quinta-feira, 30 de maio de 2013

DISCUSSÃO SOBRE COTAS


 “Cotas não atacam a raiz do problema”, diz Manuela Carneiro da Cunha


Antropóloga fala sobre “Negros, Estrangeiros” e diz que principal problema da educação é o ensino básico


HELDER FERREIRA

Professora emérita da Universidade de Chicago e uma das principais antropólogas brasileiras, Manuela Carneiro da Cunha, 69, está relançando Negros, Estrangeiros. Publicado originalmente em 1985, o livro traça, em sua primeira parte, um retrato estarrecedor do Estado escravocrata brasileiro do século 19 que, atemorizado com os trâmites que culminariam na Lei Áurea, passa a adotar uma política discriminatória e repressiva contra os negros, constrangendo-os a imigrarem para seus países natais no continente africano. Depois, remonta o destino dos ex-escravos imigrantes que se estabeleceram na cidade de Lagos, na Nigéria, e acabaram por formar uma burguesia local, adotando a nacionalidade do país que os rejeitou.

Ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Carneiro da Cunha é muito conhecida por seus estudos relacionados às questões indígenas brasileiras – como a coletânea Histórias dos Índios do Brasil (Companhia das Letras, 1992). Orientanda de Lévi-Strauss no início da carreira, ela dirige hoje no Cebrap (Centro Brasileiro da Análise e Planejamento) um projeto que estuda os efeitos das políticas culturais de patrimonialização nas populações tradicionais.

Em entrevista à CULT, Carneiro da Cunha defende as cotas em universidades públicas.

CULT – Negros, Estrangeiros narra a história de ex-escravos que reconstruíram suas vidas ao retornarem para a África, onde transformaram-se em membros da burguesia local. Por que este tipo de ascensão não foi possível no Brasil da época?

Manuela Carneiro da Cunha – No Brasil, negro, até prova em contrário, era necessariamente escravo. Os alforriados tinham de ter o máximo cuidado para não serem tomados por escravos fujões e escravizados de novo. Por isso evitavam sair da região onde eram conhecidos e alguns acabavam por se acomodar e se tornavam clientes, agregados, de seus antigos donos. Outros tentavam se estabelecer por conta própria no sertão.

Os trabalhadores forros urbanos não conseguiam competir com os senhores que queriam reservar certos mercados de trabalho para seus escravos: foi assim que os libertos foram alijados e impedidos de trabalhar no porto de Salvador. Não havia condições para uma ascensão social e financeira como aquela que se verificou na costa da África Ocidental.

Há semelhanças, quanto ao processo, entre os ex-escravos que retornaram à África e os imigrantes que vieram para o Brasil e depois voltaram a seus países de origem?

Há dessemelhanças: em geral, os imigrantes que voltaram para seus países de origem emigraram e voltaram por vontade própria. Não foi o caso dos africanos, que não só vieram forçados como voltaram deportados ou impelidos por uma política de expulsão.

Outra grande diferença é que os imigrantes geralmente voltam ricos. No caso dos africanos, ficaram ricos depois de voltar.

Mas há também semelhanças: os retornados, em geral, eram tidos por quase estrangeiros em seus países de origem e costumavam gostar de se distinguir da população local. Assim, os chamados “brasileiros” no norte de Portugal no século XIX eram os portugueses que haviam feito fortuna no Brasil e se aposentavam lá; hoje foram substituídos pelos “franceses”, os portugueses que haviam emigrado para França nos anos 1960. Os “brasileiros” se diferenciavam com araucárias diante de suas casas; os “franceses” hoje desfiguraram o norte de Portugal com pavilhões de estilo francês e telhas de ardósia.

As políticas de repressão contra os negros aplicadas pelo Estado no século XIX ainda hoje influenciam seus descendentes?

Certamente não ajudaram em nada a promover igualdade e a justiça para seus descendentes. Mas o que realmente cabe entender são as condições atuais. É nessas que podemos influir e são elas as que podem mudar o futuro.

O Legislativo acaba de aprovar cotas de 50% nas universidades federais para alunos oriundos de escolas públicas, sendo que, dentro desse percentual, serão priorizados estudantes negros, indígenas e/ou de baixa renda. A senhora acredita que as cotas raciais em universidades públicas brasileiras são necessárias? Há quem diga que as cotas sejam uma forma de discriminação racial ao contrário. A senhora concorda?

“Discriminação ao contrário” é uma contradição em termos. A discriminação sempre é exercida contra os mais fracos, não contra os mais fortes. Cotas para estudantes de baixa renda e para negros e índios chamaram a atenção para as disparidades enormes deste nosso país desigual. A UERJ, que foi a primeira universidade a implantá-las, já mostrou que o desempenho dos “cotistas” é equivalente ao dos outros estudantes.

Nesse sentido, as cotas são boas, mas incompletas. Em primeiro lugar, não incluem bolsas para que o estudante se mantenha: isso faz com que os mais pobres não possam, por exemplo, cursar medicina, que exige tempo integral. A evasão torna-se um problema.

Em segundo, não atacam a raiz do problema, que é a qualidade insuficiente do ensino público fundamental e médio. Isso resultou numa perversa distorção: as melhores universidades são públicas, gratuitas, mas nelas só conseguem entrar os egressos do ensino médio pago. Lembro que até a década de 1960 o ensino público era considerado melhor do que o privado.

O que senhora pensa sobre o retrato do negro traçado pela mídia no Brasil? Ele é muito diferente do que é feito nos EUA?

Muitíssimo diferente. Nos EUA, há um cuidado exagerado (a nosso ver) com a correção política na representação do negro. As pessoas pisam em ovos o tempo todo. Desde os anos 1970, há separação até na audiência que se espera: donde o gênero de filmes e seriados cunhado blacksploitation”, dirigidos especificamente à classe média urbana negra.

O contraste com o Brasil é enorme: acabo de ler Cidade de Deus, de Paulo Lins. Há um parágrafo lá que é antológico, mas que não vou conseguir achar agora: mostra a ausência da figura do negro na mídia, no livro escolar e na indústria de entretenimento no Brasil. O parágrafo termina com “até o vovô-viu-a-uva é branco”.

Em sua opinião, qual é a relevância atual de Negros, Estrangeiros?

A relevância é, a meu ver, historiográfica, mas também teórica. Quer fornecer aos descendentes de africanos um pouco de sua história, mostrar como foi penosa a passagem da escravidão para a liberdade e como foi difícil o Estado brasileiro aceitar a presença de negros que não fossem mais escravos como parte da nação que então se construía. Sua contribuição, creio, é levantar o véu sobre a auto-imagem complacente que o senso comum brasileiro cultiva.

Ainda como contribuição historiográfica, mostra a constituição de uma das primeiras burguesias coloniais aliadas ao colonialismo que pipocaram por todo o mundo no século XIX.

Por outro lado, o livro analisa, a partir do caso dos “brasileiros” na costa ocidental da África no século XIX, como se constrói uma identidade étnica. Nesse sentido, tem uma ambição teórica que extrapola esse caso, na medida que advoga que qualquer identidade étnica se define em relação a outras identidades étnicas: é uma abordagem estrutural da etnicidade.

Por fim, tenho orgulho da pesquisa iconográfica que ilustra o livro.



TEXTO 2

ALAI, América Latina en Movimiento

2011-05-05

Brasil

Por quê as cotas são uma proposta mais igualitarista que a eqüidade meritocrática?

Valerio Arcary



Se se entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrar em distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade? [1][1]
Karl Marx
O limite político do liberalismo foi a igualdade jurídica dos cidadãos. Os cidadãos seriam iguais diante da lei. A igualdade possível seria a eqüidade. O ponto de partida do marxismo foi a crítica do capital, portanto, do direito à propriedade privada. A liberdade não seria possível entre desiguais. Os marxistas lutam pela eqüidade, mas, seu projeto é a igualdade social. A discussão das cotas abriu uma polêmica, alguns defendendo o princípio meritocrático, e outros defendendo as políticas afirmativas. As cotas sociais e raciais no ensino superior ou nos concursos públicos são reformas que, sob o capitalismo, não poderão inverter a dinâmica decadente do capitalismo periférico. Mas, como o aumento dos salários ou a estabilidade no emprego, a reforma agrária ou a vinculação de verbas no orçamento do Estado para a educação e a saúde pública, é uma reforma progressiva.
Iguais e diversos
Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem - o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na desigualdade natural. O marxismo percebia que os homens eram, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Reconhecia que a humanidade era diversa, os seres humanos possuindo capacidades e talentos variáveis, sublinhando, porém, que as necessidades mais intensamente sentidas eram iguais. Mais ou menos capazes todos os seres humanos compartilharam uma experiência comum: a necessidade de alimentação, vestimenta, abrigo, aprendizagem, segurança e diversão foram iguais para todos. 
O programa socialista inscreveu na História a necessidade da luta contra a propriedade privada para defender o direito à vida. A universalização dos direitos sociais remete ao cerne do projeto socialista: a luta pela liberdade humana, em que o trabalho deixe de ser um castigo para os explorados, e passe a ser a plena realização do potencial criativo de busca de conhecimento, beleza e solidariedade. Essa deve ser a missão fundamental da vida civilizada, e é o sentido da história pelo qual vale a pena lutar.
A luta contra as opressões é indivisível da luta contra a exploração
Os marxistas insistem na centralidade da luta contra a exploração, mas não ignoram o racismo e o machismo. Reconhecem a legitimidade das lutas contra a opressão. O argumento dos que defendem a igualdade de oportunidades contra as cotas aceita o limite da igualdade burguesa.  A eqüidade é o limite do liberalismo. O socialismo quer igualitarismo. A sociedade burguesa histórica nunca pôde realizar a igualdade jurídica. Em país algum os cidadãos são iguais diante da lei, porque os donos do capital podem mais. Ser branco pobre no Brasil nunca foi, também, o mesmo que ser negro pobre. A igualdade de oportunidades não pode corrigir estas desigualdades. Apresentar aos trabalhadores negros o mesmo programa que se apresenta aos trabalhadores brancos significa ignorar sua condição.
O marxismo defendeu que a passagem a uma sociedade socialista deveria ser compreendida pelo critério de distribuição de “cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, construído pela socialização da propriedade. Seu objetivo é a gratuidade da alimentação, da educação, da saúde, dos transportes ou do lazer. A distribuição segundo a satisfação das necessidades exigirá, portanto, ir além do regime do trabalho assalariado. Os marxistas nunca se iludiram, todavia, que este princípio organizador da distribuição pudesse ser implantado imediatamente, ou à escala de um só país.
Tratar os desiguais como iguais perpetua a desigualdade
O marxismo propôs como princípio de distribuição para uma sociedade de transição “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”. Não defendeu salários iguais para trabalhos desiguais. Mas, a eqüidade é ainda uma igualdade formal. Nas palavras de Marx:
Este direito igual continua levando implícita uma limitação burguesa. O direito dos produtores é proporcional ao trabalho que produziram; a igualdade aqui consiste em que se mede pela mesma medida: pelo trabalho. Mas, uns indivíduos são superiores física e intelectualmente a outros e produzem no mesmo tempo mais trabalho, ou podem trabalhar mais tempo(...) Este direito igual, é um direito desigual para trabalho desigual(...) Para evitar estes inconvenientes, o direito teria que ser não igual, mas desigual [2][2].
Ao reconhecer que a distribuição seria regulada segundo o trabalho realizado, os marxistas estavam admitindo uma distribuição desigual, transitoriamente, o que é o mesmo que aceitar algum critério de racionamento. Os socialistas reconheceram que a diminuição da desigualdade social impulsionada pelo princípio de distribuição meritocrático – a tirania do esforço ou do talento – não garantiria ainda a igualdade social, porque estaríamos diante de um tratamento igual para os desiguais, perpetuando-a. Trabalhos diferentes, pela complexidade da educação exigida, ou pela intensidade do desgaste ou ainda do perigo, não poderiam ter salários iguais. Aceitaram a necessidade de seleção para o acesso às melhores oportunidades. Descartaram o sorteio porque seria ainda pior, premiando o acaso.
A igualdade social é, contudo, um objetivo superior à igualdade de oportunidades. A meritocracia considera de forma igual os desiguais. Os socialistas defendem que, em uma sociedade desigual, para que se diminuam as diferenças sociais, não bastaria a eqüidade: seria necessária tratar de forma desigual os desiguais. Essa é a defesa de Lênin: “Mas isto não é, todavia, o comunismo, não suprime ainda o direito burguês, que dá uma quantidade igual de produtos a homens que não são iguais, e por uma quantidade desigual de trabalho”[3][3].]
Os marxistas admitiram a introdução de fatores de correção social e, culturalmente, progressivos. Essa discussão surgiu a propósito das reivindicações das mulheres e das nações oprimidas, mas o critério é o mesmo quando discutimos o racismo.
Cotas são justas, porém, insuficientes!
As cotas do Governo Lula são um bombom em um bolo envenenado: a reforma universitária que legaliza a transferência de verbas públicas para o ensino privado, através do Prouni, anistiando as dívidas fiscais de um setor que estima faturar dezenas de bilhões de reais nos próximos anos. Sabemos, no entanto, que os inscritos no vestibular de acesso às universidades públicas têm somente igualdade de condições formais, portanto, abstratas, porque a seleção será decidida favorecendo os que tiveram melhores condições de preparação. Entre os mais desfavorecidos estão os negros.
As políticas afirmativas de cotas de acesso para afro-descendentes corrigem, parcialmente, um obstáculo que só é invisível para os que secundarizam o racismo. Opor às cotas a bandeira do acesso livre para todos é um argumento que impressiona, mas é ingênuo. O ensino de qualidade significa a desmercantilização de uma das necessidades humanas mais sentidas. Em nenhum dos processos revolucionários do século XX foi possível garantir acesso irrestrito ao ensino superior para todos, muito menos em qualquer curso. O argumento de que, ao invés das cotas, dever-se-ia garantir educação de qualidade universal desde a escola primária pode parecer um argumento razoável, mas não é. É reacionário. Não se pode pedir justiça ao futuro, sacrificando a justiça no presente: por quê a juventude negra deveria aguardar que os seus filhos, talvez, daqui a vinte anos, possam ter acesso ao ensino superior gratuito? Essa posição afasta o movimento negro da causa socialista.
O que se está defendendo contra as cotas, portanto, não é acesso universal, mas um critério de seleção, o meritocrático. Este critério é mais justo do que o racionamento pelo preço das mensalidades – a seleção determinada pelas diferenças de classe – mas, isso não faz dele um critério igualitarista. Igualitarista é tratar de forma desigual os desiguais, favorecendo os mais explorados ou oprimidos. Os defensores da meritocracia estrita propõem à juventude operária e negra que estudem mais, e tentem o vestibular outra vez. A eqüidade é socialmente regressiva. O seu resultado será o isolamento político-social dos que defendem as Universidades públicas, como a USP, as Federais e os CEFET’s, beneficiando a campanha pela cobrança de mensalidades e, finalmente, a privatização.
Ignorar a condição oprimida específica da população negra, em nome de um programa comum de todos os trabalhadores contra o capital, não vai construir a unidade da classe trabalhadora, mas a sua divisão. O racismo no Brasil não é uma invenção dos líderes dos movimentos negros. As políticas de cotas são insuficientes, porque não podem mudar, substancialmente, a condição do negro sob o capitalismo. A juventude negra só terá um futuro melhor se unir sua luta com toda a juventude trabalhadora. A libertação dos negros só será possível com a libertação do povo brasileiro.
notas:
[1][1] MARX, Karl, Os debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha, in Escritos de Juventud, México, Fondo de Cultura Econômica, 1987, p.251.
[2][2] MARX, Karl, Crítica do programa de Gotha, Lisboa, Nosso Tempo, 1971, p.31-32.
[3][3] LENIN, Vladimir, El Estado y la revolución, in Obras Escojidas en tres tomos, Moscou, Progresso, 1960. p.371. Tradução nossa.
Valerio Arcary, historiador, professor do CEFET/SP, e do conselho da revista Outubro.


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TEXTO 3


Tortuosos caminhos

César Benjamim

Aproveitando o ano eleitoral, o presidente Fernando Henrique anunciou o apoio do governo federal a um conjunto de medidas politicamente corretas, com destaque para o reconhecimento civil da união de pessoas de mesmo sexo e a reserva, para negros, de 20 por cento das vagas no serviço público. A primeira medida, proposta há alguns anos pela então deputada Marta Suplicy, é um avanço: duas pessoas adultas podem decidir quem desejam amar e com quem vão viver, e qualquer união estável deve ser geradora de direitos, respeitando-se a vontade expressa por ambas as partes. A mesma clareza não se aplica, a meu ver, à segunda medida, também defendida por grande parte da esquerda. É que o combate ao racismo freqüentemente envereda por tortuosos caminhos.

A construção do conceito de "raças humanas" foi o empreendimento mais importante da ciência européia no século 19. Nessa época, uma parafernália de métodos estatísticos e de sistemas de medição de cada parte do corpo lançou as bases de uma antropologia física que tentou classificar os grandes grupos humanos, estabelecendo correlações entre características aparentes e aptidões. O trabalho consumiu décadas, envolveu cientistas prestigiosos e produziu grande quantidade de resultados numéricos aparentemente
respeitáveis, com suas respectivas interpretações. O sentido desse esforço era óbvio. Ele visava estabelecer bases biológicas que legitimassem a expansão colonial das potências européias, então em pleno vapor. O
colonialismo passava a ser uma expressão da supremacia natural de povos mais aptos.

No século 20, com o desenvolvimento da genética e da biologia molecular, o estudo do corpo humano ultrapassou largamente os aspectos morfológicos mais aparentes, como a cor da pele, que serviram de base para as classificações anteriores. Passamos a comparar os organismos a partir do conhecimento de estruturas muito mais íntimas e mais fundamentais. Os resultados demoliram as bases conceituais das pesquisas anteriores. Ficou demonstrado que, ao longo da evolução, os grupos humanos conservaram uma semelhança espantosa; compartilham a mesma herança, com variações insignificantes.

As diferenças genéticas que se encontram entre duas pessoas escolhidas aleatoriamente em um mesmo grupo (dois nigerianos, por exemplo) não diferem estatisticamente das diferenças existentes entre duas pessoas de distintos grupos (um nigeriano e um sueco, por exemplo). Do ponto de vista genético e
bioquímico não se descobriu nenhum critério válido para juntar e separar as pessoas. Criou-se um consenso de que as diferenças observáveis na linguagem, nos costumes, nos valores, nos atributos morais, nas atitudes estéticas etc. não são biologicamente determinadas.

Desde então, o conceito de "raças humanas" foi remetido ao museu onde estão expostas à galhofa as afirmações de que a Terra é plana, de que habitamos o centro do universo, de que os corpos graves tendem ao repouso e outras idéias que (des)organizaram o pensamento da humanidade ao longo da história. Afirmou-se, em seu lugar, a unidade essencial da nossa espécie. É claro que isso não esgota o problema. Pois, apesar de cientificamente inepto - por não corresponder a nada que exista no mundo biológico -, aquele conceito continua a existir como fato ideológico e cultural. Creio que pelo menos continua a perambular pelo mundo.

O primeiro: a classificação de grupos humanos tendo como base a cor da pele (e outros atributos associados, como a forma do cabelo) é visível aos olhos e, como tal, "evidente". Brancos são brancos e negros são negros. Porém, há muito tempo a ciência aprendeu a desconfiar de "evidências". Também não é
"evidente" que o Sol gira em torno da Terra? Não é "evidente" que a Terra é plana? O processo de conhecimento é sempre a superação de "evidências". O mesmo ocorreu neste caso. O que determina a cor de uma pessoa é a quantidade de uma proteína, chamada melanina, que todos temos na pele. Assim, quando usamos a cor da pele como critério de classificação, estamos afirmando que as pessoas devem ser agrupadas e separadas conforme a quantidade de melanina que produzem. Mas a melanina é apenas uma das 80.000 ou 100.000 diferentes proteínas que compõem nosso corpo. Surge a questão: por que ela, e não outra proteína qualquer, deve ser usada como referência?

Seguindo essa trilha, a ciência contemporânea obteve resultados surpreendentes. Se usarmos a melanina como critério classificador, os suecos Johansson e Peter pertencerão a uma "raça", enquanto os nigerianos Kumbere e Tongo pertencerão a outra. Mas, se usarmos outra proteína qualquer, nada impede que Johansson e Kumbere integrem a mesma "raça", pela semelhança de sua composição bioquímica nesse aspecto, enquanto Peter e Tongo integrem uma outra. O mesmo procedimento pode se repetir quantas vezes se desejar, gerando infinitos rearranjos quando se considera a humanidade como um todo. Havendo uma infinidade de "raças" possíveis, é claro que não há "raça" nenhuma.

Um segundo motivo para a sobrevivência ideológica desse conceito é que tal classificação, como outras, corresponde a interesses. Pois o ato de classificar é também, necessariamente, um ato de hierarquizar: o grupo que inventa a classificação ocupa, invariavelmente, o topo da escala. (Nenhuma classificação reflete "o real"; todas são invenções, mais úteis ou menos úteis.)

O terceiro motivo é um pouco chocante: a idéia de que existam raças humanas, dotadas de diferentes aptidões, não contraria nenhuma lei da biologia. Portanto, não é absurda. Quando populações de uma mesma espécie se separam no espaço e se reproduzem isoladas ao longo de muitas gerações, elas tendem
a acumular diferenças, que podem se inscrever em seus códigos genéticos e, no longo prazo, resultar em raças diferentes. Isso ocorreu em muitas espécies animais (pastores alemães e pequineses são diferentes raças de cães de uma mesma espécie) e também começou a ocorrer na espécie humana.

A partir de um contingente originário da África, o Homo sapiens se espalhou pelo mundo, e seus subgrupos começaram a acumular diferenças. Se o isolamento demorasse muito mais tempo, provavelmente produziria "raças" humanas. Mas nossa espécie é muito recente, e sua divisão em subgrupos isolados não foi  suficientemente longa. A humanidade cresceu, se multiplicou, se deslocou e ocupou todo o planeta. A história produziu logo um grande reencontro. Com ele, o intercâmbio genético voltou a prevalecer amplamente, interrompendo a incipiente tendência anterior. Reiniciou-se um processo de homogeneização, antes que se formassem raças diferentes. Nossa são uma imposição 

A fusão de subgrupos humanos, acelerada na modernidade, foi mais radical no Brasil do que em qualquer outra parte do mundo. Sociedade recente, nascemos no exato momento em que o reencontro se acelerou. Dadas as características da colonização portuguesa e nosso papel na divisão mundial do trabalho, fomos levados a realizar um monumental processo de miscigenação, que predominou sobre outras tendências. Processo, é claro, assimétrico, como todos os demais, em uma sociedade de resto tão desigual.

Como resultado, não somos nem brancos, nem negros - somos mestiços. Biológica e culturalmente mestiços. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a tentativa de constituir uma identidade baseada na "raça" é especialmente reacionária. A afirmação, que tantas vezes já ouvi, de que o Brasil é o país mais racista do mundo é uma patética manifestação de nosso esporte nacional favorito - falar mal de nós mesmos.

Os elementos culturais e ideológicos racistas, que subsistem entre nós, não interromperam nem conseguirão interromper o processo de construção de uma sociedade mestiça, cuja unidade tem sido dada pela bela capacidade de criar e recriar uma cultura de síntese. Mesmo assim, aqueles elementos precisam ser combatidos. Mas definir quotas será o melhor caminho? Devemos fixar o que não é fixo, separar o que não está separado? Quem é negro e quem é branco no Brasil? Onde está a fronteira entre ambos? E os brancos pobres, que são muitos, como ficam?

Melhor do que copiar também nisso os Estados Unidos - uma sociedade multiétnica, mas não essencialmente mestiça - seria, por exemplo, garantir uma escola pública universal, gratuita e de boa qualidade, onde todas as crianças convivessem juntas e recebessem a mesma educação fundamental. Crianças que brincam em playgrounds, viajam em automóveis vedados e estudam em escolas particulares, altamente seletivas, tendem a crescer com medo e raiva dos diferentes. Crianças que freqüentam espaços públicos e têm amigos de todas as cores dificilmente serão adultos racistas.

César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Editora Contraponto, 1998, nona edição) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.

César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Editora Contraponto, 1998, nona edição) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular




TEXTO 4


Ideologia Tortuosa



O mito de a desigualdade racial ser produto das diferenças educacionais também está em xeque


No artigo “Tortuosos Caminhos” publicado na revista Caros Amigos de junho último, César Benjamin, a propósito de questionar a adoção de cotas para negros, reproduz a fórmula clássica do modus pensante e operandi nos marcos de nossa democracia racial: o Brasil é um país mestiço, portanto é impossível determinar quem é negro e quem é branco. E, ainda que isso fosse possível, raça é um conceito falacioso já desmascarado pela ciência contemporânea e, por fim, “constituir uma identidade baseada na raça é especialmente reacionário”, conclui Benjamin. Portanto, políticas afirmativas/cotas para negros seriam um anacronismo em nossa sociedade.
São argumentos de fácil aceitação pelo que reiteram das ideologias presentes no senso comum em que o elogio à mestiçagem e a crítica ao conceito de raça vem se prestando historicamente, não para fundamentar a construção de uma sociedade efetivamente igualitária do ponto de vista racial, e sim para nublar a percepção social sobre as práticas racialmente discriminatórias presentes em nossa sociedade.
A constatação da inexistência das raças e de que a diversidade intragrupos é maior do que entre os grupos diferentes, que a ciência vem nos revelando nos últimos tempos, não tem impacto sobre as diversas manifestações de racismo e discriminação em nossa sociedade e em ascensão no mundo, o que reafirma o caráter político do conceito de raça e a sua atualidade, a despeito de sua insustentabilidade do ponto de vista biológico.
Raça é hoje e sempre foi um conceito eminentemente político cujo sentido estratégico foi exemplarmente sintetizado pelo historiador Antony Mark em seu livro Making Race and Nation, onde ele afirma que: “Raça é uma questão central da política… porque o uso que as elites fizeram e fazem da diferença racial foi sempre com o objetivo de provar a superioridade branca e assim manter seus privilégios, à custa da escravidão e exploração. Essa atitude foi sempre compartilhada com os setores populares brancos interessados em se associar às elites. Historicamente, esse comportamento foi comum às elites do Brasil, da África do Sul e dos Estados Unidos”. A análise de César Benjamin deixa deliberadamente de fora os estudos atuais sobre as desigualdades raciais existentes no Brasil. Silencia também sobre as evidências empíricas da exclusão dos negros em todas as esferas privilegiadas da sociedade e sua concentração desproporcional nos bolsões de miséria e pobreza. Vivemos num país em que, segundo os estudos realizados pelo IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), há 53 milhões de pobres e, desses, 22 milhões são indigentes. 65 por cento e 70 por cento, respectivamente, desses pobres e indigentes são pessoas negras.
O DIEESE, em parceria com o Inspir (Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial), realizou outro estudo amplamente divulgado, o Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho, que nos informa, por exemplo, que em São Paulo a taxa de desemprego da população economicamente ativa está assim distribuída: 25 por cento para as mulheres negras, 20,9 por cento para os homens negros, 19,2 por cento para as mulheres brancas e 13,8 por cento para os homens brancos.
Dados divulgados pelos ministérios do Trabalho e da Justiça na publicação Brasil, Gênero e Raça demonstram os diferenciais no rendimento médio nacional entre negros e brancos em salários mínimos: homem branco, 6,3 salários mínimos; mulher branca, 3,6; homem negro 2,9; mulher negra 1,7.
Porém, é a desagregação do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) para negros e brancos que revela a magnitude da desigualdade racial no Brasil:
“O Brasil em 1999 foi classificado como um país de desenvolvimento humano mediano, ocupando a 79» posição, segundo o Índice de Desenvolvimento Humano, criado pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que é um instrumento de avaliação e mensuração das condições materiais e sociais de vida dos povos. Todavia, quando os indicadores de desenvolvimento humano são desagregados por sexo e raça da população negra no Brasil, conforme elaborado pela Federação de Associações de Órgãos de Assistência Social e Educação (FASE), evidenciam o impacto do racismo, fazendo com que o IDH relativo à população negra do Brasil ocupe a 108» posição, em contraponto ao da população branca, que ocupa a 49» posição.” *
Os negros apresentam, em todos os indicadores sociais constitutivos do IDH, brutais diferenças, das quais a mais dramática é uma esperança de vida, em média, seis anos inferior à dos brancos, variando até doze anos a menos quando desagregamos esse indicador por faixa etária ou região, como é o caso do Norte e Nordeste do país. O IDH da população negra brasileira ocupa cinco posições abaixo da África do Sul, país que até recentemente viveu sob o regime de apartheid.
Os diferentes IDHs encontrados para brancos e negros no Brasil refletem, por fim, a coexistência, num mesmo território, de dois países apartados.
Intencionalmente, César Benjamin passa também por cima do processo histórico que produziu essas desigualdades, ocultando os benefícios materiais e simbólicos auferidos pelos brancos:
  • da escravização dos negros, a principal fonte da acumulação primitiva de capital do país e da construção da riqueza das elites que se revezam no poder no Brasil;
  • da forma como se processou a “abolição” da escravidão, sem qualquer tipo de reparação aos negros pelos séculos de trabalho escravo e sem a implementação de qualquer política de integração social da massa escrava “liberta”;
  • da substituição da mão-de-obra negra pelo imigrante europeu no processo de industrialização pós-escravidão; uma perspectiva eugenista claramente assinalada na Constituição de 1934.
  • da restrição de sua participação política, visto que a Constituição de 1891 impedia o alistamento para as eleições aos mendigos e analfabetos (três anos após a abolição).
  • da absoluta impunidade de que gozam as atitudes racistas e discriminatórias em nossa sociedade, em especial no mercado de trabalho, o que assegura o acesso privilegiado dos brancos aos postos de maior prestígio e remuneração;
  • da desqualificação estética dos negros, em especial das mulheres negras;
  • da indiferença social em relação às ações dos órgãos de repressão e dos grupos de extermínio sobre as populações pobres, majoritariamente negras.
A despeito de todas essas evidências, César Benjamin afirma: “(…) não somos nem brancos nem negros – somos mestiços. Biológica e culturalmente mestiços. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, a tentativa de constituir uma identidade baseada na ‘raça’ é especialmente reacionária. A afirmação, que tantas vezes já ouvi, de que o Brasil é o país mais racista do mundo é uma patética manifestação de nosso esporte nacional favorito – falar mal de nós mesmos”.
Portanto, o negro é apenas uma realidade estatística para deleite acadêmico. Não tem concretude como credor social, demandador de políticas específicas em função das desigualdades de que padece, posto que essas são só reconhecíveis no plano virtual.
Pergunta-nos Benjamin: ”Devemos fixar o que não é fixo, separar o que não está separado? Quem é negro e quem é branco no Brasil? Onde está a fronteira entre ambos?”
A carnavalização das nossas relações raciais escamoteia a rigidez da segregação espacial e social que separa negros e brancos. Ignora solenemente a concentração dos negros nas favelas, palafitas, cortiços, nas periferias das grandes cidades. Ou seja, encontra-se naturalizado o paradigma casa-grande e senzala, por isso trata-se com quase absoluta indiferença essas desigualdades raciais. E, no entanto, as poucas, tímidas e insuficientes iniciativas voltadas para o enfrentamento dessas desigualdades, como é o caso das cotas, encontram rapidamente uma oposição aguerrida.
É nisto que reside a perversidade do racismo brasileiro:
  • Na negação patológica da dimensão racial das desigualdades sociais.
  • Nos eufemismos que são utilizados para mascará-las: se não há negros nem brancos, como poderá haver políticas específicas para negros? Ou, o problema no Brasil não é racial e sim social ou o que há é um apartheid social!
  • Na intransigente recusa de instituição de qualquer mecanismo redutor das desigualdades raciais.
  • Na defesa maníaca de propostas que postergam para as calendas o enfrentamento dessa realidade. A educação é sempre usada como panacéia nesses casos. Diz Benjamin que, em vez das cotas, “melhor… seria, por exemplo, garantir uma escola pública universal, gratuita e de boa qualidade, onde todas as crianças convivessem juntas e recebessem a mesma educação fundamental”. Enquanto a escola pública de qualidade não vem, os negros devem esperar, de preferência “bem quietinhos”, pois a reivindicação de política específica baseada na raça é, como diz o autor, “especialmente reacionária”.
Mas o mito de a desigualdade racial ser produto das diferenças educacionais também está em xeque.
Somos oficialmente 45 por cento da população do país e apenas 2 por cento de nós adentram o ensino universitário. Esse é o patamar de “eqüidade” alcançado, por exemplo, pelas políticas de universalistas no campo da educação. Pior, a avaliação dessas políticas empreendida pelo IPEA constatou que, apesar da democratização do acesso ao sistema educacional e da melhoria dos níveis educacionais de negros e brancos, desde a década de 20 do século anterior até o presente a diferença de escolarização de negros e brancos mantém-se inalterada. A conclusão desses estudos é que as políticas universalistas não têm sido capazes de alterar o padrão de desigualdade racial.
O conceito de raça se instituiu para justificar a dominação, a escravidão e a exploração de um grupo racial sobre outro. Hoje, a negação da realidade social da “raça” e da necessidade que dela decorre de focalizar as políticas públicas nos segmentos historicamente discriminados se presta à perpetuação da exclusão e dos privilégios que a ideologia que o sustenta produziu e reproduz cotidianamente.
Sueli Carneiro é diretora do Geledés Instituto da Mulher Negra. Pós-graduanda em filosofia da educação pela Universidade de São Paulo.

* Documento da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras – Rumo à III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância, páginas 1 e 2.
http://www.geledes.org.br/em-debate/sueli-carneiro/463-ideologia-tortuosa

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