. No telemarketing, essas jovens perceberam a oportunidade de 1) alcançar direitos sociais e 2) terminar a faculdade particular noturna que o serviço doméstico, devido à incerteza dos horários, é incapaz de prover.

Mesmo que o ciclo do emprego no call center frequentemente frustre a esperança de progresso ocupacional - afinal, a rotatividade é muito alta e os salários, muito baixos -, ainda assim o telemarketing segue atraindo a fração mais jovem e escolarizada do grupo de domésticas. Como nesse setor a jornada de trabalho é de seis horas diárias e não há informalidade, a teleoperadora vive a oportunidade de alcançar direitos e terminar uma faculdade noturna.

Tomando pelo avesso a lamúria da classe média alta, é possível dizer que a preocupação das patroas prefigura um autêntico progresso social sumariado pela Proposta de Emenda à Constituição 478/10. Em trâmite no Senado, essa proposta iguala os direitos das empregadas aos dos demais trabalhadores com registro em carteira, assegurando jornada de trabalho de 44 horas semanais, FGTS, seguro-desemprego, horas extras e adicional noturno. Caso aprovada, seria um passo importante para a consolidação da precária cidadania salarial brasileira. E a luta de classes na cozinha teria cumprido parte de seu papel histórico.

*RUY BRAGA É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP E AUTOR DE POLÍTICA DO PRECARIADO: DO POPULISMO À HEGEMONIA LULISTA (BOITEMPO)


http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,desassossego-na-cozinha,986356,0.htm



CURTAS


http://www.youtube.com/watch?v=cnGURbbtTlc - Electrodomestica


http://www.youtube.com/watch?v=U9mu2TJ0scY - Recife frio


http://www.youtube.com/watch?v=z0JjcpcKrCM - Novela avenida Brasil (Vingança de Nina com Carminha)

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