segunda-feira, 29 de novembro de 2010

ABORTO

Direito reprodutivo e religião

Aborto: uma questão jurídica, religiosa ou de saúde pública?


A questão envolve interesses coletivos, mas a gravidez indesejada é sempre um doloroso dilema individual


por CATHIA ABREU





No Brasil, o aborto é crime. A prática só é admitida (não é punida) em casos de estupro ou riscos à vida da mulher. A descriminalização vem sendo reivindicada pelo movimento de mulheres e outras forças sociais. Mas a proposta está longe do consenso. Setores da sociedade ligados a diversas religiões são contrários à idéia e vão mais além: defendem o aprofundamento das punições e a proibição da prática, inclusive em casos de estupro.

O debate é acirrado e tem se caracterizado por posições que oscilam entre o direito à vida do feto e o direito à autonomia reprodutiva da mulher. A questão é delicada e as reflexões se multiplicam, envolvendo concepções de valores morais e religiosos, o funcionamento do sistema público de saúde e o desenvolvimento de políticas sociais . No centro das discussões estão premissas jurídicas e científicas e o ponto de vista da genética e da medic

"O aborto gera mais desacordo político e social do que qualquer outro assunto", diz o diretor-geral da Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF, na sigla em inglês) no relatório Morte e Negação: Abortamento Inseguro e Pobreza, divulgado em maio de 2007 no Brasil. Para ele, o tema é singularmente passional e complicado em muitos países, às vezes sem espaço para a discussão equilibrada. "É necessária e urgente a discussão aberta e informada para resolver as injustiças que fundamentam as causas e conseqüências do abortamento inseguro", defende, na introdução do mais recente panorama mundial sobre o assunto.

O abortamento inseguro é reconhecido pela comunidade internacional como um grave problema de saúde pública desde a década de 1990. O termo "inseguro" é definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o procedimento para interromper a gravidez não desejada realizado por pessoas sem as habilidades necessárias ou em um ambiente que não cumpre com os mínimos requisitos médicos, ou ambas as condições. Segundo o relatório, ocorrem aproximadamente 211 milhões de gravidezes anuais em todo o mundo; 87 milhões de mulheres engravidam de maneira não intencional e, desse total, 31 milhões resultam em abortamentos espontâneos ou em natimortos; 46 milhões de gravidezes terminam em abortamento induzido, sendo que 19 milhões são feitos de forma insegura, implicando 70 mil mortes maternas. Ainda de acordo com o estudo feito pela entidade, mais de 96% das mulheres mortas ou prejudicadas por abortos inseguros vivem nos países mais pobres do mundo.

A América Latina registra 17% do total de abortos clandestinos realizados no mundo inteiro, a África, 58%. O Brasil aparece no relatório com uma das maiores taxas da ocorrência entre os países em vias de desenvolvimento. O estudo da IPPF não apresenta números absolutos de mortes maternas decorrentes de aborto no Brasil, em razão da subnotificação. Baseado em estimativas, o documento aponta que o aborto inseguro é responsável por 9,5% das mortes maternas diretamente relacionadas à gravidez no país. Dados do Ministério da Saúde mostram que o aborto é a quarta causa de óbito materno e a curetagem (raspagem uterina feita após abortos), o segundo procedimento obstétrico mais praticado no Sistema Único de Saúde (SUS), superado apenas pelos partos. Em 2004, cerca de 240 mil mulheres foram atendidas nos hospitais públicos por complicações derivadas de abortos. Em 2006, o SUS registrou 2.200 abortos e 220 mil curetagens. Segundo o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, não é possível saber quantos desses procedimentos foram resultantes de aborto em situação insegura, mas o número indica que o assunto tem de ser discutido dentro de uma política de direitos sexuais e reprodutivos (veja quadro Política nacional de planejamento familiar). O ministro tem insitado a sociedade brasileira a debater o tema como problema de saúde pública. Em abril de 2007, defendeu a realização de um plebiscito para decidir se essa prática deveria ou não ser legalizada.


A América Latina registra 17% do total de abortos clandestinos realizados no mundo inteiro. A África, 58%. O Brasil aparece no relatório com uma das maiores taxas da ocorrência entre os países em vias de desenvolvimento
O Projeto de Lei (PL) que propõe a descriminalização do aborto é o 1.135/91, de autoria dos ex-deputados petistas Eduardo Jorge e Sandra Starling. O projeto revoga o artigo 124 do Código Penal, que prevê detenção de um a três anos para "a gestante que provocar aborto em si mesma ou consentir que outro o faça". Junto a esse PL estavam dezesseis outras proposições que foram desapensadas, permanecendo apenas o PL 176, de 1995, proposto pelo deputado José Genoíno (PT/SP), que permite o aborto por livre opção da gestante até o nonagésimo dia de gravidez e obriga a rede hospitalar pública a realizar o procedimento.

Em 2007, o PL 1.135/91 foi discutido em três audiências públicas na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). Em novembro, o relator do PL, deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP) apresentou parecer rejeitando a proposta. Depois de ser votado pela (CSSF), o projeto seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça e irá para votação no plenário da Câmara dos Deputados, onde tramita há 17 anos (veja quadro Projetos de Lei).

O RECENTE ESTUDO Abortamento, um grave problema de saúde pública e justiça social, elaborado pela Organização não-governamental Ipas (o que é?) e o Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), avaliou a magnitude desse procedimento no Brasil e reuniu informações sobre onde e para quem o abortamento inseguro representa um grave risco à saúde. Realizado pelos pesquisadores Leila Adesse, mestre em Saúde da Mulher e da Criança e diretora da Ipas/Brasil, Mário F.G. Monteiro, Ph.D. em Demografia Médica e professor IMS/UERJ, e Jacques Levin, analista de sistema do Datasus e doutorando em Saúde Coletiva do IMS, o estudo mostra a incidência do aborto nas diferentes regiões e evidencia as diferenças socioeconômicas, culturais e regionais. Revela, por exemplo, que, em comparação com as mulheres do Sul, as que vivem no Nordeste e Centro-Oeste estão expostas ao dobro de riscos de seqüelas e de mortalidade em conseqüência do aborto clandestino, e a população de mulheres negras e pardas está submetida a um risco de mortalidade em conseqüência de abortamento inseguro três vezes maior em relação ao que acomete as mulheres brancas.

Segundo os pesquisadores, as mulheres em situação de aborto incompleto ou com complicações, geralmente, sentem constrangimento e/ou medo em declarar a situação nos serviços de saúde, resultando em subnotificação. Não é difícil presumir que, ao juntar tal constrangimento à falsa idéia de que abortar é sangrar, muitas mulheres enfrentam graves hemorragias, não procuram um serviço de saúde e sangram até morrer. A pesquisa mostra que entre os fatores de maior risco estão quedas, socos, atividades físicas excessivas, substâncias cáusticas (cloro, cal, sais de potássio) inseridas na vagina e objetos pontiagudos (arame, agulhas de tecer, cabides, entre outros) inseridos no útero.

Projetos de Lei
Atualmente, tramitam no Senado Federal três projetos de lei sobre o aborto: o 183/04, que inclui, entre os permitidos, os casos em que o feto se desenvolve sem cérebro (anencéfalo); o 227/04, que retira a punição dos casos de aborto de fetos anencéfalos; e o 312/04, que retira do Código Penal a interrupção de gravidez como crime.

Na Câmara dos Deputados, 19 propostas tratam diretamente do assunto (ao todo, são 141 itens). Sete delas são contra o aborto e pedem a revogação dos direitos já garantidos (como nos casos de estupro ou risco de morte para a mãe) ou a tipificação do aborto como crime hediondo. Nove projetos são favoráveis ao aborto em casos específicos e um deles pede a descriminalização total. Entre os mais recentes, o 478/07 cria o Estatuto do Nascituro: de autoria do deputado Luiz Bassuma (PT-BA), proíbe a manipulação, o congelamento, o descarte e o comércio de embriões humanos.

A proposta de descriminalização do aborto foi aprovada pela maioria das 2,5 mil mulheres que, em agosto de 2007, participaram da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Já 70% dos participantes da 13.ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em novembro, decidiram não incluir a recomendação do relatório final do encontro.

Fonte: Ipas/ Brasil - www.ipas.org


O ESTUDO CONSTATOU que a tipificação do aborto como um delito não desestimula o procedimento. Pelo contrário, as práticas de risco prosseguem e se intensificam, como declarou o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas (Comitê) (CEDAW), em sua 39.ª sessão, realizada em Nova York em agosto de 2007. Os autores da pesquisa sugerem que o problema da gravidez não desejada seja enfrentado por políticas públicas que reconheçam os direitos humanos reprodutivos das mulheres. "Que se incluam aí os homens", dizem eles, e criem, nos municípios brasileiros, a cultura de ações de educação sexual e de atenção à anticoncepção.

Segundo a socióloga Dulce Xavier, integrante da coordenação da entidade Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), criminalizar a mulher por interromper uma gravidez indesejada é uma grande injustiça, considerando que, na maioria das vezes, as condições não permitem que ela se utilize de quaisquer meios para se prevenir. "O acesso à informação e aos métodos contraceptivos não estão garantidos; o índice de violência doméstica e sexual é muito alto - a cada segundo uma mulher sofre alguma forma de violência no Brasil -, o mercado de trabalho simplesmente descarta mulheres com filhos, o Estado não garante o apoio para o cuidado e educação. Diante disso, a descriminalização do aborto é uma questão de justiça social", defende.

"Do ponto de vista religioso, entre os valores cristãos mais propagados e aceitos estão o não julgamento, o amor ao próximo e a solidariedade. Baseadas nisso, acreditamos que a mulher - personagem de um contexto social tão desigual e injusto como o nosso - não precisa de julgamento e/ou cadeia, e sim de acolhimento e respeito, com a atenção digna que todo ser humano merece", sustenta a socióloga. Ela acredita que uma forma de reduzir as mortes por aborto e o próprio procedimento é oferecer condições para que as mulheres sejam atendidas no sistema de saúde público e tenham uma prática de planejamento da reprodução.

Política nacional de planejamento familiar
Organizada em três eixos - a ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis (não-cirúrgicos), a melhoria do acesso à esterilização cirúrgica voluntária (laqueaduras e vasectomias) e a introdução de reprodução humana assistida no Sistema Único de Saúde (SUS) -, a política de planejamento familiar do governo federal, segundo o Ministério da Saúde (MS), abrange ações educativas com a distribuição de manuais técnicos e cartilhas para os gestores de políticas públicas, profissionais de saúde e também para a população em geral. Estão sendo distribuídas publicações como a Cartilha Direitos Sexuais, direitos reprodutivos e métodos anticoncepcionais, com informações sobre o funcionamento do corpo da mulher e do homem e sobre os diversos métodos anticoncepcionais; a norma técnica Atenção Humanizada ao Abortamento, que trouxe as bases para qualificar o atendimento à saúde de mulheres que chegam aos serviços de saúde em processo de abortamento espontâneo ou inseguro; e a nova norma técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes, que reeditou e atualizou uma outra datada de 1999, trazendo, como principal mudança, a não exigência da apresentação do boletim de ocorrência policial pelas vítimas de estupro para a realização de abortamento. Esta, juridicamente embasada no Código Penal Brasileiro.

De acordo com o documento Direitos sexuais e direitos reprodutivos: uma prioridade do governo, usado como base para a elaboração do programa nacional de planejamento familiar, os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos e leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais. "Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento, a oportunidade de ter filhos e ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência", registra o documento.

Segundo a Constituição Federal, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos para o exercício desse direito, sem qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. A Lei 9.263/1996, que regulamenta o planejamento familiar no Brasil, estabelece que a assistência deve incluir acesso à informação e a todos os métodos e técnicas para concepção e anticoncepção, cientificamente aceitos, e que não coloque em risco a vida e a saúde das pessoas.

A opinião da socióloga tem o respaldo da Jornada pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, articulação do campo feminista que reúne 16 redes e articulações nacionais e 43 organizações sociais de diferentes regiões do país com o objetivo de impulsionar a revisão da legislação punitiva do aborto no Brasil. "Defendemos a legalização do aborto, sempre por livre decisão das mulheres, em três casos: até as 12 primeiras semanas de gestação; até as 20 primeiras semanas se for gravidez decorrente de estupro; e a qualquer tempo se a vida da mãe estiver em risco [neste caso, com o avanço da ciência médica, tem-se configurado parto prematuro]. Nossa escolha é pela defesa da vida em plenitude que está presente na mulher, em detrimento da vida em potencial que está sendo gestada em seu corpo", diz a socióloga Silvia Camurça, secretária executiva colegiada da organização política não partidária Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), no artigo Maternidade livre: um direito a ser conquistado.


TAMBÉM SE DECLARAM em defesa da vida os que se manifestam contra a descriminalização do aborto. No caso, da vida ainda em gestação no ventre da mulher. Neste lado, estão entidades e instituições religiosas e frentes parlamentares criadas para este fim. À frente, contra o aborto em qualquer momento da gestação, sob quaisquer condições, segue a Igreja Católica, que, este ano, aborda o tema em sua Campanha da Fraternidade com o lema Escolhe, pois, a vida! "A solução verdadeira e justa para resolver esse problema não pode ser a legalização da prática do aborto. Seria uma solução falsa, simplista e cruel. O problema de 'saúde pública', no caso dos abortos clandestinos, deve ser enfrentado de outras formas, e não mediante a supressão da vida de milhares (ou milhões!) de seres humanos", argúi o padre Luiz Antonio Bento, assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e Família, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

De acordo com a Igreja, existe uma pessoa humana desde o primeiro momento da concepção


O ministro da Saúde, José Gomes Temporão tem incitado a sociedade brasileira a debater o tema como problema de saúde pública. Em abril de 2007, defendeu a realização de um plebiscito para decidir se essa prática deveria ou não ser legalizada
O DEPUTADO FEDERAL Luiz Bassuma (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Vida Contra o Aborto, compartilha desse ponto de vista. Sua opinião tem o apoio dos 198 deputados federais e 12 senadores que, segundo ele, fazem parte da Frente. "Seria tentar resolver um crime, regulamentando outro mais hediondo, pois baseado no assassinato de um ser que não tem o menor direito à defesa", advoga.

De acordo com a Igreja Católica, existe uma pessoa humana, um sujeito de direitos, desde o primeiro momento da concepção, e a interrupção de uma gravidez é tida como ato homicida. "O não-nascido, mesmo que embrião, é titular do direito à vida, resguardado no caput do art. 5.º da Carta da República", argumenta o padre Luiz Antonio Bento, expondo que a Igreja define o aborto como crime abominável juntamente com o infanticídio, de acordo com o Concílio Vaticano II, na Gaudium et spes (GS 27 e 51) e na Evangelium vitae. Segundo o padre, para um católico, tal posição está confirmada pelo magistério explícito da Igreja, que, na encíclica Evangelium vitae, afirma que o ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a concepção. "Desde esse mesmo momento, devem lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais, e primeiro de todos, o direito inviolável à vida de cada ser humano inocente", sustenta.

Uma vez que a maioria dos que condenam o aborto afirmam fazê-lo em nome da vida, a questão acompanha o debate em torno do assunto. Recentemente, a pergunta veio à tona, durante julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) n.º 3.510, que questiona dispositivos da Lei de Biossegurança que admitem e disciplinam as pesquisas com célulastronco embrionárias.

Segundo a antropóloga e professora de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), Débora Diniz, a pergunta sobre o início da vida é um questionamento metafísico-religioso pouco suscetível a um julgamento razoável em um Estado de Direito pluriconfessional. "A resposta mais razoável acena para uma evidência de regressão infinita sobre a origem da vida", disse a pesquisadora em memorial formulado pelo amicus curiae Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero em defesa das pesquisas com células-tronco embrionárias, no qual a entidade mostra ser improcedente o pedido formulado pela Adin. Conforme explicou no documento, tal resposta não caberia ao mérito da questão, visto que a Lei 11.105/2005 já determina que a pesquisa com células-tronco embrionárias seja feita apenas com embriões inviáveis, "quer dizer, aqueles para os quais não há como se imputar a tese de potencialidade de vida".

Em entrevista concedida à UnB Agência, Débora Diniz expôs que, se o Supremo Tribunal Federal (STF) responder que "a vida começa na nidação, quando o ovo chega ao útero" ou "começa na fecundação" ou "no desenvolvimento da capacidade nervosa", vai criar um marco no debate. Se definir que a vida começa com a atividade cerebral, como ocorreu nos Estados Unidos, o aborto será permitido até o quarto mês de gestação. Se disser que a vida começa na nidação, não haverá mais aborto, mesmo em caso de estupro e de risco para a mulher. A pesquisadora lembra que, se o STF definir que a vida começa no embrião, nem as possibilidades de aborto previstas em lei poderão ser realizadas. "A pílula do dia seguinte se tornaria ilegal e seria praticamente impossível realizar procedimentos de reprodução assistida."

Protestos contra o aborto
Também se declaram em defesa da vida os que se manifestam contra a descriminalização do aborto. No caso, da vida ainda em gestação no ventre da mulher. Neste lado, estão entidades e instituições religiosas e frentes parlamentares criadas para este fim. À frente, contra o aborto em qualquer momento da gestação, sob quaisquer condições, segue a Igreja Católica, que, este ano, aborda o tema em sua Campanha da Fraternidade com o lema Escolhe, pois, a vida! "A solução verdadeira e justa para resolver esse problema não pode ser a legalização da prática do aborto. Seria uma solução falsa, simplista e cruel. O problema de 'saúde pública', no caso dos abortos clandestinos, deve ser enfrentado de outras formas, e não mediante a supressão da vida de milhares (ou milhões!) de seres humanos", argúi o padre Luiz Antonio Bento, assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e Família, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

A personalidade civil começa com o nascimento, mas os seus direitos estão garantidos desde a concepção

EM SEU VOTO a favor da liberação desses estudos, na sessão do SFT de 5 de março, o ministro Carlos Ayres Britto, relator da Adin, foi objetivo: "O embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana", e "não há pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana". Ele definiu o conceito de criança, citando o Estatuto da Criança e do Adolescente, que afirma ser criança a pessoa que ainda não atingiu os 12 anos de idade, a contar "do primeiro dia de vida extra-uterina".

Esse assunto, porém, não é consensual no meio jurídico. A Associação Brasileira dos Magistrados Espíritas (Abrame) - que congrega ministros dos Tribunais Superiores, desembargadores, juízes federais e estaduais de todo o Brasil, defende o direito à vida como o primeiro dos direitos naturais com base em argumentos, de acordo com seu presidenconsagrados por legislações de todos os povos civilizados. Baseado no artigo 5.º da Constituição e nos artigos 1.º e 2.º do Código Civil, ele afirma que "a personalidade civil começa com o nascimento, mas os seus direitos estão garantidos desde a concepção, exatamente como proclama o pacto de São José da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratificado pelo Brasil, em 1992". Segundo o juiz, o artigo 1798 da Lei Civil dispõe que a pessoa já concebida legitima-se, tal qual a pessoa nascida, no momento da abertura da sucessão. "Nascido ou não nascido, o ser humano, como pessoa, é sujeito de direitos. A pessoa não nascida pode receber doação; ser reconhecida como filho antes do nascimento; tem direito à indenização por dano moral, no caso de ofensa à sua integridade física e moral; tem, enfim, direito a alimentos, à imagem e à honra."


Se o STF definir que a vida começa no embrião, nem as possibilidades de aborto previstas em lei poderão ser realizadas, nem a pílula do dia seguinte poderá ser utilizada
"SALVAGUARDAR os direitos do nascituro não significa conferir-lhe capacidade processual, tampouco elevá-lo à condição de pessoa", disse a professora Samantha Buglione, mestra em direito e membro do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CDD) em artigo publicado no jornal Correio Braziliense, em 26 de novembro de 2007. Segundo explicou, o que a lei faz é assegurar que os genitores possam defender possíveis direitos do nascituro. "Trata-se, na verdade, de uma conseqüência dos direitos reprodutivos dos genitores. Quem tem o direito é a mulher, o homem ou o casal, e não o feto; ele só tem expectativa de direito", assegura.

"O Código Civil não trata de um 'direito à vida', tampouco define que o feto tem personalidade jurídica; ele se refere apenas à proteção de direitos que estão condicionados ao nascimento com vida. Isso é completamente diferente do reconhecimento de uma personalidade apenas pelo critério da existência da potencialidade de nascer. O ponto é que não há consenso na doutrina jurídica sobre o início da vida, tampouco há norma jurídica que traga essa definição. O direito não informa o que é a vida, apenas define o que é morte: morte é a morte encefálica, conforme a Lei 9.434/97 (Lei de Transplantes)", sustenta a mestra em direito.

"Como avaliar a definição de vida entre um embrião ou feto e uma mulher? questiona o teólogo Leonardo Boff , no artigo O processo da vida e o aborto, publicado em 19 de março, no site da CDD, em que diz: "Se inserirmos a vida no processo global da evolução, não nos podemos contentar com essa visão assumida oficialmente pela Igreja nos dias atuais".

"Na Idade Média, não era assim, pois para Tomás de Aquino a humanização começava apenas após 40 dias da concepção. A Igreja, para efeito de sua ética interna, pode estabelecer um momento da concepção da vida humana. Mas ela deve estar consciente de que está entrando num campo no qual não tem competência específica, o campo da ciência. Se entendermos a vida como um processo cósmico que culmina na fecundação do óvulo, então devemos cuidar de todos os processos necessários para a emergência da vida, como a infra-estrutura ambiental e social. (...) Não dá para pensar a vida humana fora do contexto maior da vida em geral, da biosfera e das condições ecológicas que sustentam o processo inteiro", discorreu o teólogo.

E assim, na difícil tarefa de abordar o assunto, tenta-se analisar todos os lados da moeda sem chegar nunca a um consenso ou julgamento adequado que possa ser embasado em uma lei que assegure o direito da mulher e do feto. O tabu do aborto está longe de ser solucionado, seja no campo moral ou na prática social.



LUCIA ROCHA é jornalista e escreve para esta publicação


Disponível em http://portalcienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/18/artigo98214-1.asp. Acesso em 29/11/2010.

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