sábado, 2 de outubro de 2010

Mergulhando em águas mais profundas

01.10.10 - BRASIL



Alexandre Aragão *


O momento das eleições é sempre uma etapa fundamental na vida democrática de um país no qual o seu povo soberano tem a possibilidade do exercício de uma nova autorização a ser concedida a representantes, que em seu nome exercerão o poder político na condução dos negócios públicos.
Logicamente a soberania popular não se reduz apenas ao ato de autorizar cidadãos e cidadãs a exercerem o poder. Votar é apenas uma etapa do exercício soberano. Faz parte do estatuto soberano acompanhar, controlar e participar do poder público para que o exercício da democracia seja efetivo. Portanto, a democracia não constitui um mero acidente ou uma simples obra de engenharia institucional como muitos querem reduzi-la ao formalismo do voto. A democracia constitui uma nova gramática social, uma forma sócio-histórica de construir e organizar a vida em comum que não é determinada por quaisquer tipos de leis naturais ou apenas pelo procedimentalismo de uma eleição: requer a participação e a inovação das ações dos cidadãos organizados. Consequentemente, em seu dinamismo próprio, a democracia implica certas rupturas com tradições estabelecidas, na tentativa de instituir novas concepções e determinações capazes de atender as necessidades atuais de um povo ou de uma parcela deste.


Dizendo de outra forma, sem uma larga participação dos cidadãos na vida política até mesmo as mais bem projetadas instituições cairão nas mãos daqueles que buscam dominar e impor sua vontade privada através do aparelho de Estado, seja por sede de poder, seja por razões de interesse econômico. A garantia da liberdade e da justiça social exige a participação ativa dos cidadãos e cidadãs organizados da sociedade civil na condução dos negócios públicos, seja como intervenção direta nas ações políticas ou como interlocução social que determina, orienta e controla a ação dos representantes.

As eleições de 2010 vêm possibilitar, mais uma vez, a reflexão em torno do caminho traçado pelo nosso povo, a partir de 2002, quando colocou um nordestino torneiro mecânico como Presidente da República Federativa do Brasil. Nos últimos 8 anos dos seus dois mandatos presidenciais assistimos a uma ruptura com o rumo que vinha sendo adotado pelos seus antecessores que seguiam a cartilha neoliberal do consenso de Washington cujo fundamento central era a redução do Estado a zero. De fato, os presidentes anteriores, ao mesmo tempo em que abriam o país para a economia globalizada, trataram de promover o desmonte do Estado brasileiro, deixando nas mãos do Mercado a única possibilidade de distribuição de renda e reparo da injustiça estrutural - econômica e social - vigente em nosso país desde que foi fundado.

Mas o neoliberalismo não é um estado qualquer. É exatamente o estado de guerra onde vence o mais forte. A competividade neoliberal, nas palavras do professor Milton Santos, tem a guerra como norma: há, a todo custo, que vencer o outro, para tomar o seu lugar. Esta guerra como norma justifica toda forma de apelo à força, utilizado para dirimir os conflitos dessa "razão competitiva". Ela se funda na invenção de novas armas de luta, num exercício em que a única regra é a conquista da melhor posição. É uma espécie de guerra onde vale tudo e, desse modo, sua prática provoca um afrouxamento dos valores morais e um convite ao exercício da violência. Para exercer a competitividade em estado puro e obter o dinheiro em estado puro, o poder econômico deve ser também exercido em estado puro. O uso da força sendo tornada uma necessidade. Não há outro telos, outra finalidade que o próprio uso da força, já que ela é indispensável para competir e fazer mais dinheiro. E tudo isso vem acompanhado pela desnecessidade de responsabilidade perante o outro, a coletividade próxima e a humanidade como um todo.

A perversidade do sistema neoliberal consiste, portanto, na instituição da competitividade como regra absoluta, competitividade que escorre sobre todo o edifício social. O outro, a pessoa humana, aparece como um obstáculo à realização dos fins de cada um e deve ser removido, sendo considerado uma coisa. Decorrem daí a celebração do egoísmo, o alastramento dos narcisismos, a banalização da guerra de todos contra todos, com a utilização de qualquer que seja o meio para obter o fim colimado, isto é, competir e vencer. Como subproduto da competitividade surge a corrupção. Os papéis dominantes, legitimados pela ideologia, pela mídia e pela prática da competitividade, são a mentira, o engodo, a dissimulação e o cinismo, glorificando a esperteza, negando a sinceridade, glorificando a avareza, negando a generosidade. Desse modo, o caminho fica aberto ao abandono das solidariedades e ao fim da Ética e, consequentemente, da Política.

Mas o Estado moderno foi politicamente construído justamente para barrar o estado de guerra civil produzido pela lei do mais forte. Seguindo o pensamento de Rousseau, é justamente porque a força do Mercado neoliberal está empenhada em destruir a igualdade, que a força do Estado deve agir para sempre tender a conservá-la, porque para uma democracia ser um projeto racional é preciso que nenhum cidadão seja assaz opulento que possa comprar o outro, e nenhum tão pobre que seja constrangido a vender-se. E cabe justamente ao Estado ser o mediador desta questão, evitando os males que uma desigualdade neoliberal venha a produzir, principalmente num país estruturalmente heterogêneo, social e economicamente desigual, como é o nosso, nas palavras de Celso Furtado.

Portanto, diante da herança recebida de um Estado zero, era preciso reinventar a política, reinventando o Estado brasileiro. Era preciso antes de tudo rever o olhar político.

Em dezembro de 2002, dias antes de Lula tomar posse, o quadro econômico brasileiro deixado pelo seu antecessor era o seguinte. O dólar custava R$ 3,63 (três reais e sessenta e três centavos), registrando uma inflação cambial desde a implantação do real da ordem de 327%; as reservas internacionais desabaram para o valor irrisório de US$ 27 bilhões, sendo necessário nessa época fazer um empréstimo emergencial ao FMI de US$ 30 bilhões; o salário mínimo alcançou nessa época o valor real de US$ 56, uma perda em torno de 37% desde a implantação do real como moeda nacional; o chamado Risco Brasil atingiu o índice de 2.436 pontos (BANCO CENTRAL, 2009). Esses são apenas alguns dados que retratam o resultado da política neoliberal dos antecessores de Lula.

Qual era a tarefa histórica urgente que o novo governo precisaria assumir?

Implantar transformações capazes de reverter o quadro de instabilidade, alterando-o para um ambiente produtivo. Era preciso reduzir substancialmente a vulnerabilidade brasileira a choques advindos de fluxos de capitais estrangeiros e variação de preços; consolidar a estabilização da moeda que se encontrava sob ameaça real; acumular reservas internacionais e poupança interna, recuperar a credibilidade do país externamente, para somente assim pensar em crescimento, orientado por uma estratégia de longo prazo, com premissas tais como inclusão social e desconcentração de renda, com crescimento econômico e ambientalmente sustentável, buscando reduzir disparidades regionais, dinamizado pelo mercado de consumo de massas e fortalecimento da cidadania e da democracia. E isto não era uma tarefa do Mercado, mas do Estado democrático com a plena participação da Sociedade Civil.

Foi necessário adotar ações que promovessem a inclusão social e a cidadania por meio de acesso à propriedade, a bens e serviços e à universalização de direitos, bem como a superação da marginalização, o combate às desigualdades, buscando uma resposta eficaz ao problema da construção de uma estratégia socialmente inclusiva e transformadora de desenvolvimento, promotora da redução das desigualdades sociais e regionais de forma sustentável.

Que resultados podem-se aferir com essa mudança de rumo?

Em 31/12/2008, o salário mínimo atingia a marca recorde histórica de US$270. A cotação do dólar nessa mesma época despencou para US$ 1,71 (menos da metade que em 2002). As reservas internacionais nesse período já atingiam o valor recorde histórico de US$ 206,8 bilhões. E o chamado Risco Brasil desabou para 224 pontos, caindo a 10% do valor de 2002 (BANCO CENTRAL, 2009).

É essa uma das lições que o povo brasileiro está aprendendo. Não foi apenas a competitividade lançada a seu bel prazer que possibilitou uma nova realidade no Brasil. Mas a reinvenção do Estado brasileiro. Ou melhor, pela primeira vez na história do Brasil o Estado tem como foco o planejamento estratégico com vistas a combater a desigualdade e a construir uma democracia inclusiva e participativa.


* Ação Fraterna



http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=51371

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