quarta-feira, 5 de junho de 2013

TERRAS INDÍGENAS: COMO SOLUCIONAR CONFLITOS?

TEXTO 1

Estudos Avançados

Print version ISSN 0103-4014

Estud. av. vol.8 no.20 São Paulo Jan./Apr. 1994

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40141994000100016 


O futuro da questão indígena


Manuela Carneiro da Cunha



RESUMO
O futuro dos índios no Brasil dependerá de várias opções estratégicas, tanto do Estado brasileiro e da comunidade internacional quanto das diferentes etnias. Trata-se de parceria. As populações indígenas têm direito a seus territórios por motivos históricos, que foram reconhecidos no Brasil ao longo dos séculos. Mas estes direitos não devem ser pensados como um óbice para o resto do Brasil: ao contrário, são um pré-requisito da preservação de uma riqueza ainda inestimada mas crucial, a biodiversidade e os conhecimentos das populações tradicionais sobre as espécies naturais. O que se deve procurar, no interesse de todos, é dar as condições para que esta riqueza não se perca: é por isso irracional querer abrir todas as áreas da Amazônia à exploração indiscriminada. Fazem-se assim convergir os direitos dos índios com os interesses da sociedade brasileira como um todo.

ABSTRACT
The Indians future in Brazil will depend on several strategic choices as much the Brazilian state and international community as different races. It is a question of partnership. By historical reasons, which were recognized in Brazil during the centuries, the native populations have a right to their territories. But these rights should not be thought as an impediment to the rest of the country. On the contrary, they are a preserving prerequisite of a richness even inestimable, but cruciate, the biodiversity and knowledges of traditional populations about natural kinds. According to everybody's interest what it should look for is to give conditions not to loose this richness. Because of that, it is unreasonable want to open all Amazonia areas to indiscriminate exploration. Thus, it is necessary converge the Indians rights with the brazilian society interests as a whole.



É Heródoto (História, 82) quem conta que os argivos e os lacedemônios estando em guerra por causa de um territorio, travaram-se duas batalhas. "Em seguida a esses acontecimentos", escreve Heródoto, "os argivos cortaram os cabelos, que até então eram obrigados a usar longos, e promulgaram uma lei, corroborada por imprecações, segundo a qual nenhum argivo deixaria crescer os cabelos (...) enquanto eles não reconquistassem Tirea; os lacedemônios, por seu turno, promulgaram uma lei em sentido contrário, segundo a qual, daí em diante eles, que até então não usavam cabelos longos, passariam a usá-los".
Há dois modos básicos de se entender a noção de cultura e de identidade. O primeiro, a que poderíamos chamar, por simples conveniência, de platônico, percebe a identidade e a cultura como coisas. A identidade consistiria em, pelo menos como um horizonte almejado, ser idêntica a um modelo, e supõe assim uma essência, enquanto a cultura seria um conjunto de itens, regras, valores, posições etc. previamente dados. Como alternativa a esta perspectiva, pode-se entender a identidade como sendo simplesmente a percepção de uma continuidade, de um processo, de um fluxo, em suma, uma memória. A cultura não seria, nessa visão, um conjunto de traços dados e sim a possibilidade de gerá-los em sistemas perpetuamente cambiantes. Por comodidade, poderíamos chamar esta postura de heracliteana.


Em vários trabalhos anteriores, explorei os aspectos ligados a esta posição heracliteana, com respeito à etnicidade, que repousa precisamente sobre a noção de identidade e sobre o conceito-chave da antropologia, a saber, a cultura. Apontei que a cultura, ao substituir a noção de raça, herdou no entanto sua reifícação. E mostrei, usando a analogia do totemismo, que se pode pensar as culturas, em sociedades multiétnicas, de forma não essencialista e sim estrutural.
Talvez valha a pena explicitar meu argumento: do mesmo modo que o totemismo usa categorias naturais para expressar distinções sociais, a etnicidade se vale de objetos culturais para produzir distinções dentro das sociedades em que vigora. A etnicidade é portanto uma linguagem que usa signos culturais para falar de segmentos sociais.
As espécies naturais existem em si, são dadas no mundo. Têm uma coerência interna, uma fisiologia que anima e concatena suas partes. Mas não é na sua inteireza que elas interessam ao totemismo. São suas diferenças culturalmente selecionadas que as tornam passíveis de organização em um sistema que passa a comandar um outro significado. O que acontece se passamos das espécies naturais usadas no totemismo para espécies culturais usadas nas sociedades multiétnicas? Do mesmo modo que a fisiologia comanda cada espécie natural, as culturas são sistemas cujas partes interdependentes são determinadas pelo todo que as organiza. Se elas passam a ser usadas, por sua vez, como signos em um sistema multiétnico, elas além de serem totalidades, tornam-se também partes de um novo, de um meta-sistema, que passa a organizá-las e a conferir-lhes portanto suas posições e significados. E solidariamente com a mudança do sistema de referência, sem que nada tangível tenha mudado nos objetos, muda também o significado dos itens culturais. Ou seja, sob a aparência de ser o mesmo, de ser fiel, de ser tradicional, o traço cultural alterou-se. E, reciprocamente, sua alteração em função de um novo sistema não significa mudança étnica: os argivos deixaram crescer seus cabelos, que antes usavam curtos e os lacedemônios, que os usavam longos, cortaram-nos.
Os traços culturais tornam-se assim no mínimo bissêmicos: um primeiro sentido prende-se ao sistema interno, um segundo ao sistema externo. Usar um cocar pariko em um ritual Bororo é uma coisa, usá-lo em uma coletiva de imprensa para reivindicar direitos indígenas na Assembléia Constituinte é outra. Mas o cocar é o mesmo e é essa mesmice que nos induz em erro. Os signos étnicos podem ser elaborados com todas as regras da arte tradicional e, no entanto, terem um significado externo à cultura em que se originaram: não por serem falsos mas por serem comandados por um sistema que extrapola a cultura tradicional. São, de certa forma, como trocadilhos, que participam de mais de um código semântico.
Entender estes processos não é somente importante para a definição de identidade étnica. Na realidade toda a questão indígena (e não só ela) está eivada de semelhantes reificações. No século XVI, os índios eram ou bons selvagens para uso na filosofia moral européia, ou abomináveis antropófagos para uso na colônia. No século XIX, eram, quando extintos, os símbolos nobres do Brasil independente e, quando de carne e osso, os ferozes obstáculos à penetração que convinha precisamente extinguir. Hoje, eles são seja os puros paladinos da natureza seja os inimigos internos, instrumentos da cobiça internacional sobre a Amazônia.
Há vários anos, um personagem de nossa vida pública declarou que não era ministro: apenas estava ministro. Eu diria o mesmo dos índios: não são nada disso, apenas estão. Ou seja, qualquer essencialismo é enganoso. A posição das populações indígenas dependerá de suas próprias escolhas, de políticas gerais do Brasil e até da comunidade internacional. Para ser mais específica, entrarei agora em algum detalhe nas características atuais da questão indígena.

População
A primeira observação é que, desde os anos 80, a previsão do desaparecimento dos povos indígenas cedeu lugar à constatação de uma retomada demográfica geral. Ou seja, os índios estão no Brasil para ficar.
Sabe-se que o primeiro contato de populações indígenas com outras populações ocasiona imensa mortandade, por ser a barreira imunológica desfavorável aos índios (ao contrário do que ocorreu na África, em que a barreira favorecia os africanos em detrimento dos europeus). Essa mortandade, no entanto, contrariamente ao que se quer crer, não tem causas unicamente naturais: entre outras coisas, ela pode ser evitada com vacinações, atendimento médico e assistência geral. Estudos de caso recentes mostraram que, nessas epidemias, os índios morrem sobretudo de fome e até de sede: como toda a população é acometida pela doença ao mesmo tempo, não há quem socorra e alimente os doentes. Foi o que aconteceu entre 1562 e 1564 quando ficaram dizimadas as aldeias jesuítas da Bahia, onde se haviam reunido milhares de índios, o que facilitou o contagio. Os sobreviventes, movidos pela fome, vendiam-se a si mesmos em escravidão. Hoje a mortandade do primeiro contato, como a que ocorreu entre os Yanomami durante a construção da Perimetral Norte e que perdura com a malária trazida pelos garimpeiros (e que vitimou cerca de 15% da população Yanomami entre 1988 e 1990), é algo inadmissível e grave responsabilidade do Estado.
Após o primeiro contato, os grupos que conseguem sobreviver iniciam uma recuperação demográfica: assim foi com a América como um todo, que perdera grande parte de sua população aborígene entre 1492 e 1650, provavelmente uma das maiores catástrofes demográficas da humanidade. Cada avanço da fronteira econômica no país dá origem a um ciclo semelhante. Muitos grupos indígenas foram contactados no início dos anos 70, durante o período do chamado milagre brasileiro, e estão agora iniciando esse processo de recuperação demográfica.
Outro fator de crescimento populacional, embora de menor impacto demográfico, é que muitos grupos, em áreas de colonização antiga, após terem ocultado sua condição discriminada de indígenas durante décadas, reivindicam novamente sua identidade étnica. No século XIX, sobretudo no nordeste, com o falso pretexto da inexistência ou de uma assimilação geral dos índios, as terras dos aldeamentos foram liquidadas e por sinal duramente disputadas entre os poderes locais. Ressurgem agora etnias, sobretudo no leste e no nordeste, que reclamam terras — em geral diminutas, mas por encontrarem-se em áreas densamente povoadas, enfrentam oposição violenta. Os embates legais travam-se geralmente em torno da identidade indígena e aqui o modelo que eu chamei platônicoda identidade é amplamente invocado, tanto por parte dos fazendeiros quanto por parte dos próprios índios, forçados a corresponderem aos estereótipos que se tem deles.
Garantia de terras, apoio sanitário, apoio legal têm, portanto, profundo impacto na retomada demográfica dos índios que apenas se inicia. Nos EUA, a população indígena em 1890 era da ordem da população indígena brasileira nos nossos dias, ou seja, na casa dos duzentos e poucos mil. Cem anos mais tarde, essa população havia quadruplicado: no censo de 1990, registravam-se 1,9 milhões de nativos americanos. É possível que ascenso semelhante se verifique no Brasil, cuja população indígena já aumentou nestes últimos dez anos e situa-se hoje, provavelmente, em torno de 250.000. Mas nunca se voltará à situação de 1500, quando a densidade demográfica da várzea amazônica era comparável à da península ibérica: 14,6 habitantes por km2 na primeira (de acordo com Denevan, 1976:230), contra 17 habitantes por km2 em Espanha e Portugal (Braudel, 1972:42).

Terras
O grande contingente populacional indígena localiza-se, não por acaso, na Amazônia. Não por acaso, dizem também os que defendem teorias conspiratórias, como se os índios fossem a ponta de lança de interesses escusos internacionais. Chegou-se a dizer que se traziam índios para onde houvesse riquezas minerais. Os índios são mais numerosos na Amazônia pela simples razão de que grande parte da região ficou à margem, nos séculos passados, dos surtos econômicos. O que se prova até pelas exceções: onde houve borracha, por exemplo no Acre, as populações e as terras indígenas foram duramente atingidas e a maior parte dos sobreviventes dos grupos pano do Brasil hoje estão em território peruano. Quanto aos Yanomami, habitam terras altas que até recentemente não interessavam a ninguém. As populações indígenas encontram-se hoje onde a predação e a espoliação permitiu que ficassem.
Os grupos da várzea amazônica foram dizimados a partir do século XVII pelas tropas que saíam em busca de escravos. Incentivou-se a guerra entre grupos indígenas para obtê-los e procedeu-se a maciços descimentos de índios destinados a alimentar Belém em mão-de-obra. No século XVIII, como escrevia em 1757 o jesuíta João Daniel, encontravam-se nas missões do baixo Amazonas índios de "trinta a quarenta nações diversas". Alguns grupos apenas foram mantidos nos seus lugares de origem para que atestassem e defendessem os limites da colonização portuguesa: foram eles os responsáveis pelas fronteiras atuais da Amazônia em suas regiões. E o caso dos Macuxi e Wapixana, na Roraima atual, chamados no século XVIII de muralhas do sertão. O Barão de Rio Branco e Joaquim Nabuco fundamentaram na presença destes povos e nas suas relações com os portugueses a reivindicação brasileira na disputa de limites com a então Guiana inglesa, no início deste século. E há quem venha agora dizer que os Macuxi se instalaram apenas recentemente na área Raposa-Serra do Sol! Do ponto de vista da justiça histórica, é chocante hoje se contestar a conveniência de grupos indígenas povoarem as fronteiras amazônicas que eles ajudaram a consolidar.
Outra objeção que freqüentemente se levanta, paradoxal em um país ocupado por latifúndios numa proporção que beira os 50% (48,5%), é o tamanho das terras indígenas na Amazônia. Já vimos as razões pelas quais elas se concentram na região, longe das áreas de colonização antiga. Mas grandes áreas na Amazônia não são o privilégio de alguns grupos indígenas. A Manasa Madeireira Nacional tinha, em levantamento do Incra de 1986, nada menos do que 4 milhões e 140 mil hectares no Amazonas: área maior que a Bélgica, a Holanda ou as duas Alemanhas reunidas. Em outras regiões do Brasil, a mesma Manasa tinha mais meio milhão de hectares. A Jari Florestal Agropecuária Ltda. tem quase três milhões de hectares no Pará. E assim vai. E neste caso, contrariamente às terras indígenas que pertencem à União, trata-se de terras particulares.
Em matéria de territórios indígenas, o Brasil está longe da liderança. No Canadá (segundo a Folha de S.Paulo; 5 set. 1993, p.3-4), criou-se em dezembro de 1991 um território semiautônomo esquimó (ou Inuit) de cerca de 2 milhões de km2, (cerca de 20% do território total do Canadá, e em área contínua), equivalente aos estados de Amazonas, Amapá, Acre e Roraima juntos, com 17.500 habitantes. Em 1/6 do território, os Inuit têm controle absoluto das riquezas naturais e autogoverno. Nos outros 5/6, recebem 5% sobre a exploração de riquezas naturais. Trata-se de território contínuo que sozinho totaliza mais do dobro de todas as áreas indígenas brasileiras.


No Brasil, com efeito, contam-se atualmente 519 áreas indígenas esparsas que, juntas, totalizam 10,52% do território nacional, com 895.577,85 km2. Apesar da Constituição (no art. 67 das disposições transitórias) prever a data de 5 de outubro de 1993 para a conclusão das demarcações dessas áreas, atualmente cerca de metade (256) estão demarcadas fisicamente e homologadas (Cedi, 1993). As demais 263 áreas estão em diferentes estágios de reconhecimento, desde as 106 totalmente sem providências até às 27 demarcadas fisicamente, mas ainda não homologadas. Acrescente-se o dado muito relevante de que cerca de 85% das áreas indígenas sofrem algum tipo de invasão.

Direitos
O princípio dos direitos indígenas às suas terras, embora sistematicamente desrespeitado, está na lei desde pelo menos a Carta Regia de 30 de julho 1609. O Alvará de 1° de abril de 1680 afirma que os índios são "primários e naturais senhores" de suas terras, e que nenhum outro título, nem sequer a concessão de sesmarias, poderá valer nas terras indígenas. E verdade que as terras interessavam, na Colônia, muito menos que o trabalho indígena. Mas até quando se inverte o foco desse interesse, em meados do século XIX, e que menos do que escravos, se querem títulos sobre terras, ainda assim se respeita o princípio. Para burlá-lo, inaugura-se um expediente utilizado até hoje: nega-se sua identidade aos índios. E se não há índios, tampouco há direitos. Quanto ao direito constitucional, desde a Constituição de 1934, é respeitada a posse indígena inalienável das suas terras. Diga-se em sua honra, foi na bancada amazonense que teve origem a emenda que consagrou esses direitos em 1934 (Carneiro da Cunha, 1987:84 e ss). Todas as Constituições subseqüentes mantiveram e desenvolveram esses direitos, e a Constituição de 1988 deu-lhes sua expressão mais detalhada.
Qual é hoje a situação legal dos índios e de suas terras? Sem entrar em muitos detalhes, salientarei alguns dados fundamentais para o que aqui nos interessa. Os índios têm direitos constitucionais, consignados em um capítulo próprio e em artigos esparsos da Constituição Federal de 1988. A Constituição trata sobretudo de terras indígenas, de direitos sobre recursos naturais, de foros de litígio e de capacidade processual. Pela Constituição, as terras indígenas são de propriedade da União e de posse inalienável dos índios. A Constituição não trata da tutela, que é um dispositivo enxertado no Código Civil de 1916. Digo enxertado porque não constava do projeto original de Clóvis Bevilacqua e foi acrescentado para garantir, por analogia com um instituto já existente, proteção especial aos índios. Eles foram assim enquadrados na categoria de relativamente capazes que engloba os menores entre 16 e 21 anos, os pródigos e, até 1962, quando se as retirou do artigo, as mulheres casadas! Trata-se, como se vê pelas outras categorias de relativamente capazes, de defender os índios nas suas transações negociais, tentando impedir que sejam lesados.
Na legislação ordinária destaca-se o chamado Estatuto do índio (Lei 6001 de 19.12.73), que regula no detalhe os direitos indígenas. Dadas as novas formulações da Constituição de 1988, faz-se necessária uma revisão desse Estatuto, e tramitam atualmente no Congresso várias propostas de lei nesse sentido.
Há por fim convenções internacionais ratificadas pelo Brasil que dizem respeito aos índios e das quais a principal seria a Convenção 107 da OIT. Em 1989, a OIT aprovou a revisão da Convenção 107, dando origem à Convenção 169. Está tramitando no Congresso Nacional a proposta de ratificação dessa forma revisada.
Saliento aqui que somente uma Convenção Internacional ratificada pelo país tem valor legal. Falou-se muito daameaça que a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, atualmente em consideração na Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, faria pesar sobre a soberania brasileira. Sem entrar ainda na análise do conteúdo, quero só fazer notar que uma Declaração não tem qualquer poder de implementação, nem sequer nos foros internacionais.

Substrato das recentes declarações
Os novos instrumentos internacionais, como a Convenção 169 da OIT (de 1989), a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas (na sua versão atual) baseiam-se em uma revisão, operada nos anos 70 e sobretudo 80, das noções de progresso, desenvolvimento, integração e discriminação ou racismo.
Em poucas palavras, as versões pós-guerra dos instrumentos de direitos humanos baseavam-se essencialmente no direito à igualdade.
Mas esse direito, que brotava de uma ideologia liberai e respondia a situações do tipo apartheid, foi largamente entendido como um dever; e a igualdade, que era de essência política, foi entendida como homogeneidade cultural. O direito à igualdade redundava pois em um dever de assimilação. Outras equivalências perversas se alastraram: integração e desenvolvimento passaram a sinônimos de assimilação cultural, discriminação e racismo a reconhecimento das diferenças. O anti-racismo liberal, como tão bem analisou Sartre — na sua Reflexão sobre a questão judia —, só é generoso com o indivíduo, nunca com o grupo. Aceita-o desde que se dispa de sua particularidade étnica. Por supor uma igualdade básica, exige um assimilação geral. Não é diferente nesse sentido a Bula Ventas Ipsa de Paulo III que, em 1537, reconhecia a humanidade dos índios: eram humanos, portanto, passíveis de serem tornados iguais. Tinham alma, portanto, era obrigação dos reis cristãos batiza-los. Essa pseudo-generosidade que quer conceder a todos a possibilidade (inteiramente teórica) de se tornarem semelhantes a nós, deriva de um etnocentrismo que se ignora a si mesmo.
Nos anos 70 e 80 desencadeia-se uma crise de confiança nas idéias-chave de progresso e desenvolvimento, na qual o movimento ecológico teve relevante papel. Sob o impacto dessa crise, o enfoque muda: as declarações internacionais passam a falar em etnodesenvolvimento (Declaração de San José, da UNESCO, de 1981), direito à diferença, valor da diversidade cultural... Direito à diferença, entenda-se, acoplado a uma igualdade de direitos e de dignidade.
Seja como for, as declarações e instrumentos internacionais falam crescentemente, desde o fim dos anos 70, depovos indígenas. O receio de alguns Estados, e do Brasil em primeira linha, é de que o termo povos possa implicar o status de sujeito de Direito Internacional e, de acordo com a Carta das Nações Unidas (art. 1.2) que reconhece o princípio da autodeterminação dos povos, pôr em risco a integridade do território. No entanto, tanto povoscomo autodeterminação podem ter entendimentos variados. O fato é que o termo povos se generalizou sem implicar em ameaças separatistas, muito menos no Brasil, em que o tamanho diminuto das etnias e sua pulverização territorial não permitiriam sequer pensá-lo. Para dissipar mal-entendidos, a Convenção 169 da OIT e o Acordo Constitutivo do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas na América Latina e Caribe, criado em 1991, rechaçam explicitamente as implicações temidas pelo Brasil. No seu art. 1, parágrafo 3, a Convenção 169 diz: "A utilização do termo povos nesta Convenção não deverá ser interpretada como tendo qualquer implicação com respeito aos direitos que se possa conferir a esse termo no direito internacional". A vulgarização do termo povos nos textos internacionais está indo pari passu com a exclusão explícita de direitos à soberania. Por sua parte, autodeterminação está sendo interpretada nos mesmos textos como vigência do direito costumeiro interno e participação política dos povos indígenas nas decisões que os afetam, não como reivindicação de soberania. É portanto suspeito, para dizer o mínimo, o grande alarde que se fez na imprensa sobre a ameaça que a Declaração da ONU (que ainda está em rascunho) faria pesar sobre a Amazônia.
Outra variante desse mesmo alarde foi o alegado perigo que a existência de áreas indígenas em faixa de fronteira poderiam representar para a segurança nacional. Curiosamente, esse espectro foi brandido a propósito dos Yanomami e não de outras etnias que também têm população de um lado e de outro das fronteiras. O Senador Jarbas Passarinho, na época Ministro da Justiça, que assinou a Portaria reconhecendo a área Yanomami, tem sido duramente criticado por setores das Forças Armadas. Ele deu a essas críticas, na Revista do Clube Militar (dirigida por ele em 1954 e 55), uma resposta contundente, em que fala o óbvio: "Qual o risco para a soberania nacional? Nenhum. Pode haver, se assim julgar o Governo, e sem nenhuma necessidade de ouvir o Congresso, a instalação de tantos pelotões ou companhias de fuzileiros quantas quisermos". E continua lembrando que as terras indígenas sendo propriedade da União, se houver "superposição com a faixa de fronteira, a União é duplamente proprietária. Ela exerce sua soberania tanto para com os índios quanto para garantir nossa fronteira, assegurando plenamente a integridade do território brasileiro". A Revista do Clube Militar, em nota final ao artigo do Senador Passarinho, declara no entanto que mantém suas críticas.
Especialistas, como o coronel Cavagnari, coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, sublinharam em entrevistas recentes (Folha de S. Paulo, 12 ago. 1993) a funcionalidade de inimigos, seja externos como a ONU ou os EUA, seja internos, como os índios, para a existência e recursos das Forças Armadas, carentes de uma missão desde o fim da Guerra Fria: não há dúvida de que conseguiram, graças a esses inimigos, recursos inesperados e com dispensa de licitação.
Pessoalmente, não gosto de versões conspiratórias, mas fez-me refletir uma notícia recente que veio à tona noNew York Times: testes feitos em 1984 do programa Guerra nas Estrelas nos EUA e cujo êxito teve na época grande repercussão, teriam sido forjados tanto para se obterem mais verbas para o programa do Congresso Americano quanto para impressionarem a União Soviética, levando-a a se arruinar um pouco mais rapidamente na corrida armamentista. Práticas desta ordem, em que o Pentágono e a CIA estariam envolvidos, não seriam, segundo a revista Time (30 ago. 1993, p.28-29), grandes novidades.
Acho que as Forças Armadas, ou pelo menos alguns de seus setores, têm o grande mérito de planejar a longo prazo. É disto que eu gostaria de falar agora, deixando fantasmas de lado. Ou seja, gostaria de discutir alternativas a longo prazo para nosso convívio com as sociedades indígenas.

Alternativas
O grande pomo de discórdia, afastados todos os falsos pretextos, alguns dos quais já evoquei, é o tema da exploração dos recursos minerais e dos recursos hídricos em áreas indígenas. Dadas as atuais condições econômicas, o aproveitamento dos recursos hídricos encontra-se atualmente num limbo, mas a questão mineral está mais viva do que nunca e provavelmente na origem das investidas contra os direitos dos índios.
A Constituição atual prescreve procedimentos especiais quando se trata da exploração de recursos hídricos e minerais em terras indígenas. Não há proibição de explorá-los, mas salvaguardas especiais. Essas salvaguardas consistem na necessidade de autorização prévia do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas que terão participação no resultado da lavra. Atualmente, a situação está congelada, por ser necessária uma lei ordinária regulamentando a matéria. Várias propostas de lei estão tramitando e em recentíssimas reuniões com várias entidades, o Ministério de Minas e Energia tentou apressar as negociações para a regulamentação rápida da questão.
O que está em causa, na realidade, é o modelo que o país deseja para si mesmo e o papel das populações indígenas nesse modelo. Temos hoje, no Brasil, a possibilidade de estabelecer um planejamento estratégico que beneficia o país e abre espaço para um papel importante das populações tradicionais da Amazônia, populações que até agora sempre foram relegadas a um plano secundário, quando não, vistas como obstáculos.
A riqueza da Amazônia não compreende apenas seus minérios, suas madeiras, seus recursos hídricos, mas também sua biodiversidade e os conhecimentos de que se dispõem acerca delas. Um exemplo: há pelo menos umas 250.000 espécies vegetais, das quais cerca de 150 são usadas como alimento; 95% da alimentação mundial repousa sobre apenas 30 espécies o que torna a humanidade particularmente vulnerável, já que o aparecimento de novos vírus pode afetá-las e provocar a fome mundial. Daí decorre a importância estratégica fundamental de bancos genéticos e de sementes que permitem novos pontos de partida. Nos anos 70, uma espécie selvagem de milho foi descoberta no México. Trata-se da única espécie perene de milho e é resistente a doenças. Essa preciosidade foi descoberta in extremis: subsistiam apenas dez hectares de terra no mundo em que ela podia ainda ser encontrada. Mas que foi feito das 30.000 variedades de arroz que os agricultores indianos cultivavam originalmente?
As variedades vegetais evoluem e eventualmente co-evoiuem com microorganismos. A conservação no seu local de origem é tão essencial quanto a conservação nos bancos de germoplasma. Essa conservação não é obra simplesmente da natureza: gerações de cultivadores foram cruciais para descobrir o valor das espécies, selecioná-las e mantê-las até nossos dias. Por isso a FAO, órgão da ONU, reconheceu os direitos dos agricultores (leia-se: populações tradicionais) em virtude de sua contribuição à conservação, melhoria e disponibilidade dos recursos fitogenéticos e estabeleceu um Fundo Internacional para os recursos fitogenéticos que deveriam remunerar essa contribuição.
Estima-se em cerca de um milhão e meio o número de espécies vivas no planeta. Por onde começar a explorar essa riqueza que continuamente diminui antes que possamos realmente avaliá-la? Como descobrir em prioridade as virtudes medicinais de certas espécies? O conhecimento acumulado por gerações de populações tradicionais tem sido o guia mais usado nas pesquisas.
Tudo isto aponta para dois aspectos: primeiro, que a riqueza biológica é uma das mais estratégicas para o século XXI. O germoplasma, segundo o Instituto de Recursos Mundiais em Washington, pode ser o petróleo da Era da Informação (Elkington, 1986 apud Kloppenburg & Vega, 1993). Segundo, que o conhecimento das populações tradicionais, e especialmente das populações indígenas, é fundamental para sua exploração.
O Brasil, como vários países do hemisfério sul, é biologicamente rico. Mas, mais do que a maioria dos países, é rico também em populações que conservam e desenvolvem conhecimentos sobre as espécies vivas. O que parecia pobreza, o pequeno número de indivíduos em cada sociedade indígena, a ênfase na diversidade de produtos e na exploração ampla dos recursos em vez de uma agricultura centrada em poucas espécies, revela-se agora um trunfo.
Até agora, esta informação genética e o conhecimento acumulado sobre a natureza não entraram realmente no mercado. Mas o mundo (e os bancos multilaterais ja o têm demonstrado) está disposto a contribuir para algo que é essencial para todos. E preciso estabelecer ou reforçar os mecanismos para tanto.
Resumindo: em uma perspectiva estratégica, é irracional querer abrir todas as áreas da Amazônia à exploração indiscriminada.
As populações indígenas têm direito a seus territórios por motivos históricos, que foram reconhecidos no Brasil ao longo dos séculos. Mas estes direitos não devem ser pensados como um óbice para o resto do país: ao contrário, são pré-requisito da preservação de uma riqueza ainda inestimada mas crucial. O que se deve procurar, no interesse de todos, é dar as condições para que esta riqueza não se perca. Fazem-se assim coincidir os direitos dos índios com os interesses da sociedade brasileira. Foi nessa mesma perspectiva que a Coordenação Nacional dos Geólogos defendeu na Constituinte (e contra as mineradoras) que as áreas indígenas se tornassem reservas nacionais de recursos minerais, ou seja, as ultimas a serem exploradas.
Para a conservação da riqueza biológica, o raciocínio deveria ser semelhante: em 1990, as áreas ambientais protegidas na Amazônia (federais e estaduais) somavam aproximadamente 17 milhões de hectares. Avalia-se que, se a floresta tropical for preservada apenas nos parques e reservas ambientais existentes, 66% das espécies podem ser extintas. Tanto para evitá-lo quanto para preservar conhecimentos, é preciso estabelecer um novo pacto com as populações indígenas, para que contribuam para a conservação da riqueza brasileira.
Por que é necessário um pacto? Porque, contrariamente à visão ingênua que muitos têm dos índios, não se pode esperar que naturalmente eles se encarreguem desse serviço à coletividade. As sociedades indígenas, vivendo em suas formas tradicionais e em territórios suficientemente amplos, têm preservado e enriquecido seu meio ambiente, já que dependem dele. Muitos têm até mantido, em áreas de devastação como no corredor da Grande Carajás, ilhas de preservação relativa. Mas a pressão externa é grande sobre seus recursos naturais, sejam eles madeira ou recursos minerais, e essa pressão toma a forma de cooptação ou divisão de lideranças. Toma às vezes formas ainda mais graves: há dois meses, no dia 14 de agosto, o chefe nambiquara Pedro Mamaindé, que impedia a venda de madeira da Área Indígena Vale do Guaporé, foi assassinado por outro índio, Sebastião Pareci, o qual, pelo que se sabe, tinha ligações com madeireiras da cidade de Comodoro, no estado do Mato Grosso. É por isso que propostas de regulamentação da mineração, como as que apresenta o Ministério de Minas e Energia, são perigosas. No lugar de verificar a essencialidade para o país de se minerar em determinada área, propõe-se a simples consulta à comunidade, à qual se oferece, por outra parte, substancial remuneração. É fácil prever-se o desfecho de tais ofertas, em comunidades privadas de alternativas.
A floresta amazônica e a biodiversidade interessam ao mundo e o mundo está disposto a pagar por elas. Já há mecanismos como, por exemplo, o Fundo Global de Meio Ambiente, gerido pelo Banco Mundial, que compensa regiões ou países por renunciarem ao aproveitamento imediato de uma riqueza em favor da conservação ambiental. Assim, se Roraima aceitar o desintrusamento de suas áreas indígenas poderá se beneficiar, entre outras coisas, da pavimentação da estrada que liga Manaus à Venezuela ou da construção de pequena hidrelétrica. O que é verdade para o Brasil e para Roraima deve também ser verdade para as sociedades indígenas: ou seja, a elas também se deve compensar, oferecendo alternativas sustentáveis para a obtenção de recursos.
Muitas lideranças indígenas já demonstraram seu interesse referente ao pacto de que estou falando: é o caso em particular do Yanomami Davi Kopenaua, era o caso do chefe Mamaindé assassinado em agosto. Nem mais índios nem menos índios do que os Kaiapó que, renunciando a combater o garimpo que os invadia de todos os lados, resolveram tolerá-lo e taxá-lo.
Volta à surrada idéia do bom selvagem ecológico? Sim e não. Sim, como possibilidade de um papel importante para os índios no nosso futuro comum; não, porque esse papel não repousa sobre alguma essência que lhes seja atribuída. A posição dos índios no Brasil de hoje e de amanhã desenhar-se-á na confluência de várias opções estratégicas, tanto do Estado brasileiro e da comunidade internacional quanto das diferentes etnias. Trata-se de parceria.

Sócio-diversidade
Deixei por último uma questão crucial, a da chamada sócio-diversidade. As culturas constituem para a humanidade um patrimônio de diversidade, no sentido de apresentarem soluções de organização do pensamento e de exploração de um meio que é, ao mesmo tempo, social e natural. Como fez notar Lévi-Strauss em uma conferência feita no Japão há alguns anos, nesse sentido a sócio-diversidade é tão preciosa quanto a bio-diversidade. Creio, com efeito, que ela constitui essa reserva de achados na qual as futuras gerações poderão encontrar exemplos — e quem sabe novos pontos de partida — de processos e sínteses sociais já postos à prova. Este ponto de vista, por mais natural que nos possa parecer hoje, não é auto-evidente. Supõe ter caducado o modelo ingenuamente evolucionista que dominou nossa civilização durante mais de um século e que impregnou o senso comum. O progresso erigiu uma história particular, a nossa, em ponto de chegada da humanidade. Tivemos recentemente na USP uma conferência de Stephen Jay Gould, na qual enfatizou que o sucesso da cadeia evolutiva que culminou nos vertebrados e no homem dependeu apenas de urna loteria, não de uma necessidade. Nada havia de melhor, de mais adaptativo na cadeia que prosperou do que em varias outras cadeias que abortaram. Foi acaso e não necessidade. Com isso, perderam-se formas vivas, algumas muito promissoras. Se quisermos continuar a usar a evolução como paradigma, teremos de avaliar também as nossas perdas sociais: processos desaparecidos e línguas mortas são, como as variedades botânicas extintas ou as cadeias evolutivas que abortaram, possibilidades aniquiladas.
Não se pense que há contradição entre esta perspectiva e a de que as culturas são entidades vivas, em fluxo. Quando se fala do valor da sócio-diversidade, não se está falando de traços e sim de processos. Para mantê-los em andamento, o que se tem de garantir é a sobrevivência das sociedades que os produzem. No início desta conferência mencionei que os sistemas multiétnicos sobredeterminam os sistemas sociais: à lógica interna que os anima acrescentam uma lógica externa que os coloca em relação com outros sistemas. Mas, do mesmo modo que o totemismo não dissolve as espécies vivas, tampouco o sistema multiétnico dissolve as sociedades tradicionais. No nosso mundo atual, ele é, pelo contrário, sua condição de sobrevivência.

Referências bibliográficas
BRAUDEL, Fernand. Civilisation matérielle, economic et capitalisme XV e-XVIIIe siècle. Tome I. Paris, Armand Colin, 1979, 544p.        [ Links ]
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os direitos dos índios. São Paulo, Brasiliense, 1987.        [ Links ]
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DENEVAN, William. The aboriginal population of Amazonia. In: W. Denevan (ed.) The native population of the Americas. The University of Wisconsin Press, p. 205-235.        [ Links ]
ELKINGTON, John. Double dividends? U.S. Biotechnology and Third World Development. WRI Paper n° 2, Washington DC, World Resources Institute, 1986.        [ Links ]
KLOPPENBURG JR., Jack & VEGA, Tirso A. Gonzáles. Prohibido cazar! Expoliación científica, los derechos indígenas y la biodiversidad universal. Comunicação ao Encuentro Internacional. Biotecnologia, Recursos Genéticos y el Futuro de la Agricultura en los Andes. Piura, Perú, Comisión Coordinadora de Tecnología Andina, CCTA, 1992 (no prelo).        [ Links ]


Manuela Carneiro da Cunha é professora titular do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofía, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É autora, entre outros, do livro Antropologia do Brasil —Mito, História, e Etnicidade (São Paulo, Brasiliense-Edusp, 1986), e organizadora de Legislação Indigenista no Brasil (Função Pró-índio de São Paulo-Edusp, 1992).
Conferência do Mês do IEA-USP feita pela autora em 28 de setembro de 1993.



TEXTO 2

O futuro dos índios: entrevista com Manuela Carneiro da Cunha


Por Guilherme Freitas
Muitas vezes vistos como "atrasados" ou como entraves à expansão econômica, os povos indígenas apontam, com seus saberes e seu modo de se relacionar com o meio ambiente, um caminho alternativo para o Brasil, diz a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que lança coletânea de ensaios sobre o tema. Em “Índios no Brasil: História, direitos e cidadania” (Companhia das Letras), ela reúne trabalhos das últimas três décadas sobre temas como a demarcação de terras e as mudanças na Constituição. Nesta entrevista, a professora da Universidade de Chicago, convidada pelo governo federal para desenvolver um estudo sobre a relação entre os saberes tradicionais e as ciências, critica o ‘desenvolvimentismo acelerado’ da gestão Dilma e defende ‘um novo pacto’ da sociedade com as populações indígenas.
                

“Índios no Brasil” é uma compilação de textos publicados desde o início da década de 1980. Ao longo desse período, quais foram as principais mudanças no debate público brasileiro sobre as populações indígenas?

Eu colocaria como marco inicial o ano de 1978, ano em que, em plena ditadura, houve uma mobilização sem precedentes em favor dos direitos dos índios. Na época, o Ministro do Interior, a pretexto de emancipar índios de qualquer tutela, queria “emancipar” as terras indígenas e colocá-las no mercado. O verdadeiro debate centrava-se no direito dos índios às suas terras, um princípio que vigorou desde a Colônia. Nesse direito não se mexia. Mas desde a Lei das Terras de 1850 pelo menos, o expediente foi o mesmo: afirmava-se que os índios estavam “confundidos com a massa da população” e distribuía-se suas terras. Em 1978, tentou-se repetir essa mistificação. A sociedade civil, na época impedida de se manifestar em assuntos políticos, desaguou seu protesto na causa indígena. Acho que o avanço muito significativo das demarcações desde essa época teve um impulso decisivo nessa mobilização popular. Outro marco foi a Assembleia Constituinte, dez anos mais tarde. O direito às terras tendo sido novamente proclamado e especificado, o debate transferiu-se para o que se podia e não se podia fazer nas terras indígenas, e dois temas dominaram esse debate: mineração e hidrelétricas. Muito significativa foi a defesa feita pela Coordenação Nacional dos Geólogos de que não se minerasse em áreas indígenas, que deveriam ficar como uma reserva mineral para o país. Desde essa época, as mudanças radicais dos meios de comunicação disseminaram para um público muito amplo controvérsias como a que envolve por exemplo Belo Monte e hidrelétricas no Tapajós, e situações dramáticas como as dos awá no Maranhão ou dos kaiowá no Mato Grosso do Sul. Creio que a maior informação da sociedade civil mudou a qualidade dos debates. Um tema novo de debates surgiu com a Convenção da Biodiversidade, em 1992, o dos direitos intelectuais dos povos indígenas sobre seus conhecimentos. E finalmente, com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), está se debatendo a forma de colocar em prática o direito dos povos indígenas a serem consultados sobre projetos que os afetam.

Você observa que a população indígena no país aumentou de 250 mil pessoas, em 1993, para 897 mil, segundo o Censo de 2010. A que pode ser atribuído esse aumento? As políticas de demarcação de terras e promoção dos direitos indígenas têm correspondido a ele?

O grande aumento da população indígena se deu no período de 1991 a 2000. Entre 2000 e 2010, o aumento foi proporcionalmente menor do que na população em geral. Só uma parcela desse crescimento pode ser atribuído a uma melhora na mortalidade infantil e na fertilidade. O que realmente mudou é que ser índio deixou de ser uma identidade da qual se tem vergonha. Índios que moram nas cidades, em Manaus por exemplo, passaram a se declarar como tais. E comunidades indígenas, sobretudo no Nordeste, reemergiram. Mas, contrariamente ao que se pode imaginar (e se tenta fazer crer), essas etnias reemergentes não têm reclamos de terras de áreas significativas.

Como avalia a atuação do governo da presidente Dilma Rousseff em relação às populações indígenas, diante das críticas provocadas pela Portaria 303 (que limitaria o usufruto das terras indígenas demarcadas) e o novo Código Florestal, por exemplo?

O Executivo tem várias faces: seu programa de redistribuição de renda está sendo um sucesso; mas seu desenvolvimentismo acelerado atropela outros valores básicos. Além disso, o agronegócio só tem aumentado seu poder político, o que desembocou no decepcionante resultado do aggiornamento do Código Florestal em 2012. O governo tentou se colocar como árbitro, mas ficou refém de um setor particularmente míope do agronegócio, aquele que não mede as consequências do desmatamento e da destruição dos rios. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências, em vários estudos enviados ao Congresso e publicados, apresentaram as conclusões e recomendações dos cientistas. Foram ignoradas. Agora acaba de sair um estudo do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) que reitera e quantifica uma das recomendações centrais desses estudos. Para atender à demanda crescente de alimentos, a solução não é ocupar novas terras, e sim aumentar a produtividade, particularmente na pecuária, responsável pela ocupação de novos desmatamentos. O governo tem um papel fundamental a desempenhar: cabe a ele estabelecer segurança, regularizando o caos que hoje reina na titulação das terras no Brasil. Basta ver que, como se noticiou há dias, as terras tituladas no Brasil ultrapassam as terras que realmente existem em área equivalente a mais de dois estados de São Paulo. Um cadastro confiável é perfeitamente possível, é preciso vontade política para alcançá-lo. Você perguntou especificamente pela Portaria 303/2012, da Advocacia Geral da União, que pretende abusivamente estender a todas as situações de terras indígenas as restrições decididas pelo STF para o caso complicadíssimo de Raposa Serra do Sol em Roraima. Ela é mais um sintoma de tendências contraditórias dentro do Executivo, que, por um lado, conseguiu “desintrusar” pacificamente uma área xavante, mas, por outro lado, admite uma portaria como essa. Ela é um absurdo, e não é à toa que foi colocada em banho-maria pelo governo. Foi suspensa, mas não cancelada… A própria Associação Nacional dos Advogados da União pediu em setembro sua revogação e caracterizou sua orientação como “flagrantemente inconstitucional”. Essa portaria também fere pelo menos quatro artigos da Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Em um ensaio da década de 1990, você já falava sobre a disputa por recursos minerais e hídricos em áreas indígenas. Acredita que essas disputas estão mais acirradas hoje?

Já na Constituinte, em 1988, esses dois temas foram centrais. Chegou-se a um compromisso, que estipulava condições para acesso a esses recursos: ouvir as comunidades afetadas e autorização do Congresso Nacional (artigo 231 parágrafo 3). A disputa não mudou, mas o ambiente político atual favorece uma nova ofensiva da parte dos que nunca se conformaram. E assim surgem novas investidas no Congresso: projetos de lei para usurpar do Executivo a responsabilidade da demarcação das terras e para abrir as áreas indígenas à mineração. Por sua vez, Belo Monte foi enfiado goela abaixo de modo autoritário: o Executivo atropelou a consulta prévia, livre e informada a que os índios têm direito, e não foram cumpridas condicionantes essenciais acordadas, por exemplo no tocante ao atendimento à saúde indígena.

No ensaio sobre a política indigenista do século XIX, você mostra como naquele momento se consolidou uma visão dos índios como povos “primitivos” que teriam por destino serem incorporados ao “progresso” ocidental. Até que ponto essa ideia persiste hoje?

Essa visão está cada vez mais obsoleta: a noção triunfalista de um progresso medido por indicadores como o PIB é hoje seriamente criticada. Valores como sustentabilidade ambiental, justiça social, desenvolvimento humano e diversidade são parte agora do modo de avaliar o verdadeiro progresso de um país. Por outra parte, no século XIX, positivistas e evolucionistas sociais puseram em voga a ideia de uma marcha inexorável da História: qualquer que fosse a política, os índios estariam fadados ao desaparecimento, quando não simplesmente físico, pelo menos social. Essa também é uma falácia que a História ela própria desmistificou: os índios, felizmente, estão aqui para ficar. A História não se faz por si, são pessoas que fazem a História, e seus atos têm consequências. Usa esse entulho ideológico quem carece de argumentos.

No ensaio “O futuro da questão indígena”, você defende a necessidade de “um novo pacto com as populações indígenas” e aponta a “sociodiversidade” como “condição de sobrevivência” para o mundo. Como define “sociodiversidade”, e o que seria esse “novo pacto”?

O Brasil não é só megadiverso pela sua grande diversidade de espécies, ele também é megadiverso pelas sociedades distintas que abriga. Segundo o censo do IBGE de 2010, há 305 etnias indígenas no Brasil, que falam 274 línguas. Essa sociodiversidade é, segundo Lévi-Strauss, um capital inestimável de imaginação sociológica e uma fonte de conhecimento. Um mundo sem diversidade é um mundo morto. E quanto ao pacto com as populações indígenas que evoco, trata-se do seguinte: os índios que conservaram a floresta e a biodiversidade até agora (basta ver como o Parque Nacional do Xingu é uma ilha verde num mar de devastação) estão sujeitos a grandes pressões de madeireiras e de vários outros agentes econômicos. Nada garante, se as condições não mudarem, que possam continuar nesse rumo. Para o Brasil, que precisa com urgência de um programa de conservação da floresta em pé, um pacto com as populações indígenas para esse fim seria essencial.

Na Rio+20, você participou de um painel sobre as contribuições dos saberes indígenas para as ciências. O que pode ser feito para possibilitar esse diálogo?

O conhecimento das diversas sociedades indígenas pode continuar a trazer contribuições da maior relevância para temas como previsão e adaptação a mudanças climáticas, conservação da biodiversidade, ecologia, substâncias com atividade biológica, substâncias com possíveis usos industriais e muitos outros. Isso já está reconhecido e posto em prática no âmbito da Convenção pela Diversidade Biológica e no Painel do Clima, por exemplo. Poder-se-ia pensar que bastaria recolher essas informações e usá-las na nossa ciência quando úteis. Mas há outra dimensão importante desses saberes, que é seu modo específico de produzir conhecimento. Essa diversidade nos permite pensar diferentemente, sair dos limites de nossos axiomas. Não se trata, como fazem certos movimentos new age, de atribuir um valor superior aos conhecimentos tradicionais; não se trata de aderir a eles. Tampouco se trata de assimilá-los e diluí-los na ciência acadêmica. A importância de modos de conhecimento diferentes é nos fazer perceber que se pode pensar de outro modo. Foi abandonando um único postulado de Euclides que Lobatchevski e Bolayi viram de modo inteiramente novo a geometria. Por isso o diálogo dos diferentes sistemas de conhecimentos entre si e com a ciência deve preservar a autonomia de cada qual. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, via CNPq, encomendou-me um estudo para lançar as bases de um novo diálogo entre ciência e sistemas de conhecimentos tradicionais. Não é simples. Mas desde já sabemos que isso implicará formas institucionais que empoderem os vários parceiros. Um projeto-piloto que está sendo planejado nesse contexto responde a uma das diretrizes da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que faz parte do Tratado sobre Recursos Fitogenéticos. Trata-se da conservação da diversidade agrícola de cultivares de mandioca, sob a condução de populações indígenas do Rio Negro. A escolha não é por acaso. As agricultoras do médio e do alto Rio Negro conseguiram manter, criar e acumular centenas de variedades de mandioca.

Como interpreta mobilizações populares recentes em torno de causas indígenas, como aconteceu em favor dos guarani kaiowá?

Acho salutares essas mobilizações que, como já disse, são fruto de uma nova era na informação. Diante do recuo político nas questões ambiental, indígena e quilombola, há vozes que se levantam com indignação. A situação trágica dos guarani kaiowá, pontuada por suicídios de jovens, é emblemática do absurdo que seria a aplicação da Portaria 303/2012. Uma ampliação mais do que justa de suas terras — já que as que lhes garantiram não correspondem ao que determina o artigo 231 da Constituição — levaria a colocar em risco as poucas terras que têm. Os suicídios kaiowá atingem cada um de nós: somos todos kaiowá.


Manuela Carneiro da Cunha

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha (Cascais16 de julho de 1943) é uma antropóloga luso-brasileira.
Graduou-se em matemática pura na Faculté des Sciences de Paris em 1967. Três anos depois, ingressou na pós-graduação em antropologia social na Universidade Estadual de Campinas.
Ao final da década de 1970, engajou-se na questão indígena. Foi cofundadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo, que presidiu de 1979 a 1981. 1 .
Leciona na Universidade de São Paulo desde 1984. No Departamento de Antropologia, fundou o Núcleo de História Indígena e do Indigenismo 2 . Também lecionou na Universidade de Chicagoaté 2009.
Foi também presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) entre 1986 a 1988.
Publicou vários livros, sendo os mais destacados Direito dos Índios (São Paulo, Brasiliense, 1987) e a organização de História dos Índios no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras/Secretaria Municipal de Cultura/Fapesp, 1992).
Em 2002 recebeu a comenda brasileira da Ordem Nacional do Mérito Científico3 .


TEXTO 3
Tutela nunca mais

Autodeclaração é a maior conquista recente dos indígenas, mas eles são vistos ainda como entraves para o progresso

Clarice Cohn

Os índios brasileiros não verão a chegada do século XXI. Assim previa o antropólogo Darcy Ribeiro, enquanto escrevia Os índios e a civilização (1970). A profecia do indigenista não se concretizou. Ao contrário: é crescente a presença demográfica e política dos povos indígenas brasileiros. O que teria acontecido?
Não foi um erro de Darcy. Em sua obra, ele fez uso das mais extensas informações estatísticas e demográficas disponíveis à época, tiradas do Serviço de Proteção dos Índios (SPI), onde trabalhava, e utilizou um moderno arsenal interpretativo para avaliar a situação. O que mudou de lá para cá foram as garantias legais que protegem esses povos, e o modo como se pensa e se reconhece hoje a própria condição indígena.
Na década de 1950, o Estado brasileiro via o índio como alvo de uma inevitável e gradativa integração à sociedade nacional. Desde o Marechal Rondon e a criação do SPI, em1910, estabeleceu-se que o papel do governo seria tornar essa marcha para a civilização a mais indolor possível. Criaram-se Frentes de Atração e Pacificação, postos indígenas nas aldeias e todo um aparato institucional para que o Estado pudesse tutelar o índio. Os indigenistas funcionários do SPI (depois Funai) deveriam garantir que essa transição se desse de modo mediado e sem violência. Ao fim, ele se tornaria um índio integrado, indistinto no meio dos demais brasileiros.
A própria ideia de tutela é uma continuidade histórica, uma resposta à difícil pergunta de qual deve ser o status dos primeiros habitantes das terras brasileiras. Trata-se de cidadãos de segunda classe, condição semelhante à dos órfãos no século XIX: ambos necessitam de um responsável perante a lei. O Estado tutor é aquele que decide pelos índios e, sob pretexto de cuidar deles, os mantém sob controle. Aquele era também o tempo em que se começava a pôr em prática a ideia de territórios indígenas, nos quais poderiam dar continuidade a seus modos de vida sob a proteção (ou o controle) do Estado. Era este também responsável por definir quem é índio ou não.
A mudança mais importante nesse quadro foi a Constituição de 1988, que reconhece o direito dos índios às suas terras e à cidadania plena. Esse avanço jurídico só pôde ocorrer por conta da mobilização indígena e de sua atuação junto a aliados na Assembleia Constituinte. Imagens da época mostram a presença maciça de representantes indígenas acompanhando os debates e a votação da nova Constituição.
O direito a terra, reconhecido como originário, evita um antigo dilema dos índios: tendo sido muitos deles obrigados, pela colonização, a se embrenharem cada vez mais para o interior, nem sempre era fácil comprovar sua ocupação histórica e tradicional. Agora se deixa de procurar vestígios da ocupação milenar para se estudar seu território atual, designando-lhes uma porção suficiente para sua sobrevivência física e cultural. “Há muita terra para pouco índio”, dizem os críticos. Ou, mais grave: “Eles estão tomando conta do território nacional”. A primeira acusação não merece crédito, em um país de latifundiários. Quanto à segunda, vale lembrar algo que muitas vezes é omitido: os territórios indígenas demarcados pelo Estado brasileiro são terras alienáveis da União, cedidas aos índios em regime de usufruto, ou seja, eles não têm a posse das terras: ganham o direito de nelas residir e fazer uso das riquezas do solo e das águas para viver.
Incorporados aos sistemas nacionais de educação escolar e saúde, os índios passaram a compartilhar direitos universais de todos os cidadãos. Têm também garantido o direito de que estes serviços respeitem suas culturas e organizações sociais e políticas. A educação indígena é regulamentada por diversas legislações, a começar pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Garante-se o direito ao ensino bilíngue, aos próprios processos de ensino e aprendizagem, à cultura e aos conhecimentos indígenas, além de poderem desenhar seus próprios currículos e rotinas escolares com gestão indígena e professores indígenas. Na prática, em sistemas de ensino engessados, isso nem sempre é tão fácil. Mas os direitos existem e demarcam as políticas.
Em linhas gerais, o mesmo vale para a saúde. Antes atendidos por um serviço da Funai, os índios agora são integrados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Como a educação escolar indígena, em muito se ganha no respeito às culturas e às práticas indígenas. Da mesma forma, a aplicação desses princípios é um desafio, assim como a formação e a contratação de pessoal especializado e a operação do sistema.
Mesmo com tantas conquistas, diversas violações aos direitos indígenas permanecem. A começar pelo direito a terra. Quando promulgada a Constituição, o Brasil teria cinco anos para demarcar todas as terras indígenas. Até hoje isso não aconteceu. E muitas terras demarcadas se transformam em uma espécie de confinamento – em especial, as áreas devassadas e ocupadas pela monocultura.
Permanece a visão de que os índios são um empecilho ao desenvolvimento nacional. Suas terras têm sido cada vez mais ameaçadas por projetos de criação de hidrelétricas, pela construção e pelo asfaltamento de estradas que cruzam suas terras, por projetos de mineração. A hidrelétrica de Belo Monte é um caso exemplar entre tantos outros, em praticamente todos os rios amazônicos. Nisso, parece que a história se repete. Darcy dizia que os índios são atingidos por algumas frentes de expansão e colonização do território: a extrativista, a agrícola e a pecuária. Entre hidrelétricas, projetos de mineração, fazendas de gado e grandes plantações de monocultura, o Brasil está sacrificando sua diversidade ecológica, biológica, social e cultural. E os índios, frequentemente, são vistos como os bandidos desta história.
Ao longo do tempo, foram superadas as dificuldades em reconhecer sua humanidade, sua liberdade (direito a não escravização) e sua capacidade (direito a não serem tutelados). Resta, hoje, a questão das identidades étnicas.
A diversidade étnica baseia-se no autorreconhecimento e na autoidentificação. É índio aquele que se reconhece como tal, e é reconhecido por uma comunidade indígena como seu membro. Assim, evita-se o arbítrio de ter um terceiro definindo a “indianidade” de qualquer pessoa – porque se estes, como foram a Funai ou o SPI por tanto tempo, podem afirmar a identidade indígena, podem também, com frequência e de modo arbitrário, negá-la. O Brasil ratificou em 2000 a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), segundo a qual a identidade dos povos indígenas só pode ser autodeclarada – e não mais atribuída. Por isso, não há critérios fixos para definir essa identidade.
Assistimos ao que parece ser o ressurgimento de grupos indígenas. Isto se dá porque comunidades que tiveram que praticar sua diversidade cultural e étnica em silêncio e às escondidas finalmente podem vir a público, dadas as garantias legais. Por muito tempo, ser índio no Brasil significou ser reduzido às missões, escravizado, ser alvo de discriminação e até de chacinas. Diversos povos foram obrigados a abrir mão de suas línguas e de muitos costumes que eram importantes para eles. Voltam agora a afirmar sua diferença, a ver reconhecida sua identidade e a recuperar muito do que perderam.
Mas a condição de indígena só faz sentido em contraponto ao Estado nacional. Os índios são muito diversos entre si, em comum eles têm sua diferença em relação aos não indígenas. Assim, hoje todos se descobrem parte de algo que é maior do que suas identidades particulares: sua condição indígena. Dos yanomamis embrenhados na selva aos kayapós emplumados e aos indígenas do Nordeste que perderam suas línguas, todos igualmente assumem esta condição.
Não vale para eles acusações de artificialidade: não há nada que defina um índio, a não ser seu reconhecimento e o de seus pares de que ele o é. E esta é uma das maiores conquistas do Brasil contemporâneo, de que todos temos que nos orgulhar.

Clarice Cohn é antropóloga, professora da Universidade Federal de São Carlos e autora da tese  “Relações de Diferença no Brasil Central: os Mebengokré e seus Outros” (USP, 2006)


TEXTO 4

  • Os povos indígenas à luz da Constituição Federal de 1988: os direitos do índio sobre a terra


TEXTO 5


  • Vários textos

TEXTO 6

Indígena terena baleado corre sério risco de ficar tetraplégico

A bala que atingiu Josiel Gabriel Alves cortou o nervo da cervical e ele tem mínimas chances de voltar a andar ou movimentar as pernas e os braços
06/06/2013

Patrícia Bonilha,
de Brasília (DF)
Cimi

O projétil que atingiu o indígena Josiel Gabriel Alves, 34 anos, cortou o nervo da cervical e ele tem mínimas chances de voltar a andar ou movimentar as pernas e os braços, informou na manhã da quarta-feira (05) um dos médicos da Santa Casa de Campo Grande (MS). Baleado nas costas na terça-feira (04) à tarde, na fazenda São Sebastião, em Sidrolândia (MS), ao chegar ao hospital à noite, Josiel disse que não sentia nem as pernas nem as costas, mas estava consciente e conversando normalmente. Neste momento, ele está inconsciente, sob efeito de medicamentos, e o seu quadro é estável. Os médicos aguardam os resultados de alguns exames e a reação do seu próprio organismo para realizarem a cirurgia de retirada da bala. Somente com a chegada de um assessor do Ministério da Justiça, Marcelo Veiga, por volta das 10h de quarta-feira, é que foi possível à família de Josiel obter informações claras sobre o seu estado de saúde.
Na semana passada, nesta mesma região, o indígena Terena, Oziel Gabriel, 35, morreu em confronto com policiais federais e militares na tentativa de cumprimento da reintegração de posse da fazenda Buriti. Apesar da ação policial ter tido um desfecho trágico e estar sob investigação, o governo federal anunciou na terça-feira à noite o envio da Força Nacional e o aumento do efetivo da Polícia Federal (PF) na região.
Segundo os indígenas, na tarde de terça, na tentativa de uma retomada da fazenda São Sebastião, um grupo de 60 indígenas foi comunicado por um capataz que eles poderiam entrar porque o fazendeiro já iria sair com o gado. No entanto, quando eles entraram, os indígenas foram surpreendidos pela descida de uma caminhonete em que os seguranças chegaram atirando.
Tentando fugir do atentado, Josiel foi atingido por trás, um pouco abaixo do pescoço e a bala se alojou em sua cervical. Após os primeiros atendimentos no hospital municipal de Sidrolândia, devido à gravidade do quadro, ele foi transferido para ser operado em Campo Grande. Chegou a ser circulada a informação de que quatro indígenas estariam desaparecidos, mas todos foram localizados e já estão junto ao grupo indígena novamente. As duas fazendas, Buriti e São Sebastião, ficam dentro da Terra Indígena Buriti, reconhecida em 2010 pelo Ministério da Justiça como de posse permanente do povo Terena.
A missionária do Conselho Indigenista (Cimi) na região, Lídia Farias, afirma que o clima está bastante tenso. "Apenas um dia após o enterro do Oziel, outro indígena, Josiel, foi baleado. Os Terena estão vivendo profundamente essa dor e essa violência. É ingrato pensar que precisou um indígena morrer para a presidente Dilma anunciar que vai recebê-los. Por outro lado, as lideranças afirmam que os indígenas estão dispostos a ir até o final para garantir os direitos às suas terras tradicionais", declara ela.

Esquecida reforma agrária
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo veiculada na quarta-feira (5), "os indígenas de Mato Grosso do Sul dispõem de áreas bastante pequenas, superpovoadas e próximas dos centros urbanos". Os dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) explicitam que enquanto os indígenas não conseguem recuperar suas terras tradicionais, há uma grande concentração de terras nas mãos de alguns latifundiários na região.
Com uma população de 28 mil indígenas, os Terena ocupam cerca de 20 mil hectares no estado. Duas terras indígenas na região de Sidrolândia, Buritizinho e Tereré, com população de 320 e 400 indígenas, respectivamente, têm a extensão de dez hectares cada. Só a fazenda Buriti, de propriedade do ex-deputado estadual Ricardo Bacha, tem cerca de 6.300 hectares e a fazenda Aquidauana, também localizada na terra indígena tradicional, tem 4.100 hectares.
Ao invés de centrar esforços para a realização de uma reforma agrária, como era uma das prioridades do projeto original do atual governo, a proposta apresentada no mês de maio pela ministra-chefe da Casa Civil, Gleisy Hoffmann, foi a de reformulação nos procedimentos de demarcação de territórios indígenas e a suspensão dos mesmos.
Em carta à presidente Dilma, um grupo de integrantes de organizações de direitos humanos, dentre eles o reconhecido jurista Dalmo Dallari, afirmou na terça que "no Mato Grosso do Sul a não solução da demarcação das terras indígenas é uma das várias guerras de baixa intensidade que vivemos em nosso país. São centenas de milhares de pessoas atingidas e a mudança de rito de tramitação da demarcação de terras indígenas, abrindo à consulta e apreciação os laudos antropológicos produzidos pela FUNAI para setores antagônicos à demarcação, contrariamente o que pensa a Casa Civil, só trará mais resistência indígena e mais conflitos".
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, chegou em Campo Grande na manhã de quarta e sobrevoou a área demandada pelos indígenas com o governador André Puccinelli (PMDB). Atendendo a um pedido do governador, Cardozo afirmou à imprensa que a Força Nacional estará submetida ao comando da Polícia Militar e da Secretaria de Segurança do estado. O governo de Puccinelli tem um claro posicionamento a favor dos fazendeiros da região e sempre intercede no sentido de atender as demandas deles, em detrimento do respeito aos direitos dos indígenas de retomarem suas terras tradicionais. No final da manhã de quarta, Cardozo se reuniu com três lideranças do povo Terena. Outros 40 indígenas estavam na base aérea de Campo Grande.

Indígenas como alvo de violência
Em nota à imprensa, o Ministério Público federal afirmou que "falta vontade política para solucionar a questão indígena em Mato Grosso do Sul". De acordo com a nota, além da omissão do Estado, o trato da questão indígena pelo Judiciário também demonstra despreparo na condução dos conflitos.
Segundo o procurador da república, Emerson Kalif Siqueira, não se trata a questão indígena como caso de polícia. "Se forem necessárias horas ou dias de conversa e negociação, que se explique, enfatize, converse, negocie. O que não se pode é deixar que a inapetência da polícia - que não tem experiência em conflitos rurais - transforme populações tradicionais em alvo de violência", declarou ele.
A reintegração de posse da fazenda Buriti prevista para ser realizada na quarta-feira até às 9h foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). O desembargador José Lunardelli determinou a suspensão da retirada dos indígenas até que a discussão sobre a posse da terra seja encerrada definitivamente na Justiça.

 TEXTO 7

Polícia impede indígenas de entregar carta à Dilma no Palácio do Planalto

06/06/2013

Ruy Sposati
de Brasília (DF)

Cerca de 150 indígenas tentaram entrar no Palácio do Planalto, sede do governo federal em Brasília, para entregar uma carta à presidente da República Dilma Rousseff, mas foram impedidos pela polícia. Ao menos 50 homens da polícia legislativa, Polícia Federal e Polícia Militar forçaram o grupo com violência para fora da casa de governo. Os indígenas, que permaneceram por três horas na entrada do Palácio, protestam contra a violação de direitos promovida por grandes empreendimentos hidrelétricos na Amazônia.
Indígenas Munduruku, Xipaya, Arara e Kayapó que ocuparam por 17 dias o principal canteiro de obras de Belo Monte chegaram à Brasília na última terça-feira, quando se reuniram com diversos representantes do governo federal. “Nós ficamos muito insatisfeitos. Não gostamos nada”, afirma o guerreiro Adalto Munduruku, referindo-se à afirmação do ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, de que serão construídas todas as hidrelétricas planejadas pelo governo nas terras indígenas dos rios Teles Pires, Tapajós e Xingu.
“Nós queremos agora saber se o governo vai garantir ou não o nosso poder de veto na consulta. Isso é o que importa pra gente”, garante o indígena. O grupo demanda a paralização das obras das barragens de Belo Monte e Teles Pires e a suspensão dos estudos das hidrelétricas do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, até que, em todos os casos, seja realizada consulta prévia com direito a veto. O governo se recusou a recebê-los. O representante da Secretaria Geral, Tiago Garcia, estava no local, mas também não dialogou com os indígenas.
Ainda pela manhã, o grupo se encontrou com um grupo de 50 indígenas Terena, também com agenda em Brasília com o ministro Gilberto Carvalho na tarde desta quinta. À tarde, os indígenas protocolaram a carta recusada pelo Planalto no gabinete da presidência do Senado e da Câmara, reafirmando a posição contrário dos indígenas à construção de hidrelétricas nos três rios.

Demarcação
Indígenas Xipaya que participam dos protestos em Brasília protocolaram hoje na Fundação Nacional do Índio (Funai) um documento denunciando o “esquecimento” da Terra Indígena Xipaya do Jericoá no escopo das condicionantes da Usina Hidrelétrica Belo Monte. Eles cobram do orgão indigenista a criação de um grupo de trabalho que realize o trabalho de demarcação da área, localizada na Volta Grande do Xingu, principal trecho do rio afetado pela barragem.


TEXTO 8

“O vínculo dos Terena de Buriti com a terra que reivindicam é histórico e cultural”

“O Estado deve assumir o ônus de ter titulado terras indígenas em nome de particulares”, assinala o antropólogo Levi Marques-Pereira

06/06/2013


“O governo tem se mostrado omisso com o problema fundiário dos indígenas em Mato Grosso do Sul. (...) A questão é sempre tratada como problema pontual, o que é um equívoco. São dezenas de comunidades reivindicando a demarcação de seus territórios, Buriti é apenas um desses casos, o que está na mídia nesse momento”. A avaliação é de Levi Marques-Pereira, professor na Universidade Federal da Grande Dourados, e que está acompanhando os conflitos entre fazendeiros e os índios Terenas, que reivindicam a ocupação de Buriti.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, o antropólogo explica como aconteceu o processo de ocupação e desocupação da Terra Indígena de Buriti. Segundo ele, o Serviço de Proteção aos Índios – SPI, ao organizar os indígenas em reservas, tinha dois objetivos:
“a) liberar as terras indígenas para a ocupação de particulares, interessados em requerer terras na região;
b) incorporar a população indígena na categoria de ‘trabalhadores nacionais’, que seriam incorporados nas atividades produtivas que se implantariam na região”.
De acordo com ele, “na lógica de atuação do SPI, não fazia sentido demarcar terras indígenas de maior extensão, suficientes para a reprodução dos indígenas de acordo com seus usos, costumes e tradições. Segundo o imaginário da época, a condição de indígena era vista como transitória, pois se acreditava que em pouco tempo os indígenas se convenceriam das vantagens da civilização e abandonariam suas práticas culturais”.
A modernização do campo, a partir da década de 1970, explica, impôs a “retirada total das famílias, obrigadas a se recolherem na área de acomodação de 2.090 hectares, constituída como reserva em 1926”. Somente mais de 70 anos depois, em 2001, a Funai reconheceu o direito dos Terena de Buriti sobre uma área de 17.200 hectares. “A partir de então a região tem vivido forte tensão, com os Terena pressionando para que o governo conclua o processo de regularização de suas terras de ocupação tradicional”, menciona.
Levi Marques-Pereira é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, especialista em História da América Latina pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP, e pós-doutor em Antropologia Social pela Unicamp. É professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados, onde participa dos programas de pós-graduação em Antropologia e História. Realizou perícias para a justiça (estadual e federal) e trabalhos técnicos para governos, Unicef e Unesco. Atua também em estudos de licenciamento ambiental.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a situação dos índios Terena que vivem no Mato Grosso do Sul? Do mesmo modo que os Guarani, eles também estão confinados?
   
   O antorpólogo Levi Marques-Pereira - Foto: Reprodução
Levi Marques-Pereira – Sim, o processo de expropriação dos territórios de ocupação tradicional dos Terena é semelhante ao que aconteceu com os Guarani e os Kaiowá que vivem no sul do MS. O compartilhamento dessa história de submissão neocolonial comum tem até aproximado as lideranças desses grupos étnicos, que mutuamente se apoiam na luta pela reconquista de seus territórios. Esses grupos étnicos foram objeto da mesma política governamental de recolhimento em reservas, com extensões diminutas de terra. A intenção do Serviço de Proteção aos Índios – SPI, o órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, era reunir em reservas a população de diversas comunidades. Antes de serem expulsas de suas terras, as comunidades indígenas radicavam suas aldeias por uma extensão de terra muito ampla.
Dois objetivos orientavam essa política de recolhimento em reservas:
a) liberar as terras indígenas para a ocupação de particulares, interessados em requerer terras na região;
b) incorporar a população indígena na categoria de “trabalhadores nacionais”, que seriam incorporados nas atividades produtivas que se implantariam na região.
Na lógica de atuação do SPI, não fazia sentido demarcar terras indígenas de maior extensão, suficientes para a reprodução dos indígenas de acordo com seus usos, costumes e tradições. Segundo o imaginário da época, a condição de indígena era vista como transitória, pois se acreditava que em pouco tempo os indígenas se convenceriam das vantagens da civilização e abandonariam suas práticas culturais. Entretanto, passado um século, os indígenas continuam se apresentando enquanto grupos étnicos diferenciados e reivindicando o direito de ocupação dos territórios dos expropriados no processo de expansão das frentes econômicas.

Pode nos contar como ocorreu o processo de ocupação da Terra Indígena Buriti pelos índios Terena? Como ocorreu, ao longo dos anos, a luta pela ocupação e reconhecimento dessa terra?
O histórico da ocupação da Terra Indígena Buriti pelos índios Terena foi descrito em livro que apresenta os resultados da perícia judicial realizada por mim e pelo prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira, disponível em PDF.
A partir da última década do século XIX se inicia o processo de ocupação das terras até então ocupadas pelos Terena na região de Buriti. A titulação das terras se estende até as primeiras décadas do século XX, mas a expulsão dos Terena foi gradativa, se prolongando pelo menos até a década de 1970. Em muitos casos os próprios Terena foram incorporados nos trabalhos de formação de fazendas sobre os seus territórios, já que essa se tornava a única alternativa, além de constituir uma estratégia para permanecerem em seus territórios.
No entanto, a modernização do campo, principalmente a partir da década de 1970, impôs a retirada total das famílias, obrigadas a se recolherem na área de acomodação de 2.090 hectares, constituída como reserva em 1926. Essa retirada das famílias não foi pacífica, muito índios reagiram e buscaram recursos juntos ao próprio SPI e depois à Funai, mas prevaleceram os interesses dos particulares que requereram e titularam as terras dos Terena. Só em 2001, depois de muita pressão dos Terena, a Funai publica o resultado do estudo coordenado pelo antropólogo Gilberto Azanha, reconhecendo o direito dos Terena de Buriti sobre uma área de 17.200 hectares. A partir de então a região tem vivido forte tensão, com os Terena pressionando para que o governo conclua o processo de regularização de suas terras de ocupação tradicional.

A Terra Indígena Buriti foi declarada, em 2010, pelo Ministério da Justiça como de ocupação tradicional. Entretanto, dos 17 mil hectares reconhecidos, os índios ocupam hoje apenas 3 mil hectares. Quais as razões disso? Qual é a situação legal desta Terra Indígena?
Nos processos judiciais envolvendo o reconhecimento de terras indígenas em MS, sistemática e reincidentemente a Justiça Federal, em primeira instância, costuma dar ganho de causa aos portadores de títulos de propriedade. O Ministério Público Federal e a Funai costumam recorrer dessas decisões e, em muitos casos, conseguem a revisão da sentença em tribunais superiores. O problema é a fragilidade do ato administrativo da publicação do relatório no Diário Oficial da União ou da Portaria Declaratória do Ministro da Justiça, que não são suficientes para assegurar a posse da terra por parte dos indígenas. Mesmo quando o presidente da República homologa o processo administrativo, ações judiciais impedem a posse indígena.
O histórico das reocupações indígenas e das desocupações por ordem judicial indica que o cumprimento das ações de reintegração de posse não encerra a questão. Os índios são retirados por forças policiais, mas em pouco tempo acabam retornando. Dessa forma, índios e proprietários ficam expostos a um conflito interminável, que pode durar anos ou décadas. É urgente a construção e uma solução. Ao que tudo indica, a solução definitiva só virá quando os indígenas retornarem às suas terras e os atuais proprietários receberem a indenização do Estado.

Após a morte de Oziel Gabriel, a presidente Dilma disse que a solução do conflito se tornou “prioridade” para o governo. Como vê essa declaração?
O governo tem se mostrado omisso com o problema fundiário dos indígenas em MS. Essa postura não é só do governo atual, mas também dos que o antecederam. A questão é sempre tratada como problema pontual, o que é um equívoco. São dezenas de comunidades reivindicando a demarcação de seus territórios, Buriti é apenas um desses casos, o que está na mídia nesse momento. Mesmo que se descubra uma solução para esse caso, outros continuarão surgindo enquanto não se descobrir uma solução para todos eles.

Entre as mudanças sugeridas recentemente pelo governo está a proposta da ministra Gleisi Hoffmann, de que as demarcações das terras indígenas recebam pareceres da Embrapa. Como valia essa medida?
Esta solução é velha. No início da década de 1990, enquanto não havia legislação que regulamentava os artigos da Constituição de 1988, os quais regulam a demarcação de Terras Indígenas, algumas terras foram demarcadas por equipes compostas por técnicos de vários ministérios e sem orientação antropológica. Em MS o resultado foi desastroso. Terras Indígenas como Jaguary, Sucuri’y e Jarará foram demarcadas por grupos técnicos dessa natureza e não contemplaram as expectativas dos índios em relação às terras tradicionalmente ocupadas. Tais demarcações geram insatisfações e reclamações até hoje. É difícil imaginar qual parecer a Embrapa poderá emitir e como seria a contribuição que daria aos estudos.

Como entender o conflito pela posse de terras entre índio e não índio? Qual a importância que a terra e o território têm para os índios?
O vínculo dos Terena de Buriti com a terra que reivindicam é histórico e cultural. Tal vínculo recebeu o reconhecimento da Funai e do Ministério da Justiça, que acataram os estudos técnicos realizados. Os indígenas estão cada vez mais conscientes dos direitos territoriais a eles assegurados. Se no passado foram constrangidos a deixar seus territórios por conta das pressões de particulares que titularam as terras por eles ocupadas, atualmente demonstram firme propósito em reaver seus territórios de ocupação tradicional, nos quais nunca deixaram de transitar, mesmo que em expedições clandestinas de caça, pesca ou coleta. Também muitas famílias permaneceram residindo nesses locais até poucos anos, assumindo a condição de peões de fazenda. Essas estratégias permitiram manter os vínculos com o território.
O conflito se tornou visível quando os indígenas assumiram a intenção de romper a aparente aceitação do confinamento na reserva e passaram a reocupar seus territórios. Os proprietários estranham muito essa mudança de postura. Muitos acreditam que ela se deve à interferência de atores externos, interessados em romper a paz no campo. Tal proposição não se sustenta, até porque em MS existem cerca de 800 acadêmicos indígenas, muitos já formados em cursos de graduação, mestrado e doutorado. Para se ter ideia, um advogado terena acompanha o processo judicial em Buriti, então como supor que eles não seriam sujeitos políticos plenamente capacitados para defender seus interesses?

Como esses conflitos são vistos pela população sul-mato-grossense?
Um estudo realizado por pesquisadores de demografia da Unicamp constatou que MS é o estado com mais preconceito em relação aos indígenas. Em geral, a população sul-mato-grossense não gosta dos indígenas nem manifesta disposição em reconhecer seus direitos. A visão dos opositores dos indígenas, diretamente envolvidos nos conflitos fundiários, tende a se projetar como hegemônica em MS. Entretanto, os indígenas recorrem ao recurso das redes sociais na internet para divulgarem suas demandas, interesses e perspectivas. Mesmo em MS eles conseguem apoiadores, muito tímidos é verdade, por conta das enormes pressões exercidas pela predominância dos interesses anti-indígenas.

Qual a melhor maneira de resolver os conflitos entre indígenas e não indígenas?
Nos casos em que há comprovação da ocupação tradicional indígena, como no caso dos 17.200 hectares reivindicados pelas aldeias de Buriti, a solução parece passar pela devolução das terras para os indígenas e a indenização dos proprietários. A indenização deve ser considerada como procedimento justo, tendo em vista que a cadeia dominial é antiga. Via de regra, os atuais proprietários adquiriram as terras de boa fé e não foram eles os responsáveis pela expulsão dos indígenas. O Estado deve assumir o ônus de ter titulado terras indígenas em nome de particulares, deve reconhecer seu erro e ressarcir tanto os indígenas como os atuais proprietários.
Foto: Ruy Sposati/Cimi

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