quinta-feira, 21 de outubro de 2010

FICHA LIMPA: DUAS PERSPECTIVAS

TEXTO 1
Ficha limpa é projeto demagógico, autoritário e flerta com o fascismo

Além de violar princípio da presunção da inocência, idéia retoma projeto da ditadura que estabeleceu a cassação dos direitos políticos pela "vida pregressa". Se pessoas com "ficha suja" não podem se candidatar, por que mesmo poderiam votar? Agora mesmo, sindicalistas do RS e de SP sofrem condenações por protestos contra seus governos. Estão com a "ficha suja"?
(Marco Aurélio Weissheimer)


O inferno está pavimentado de boas intenções. A frase cai como uma luva para contextualizar o debate sobre os políticos “ficha-suja” e o projeto “ficha-limpa” que ganhou grande apoio no país, à direita e à esquerda. Pouca gente vem se arriscando a navegar na direção contrária e a advertir sobre os riscos e ameaças contidos neste projeto que, em nome da moralização da política, pretende proibir que políticos condenados (em segunda instância) concorram a um mandato eletivo.

A primeira ameaça ronda o artigo 5° da Constituição, que aborda os direitos fundamentais e afirma que “ninguém será condenado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Professor de Direito Penal na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Túlio Vianna resumiu bem o problema em seu blog:

“Se o tal projeto Ficha Limpa for aprovado, o que vai ter de político sendo processado criminalmente só para ser tornado inelegível…Achei que o art.5º LVII exigisse trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Deve ser só na minha Constituição. Se o “ficha-limpa” não fere a presunção de inocência, é pior ainda, pois vão tolher a exigibilidade do cidadão mesmo sendo inocente. Êh argumento jurídico bão: nós continuamos te considerando inocente, mas não vamos te deixar candidatar mesmo assim! Que beleza! Ou o cara é presumido inocente ou é presumido culpado. Não tem meio termo. Se é presumido inocente, não pode ter qualquer direito tolhido”.

Na mesma linha, o jornalista e ex-deputado federal Marcos Rolim também chamou a atenção para o fato de que o princípio da presunção da inocência é uma das garantias basilares do Estado de Direito e que o que o projeto ficha limpa pretende estabelecer é o “princípio de presunção de culpa”. Além disso, Rolim lembra que a idéia de ficha limpa não é nova e já foi apresentada no Brasil, durante a ditadura militar:

“Foi a ditadura militar que, com a Emenda Constitucional nº 1 e a Lei Complementar nº 5, estabeleceu a cassação dos direitos políticos e a inegibilidade por “vida pregressa”; vale dizer: sem sentença condenatória com trânsito em julgado”.

E se a idéia de ficha limpa é pra valer, acrescenta o jornalista e ex-deputado federal, por que não aplicá-la também aos eleitores:

“Se pessoas com “ficha suja” não podem se candidatar, por que mesmo poderiam votar? Nos EUA, condenados perdem em definitivo o direito de votar, o que tem sido muito funcional para excluir do processo democrático milhões de pobres e negros, lá como aqui, “opções preferenciais” do direito penal. E a imprensa? Condenações em segunda instância assinalam uma “mídia ficha suja” no Brasil?”

Mas talvez a ameaça mais grave, e menos visível imediatamente, que ronda esse debate é a incessante campanha de demonização dos políticos e da atividade política, impulsionada quase que religiosamente pela mídia brasileira. Rolim cita como exemplo em seu artigo uma charge publicada no jornal Zero Hora sobre o tema: na charge de Iotti, políticos são retratados como animais peçonhentos, roedores, aracnídeos e felinos.

Nos últimos anos, diversas pesquisas realizadas em vários cantos do planeta registraram um crescente descrédito da população em relação à política e aos políticos de um modo geral. Prospera uma visão que coloca a classe política e a atividade política em uma esfera de desconfiança e perda de legitimidade. A tentação de jogar todos os partidos e políticos em uma mesma vala comum de oportunistas e aproveitadores representa um perigo para a sobrevivência da própria idéia de democracia. O que explica esse fenômeno que se reproduz em vários países? A política e os políticos estão, de fato, fadados a mergulhar em um poço sem fundo de desconfiança? Essa desconfiança deve-se unicamente ao comportamento dos políticos ou há outros fatores que explicam seu crescimento?

É sintomático que o debate sobre a “ficha limpa” apareça dissociado do tema da reforma política. Eternamente proteladas e engavetadas, as propostas de uma mudança na legislação sobre as eleições e o financiamento das campanhas não obtém mesmo o alto grau de consenso e mobilização. Vale a pena lembrar de uma observação feita pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek acerca do papel da moralidade na política. Ele analisa o caso italiano, onde uma operação Mãos Limpas promoveu uma devassa na classe política do país. Qual foi o resultado? Zizek comenta:

“Sua vitória (de Berlusconi) é uma lição deprimente sobre o papel da moralidade na política: o supremo desfecho da grande catarse moral-política – a campanha anticorrupção das mãos limpas que, uma década atrás, arruinou a democracia cristã, e com ela a polarização ideológica entre democratas cristãos e comunistas que dominou a política italiana no pós-guerra – é Berlusconi no poder. É algo como Rupert Murdoch vencer uma eleição na Grã-Bretanha: um movimento político gerenciado como empresa de publicidade e negócios. A Forza Itália de Berlusconi não é mais um partido político, mas sim – como o nome indica – uma espécie de torcida”. (Às portas da revolução", Boitempo, p. 332)

A eleição de políticos de “tipo Berlusconi” mostra outra fragilidade dessa idéia. Marcos Rolim desdobra bem essa fragilidade:

Muitos dos corruptos brasileiros possuem “ficha limpa” – especialmente os mais espertos, que não deixam rastros. Por outro lado, uma lei do tipo na África do Sul não teria permitido a eleição de Nelson Mandela, cuja “ficha suja” envolvia condenação por “terrorismo”. Várias lideranças sindicais brasileiras possuem condenações em segunda instância por “crimes” que envolveram participação em greves ou em lutas populares; devemos impedir que se candidatem?

Agora mesmo, cabe lembrar, no Rio Grande do Sul e em São Paulo lideranças sindicais estão sofrendo condenações por protestos realizados contra os governos dos respectivos estados. Já não estão mais com sua ficha limpa. Os governantes dos dois estados, ao contrário, acusados de envolvimento em esquemas de corrupção, de autoritarismo e de sucateamento dos serviços públicos seguem com a ficha limpíssima. É este o caminho? Uma aberração político-jurídica vai melhorar nossa democracia?

Marco Aurélio Weissheimer é editor-chefe da Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)

http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4631



TEXTO 2
Projeto Ficha Limpa: democrático, legítimo e constitucional


A Campanha Ficha Limpa, longe de se dar num contexto de autoritarismo, se desenrola como uma experiência de profundo exercício democrático. O projeto de lei é apenas parte de uma mobilização que tem como premissa básica a afirmação de que não se deve votar em pessoas que sabidamente irão se valer dos mandatos para desviar verbas públicas.
(Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral)


Projeto Ficha Limpa: democrático, legítimo e constitucional
O artigo “Ficha limpa é projeto demagógico, autoritário e flerta com o fascismo”, de Marco Aurélio Weissheimer, publicado em 18 de maio último neste sítio eletrônico, parte de premissas equívocas e de omissões injustificáveis.

Basta ver que o § 9° do art. 14 da Constituição de 1988 sequer é mencionado. É justamente esse dispositivo que o projeto de lei conhecido como “Ficha Limpa” busca ver observado.

Diz a referida norma constitucional que “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato (...)”.

Ou seja, quem determina que elementos da vida pregressa dos candidatos sejam levados em conta quando da definição de hipóteses de inelegibilidade é a Constituição da República, ninguém menos.

Há muito tempo o Supremo Tribunal Federal reconhece que “inelegibilidade não é pena” (MS nº 22087-2). Inelegibilidade é nada mais que um critério jurídico-político por meio do qual se define negativamente o perfil esperado dos candidatos.

Hoje já estão excluídos dos pleitos parentes e cônjuges de mandatários, e analfabetos. De que seriam culpados? De absolutamente nada. Sua exclusão se dá de forma preventiva porque a lei simplesmente considera inadequadas as suas candidaturas.

É o mesmo que estamos agora defendendo para aqueles que tiveram contra si proferido um acórdão (julgamento de um órgão colegiado) em que se afirmou o cometimento de uma infração penal grave, assim definida segundo critérios objetivos expressamente fixados na lei.

Ditas essas palavras, passamos a considerar algumas graves assertivas contidas no artigo acima referido.

Em primeiro lugar, a Campanha Ficha Limpa, longe de se dar num contexto de autoritarismo, se desenrola como uma experiência de profundo exercício democrático.

O projeto de lei é apenas parte – menor, talvez – de uma mobilização que já dura quase três anos e que tem como premissa básica a afirmação de que não se deve votar em pessoas que sabidamente irão se valer dos mandatos para desviar verbas públicas.

Foram incontáveis as reuniões e seminários em igrejas, associações, sindicatos etc. nas quais as pessoas eram convidadas a se mobilizarem contra a usurpação de mandatos por pessoas envolvidas com a prática declarada de atos ilegais.

Após debaterem o assunto, as pessoas eram convidadas a subscrever um projeto de lei que objetivava regulamentar um dispositivo da Constituição, o já citado § 9º do art.14 da Constituição. Trata-se do manejo de um mecanismo de expressão da democracia direta: a iniciativa popular de projeto de lei prevista no art. 14, II, da CF. O resultado disso foi a conquista de quase 4 milhões de apoios populares individuais, se consideradas as subscrições físicas e on-line.

Essas assinaturas foram então apresentadas ao Parlamento, onde presentemente estão sendo submetidas a um rico debate e a algumas modificações que, a nosso ver, aprimoraram o texto inicial.

É essa a descrição de um caminho autoritário?

O caminho adotado pelo Ficha Limpa é o da mobilização popular, do exercício da democracia direta e da pressão legítima sobre o Parlamento.

Outra acusação contida no artigo de Weissheimer é a de que o conteúdo dessa iniciativa aponta para a descredibilização da política.

Também aqui a realidade é bem diferente. A Campanha Ficha Limpa está conseguindo despertar o interesse pela política por parte de pessoas que já não mais tinham esperanças. Quem descredibiliza a política são os que desviam verbas públicas para si ou para seu partido.

Estamos fazendo o caminho inverso, dizendo que muitos dos espaços abertos pela política estão hoje preenchidos por usurpadores e que é preciso recuperar as bandeiras e ideologias, hoje banidas por um pragmatismo que nivela quase todos os partidos.

Muitos dos mandatos políticos no Brasil não estão sendo preenchidos por “líderes populares perseguidos”, mas por fraudadores de licitações e praticantes de malversação de verbas destinadas à promoção da vida. Isso precisa parar. A diferença entre os que assim operam para financiar seu apartamento em Miami ou para garantir a manutenção do seu partido no poder é exatamente nenhuma.

Também não é verdadeira a afirmação de que a Campanha Ficha Limpa se dá fora do contexto da Reforma Política.

Ela é apenas o ensaio da mobilização popular que será realizada na seqüência: um projeto de reforma do sistema político formulado pela sociedade em conferências populares, como base para uma nova iniciativa popular de projeto de lei.

Aqueles que hoje não são capazes sequer de compreender que a sociedade pode validamente se rebelar contra o domínio da política pelo crime terão em breve muita dificuldade para entender como trabalhadores e trabalhadoras, donas de casa, estudantes, intelectuais e artistas poderão fazer a política mudar de baixo para cima, num movimento democrático radical, consistente e legítimo.

(organização da sociedade civil)

http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=4637

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