segunda-feira, 29 de novembro de 2010

MULHERES E PODER

Olho grego

As mulheres e o poder


Este ano, pela primeira vez na história do Brasil, entre os três ou quatro principais candidatos à presidência da República, estarão duas mulheres

Renato Janine Ribeiro



RENATO JANINE RIBEIRO é professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). www.renatojanine.pro.br


Este ano, pela primeira vez na história do Brasil, entre os três ou quatro principais candidatos à presidência da República, estarão duas mulheres. Em 1989, a pouco conhecida Livia Maria foi a primeira mulher a disputar a presidência e ficou em 17º lugar. Mas, quatro anos atrás, a senadora Heloisa Helena passou dos seis milhões de votos, marca notável para um partido pequeno como o seu.

Aproveitando o Dia Internacional da Mulher, vamos discutir este assunto aqui, de forma filosófica e não partidária; deixaremos para a próxima edição o artigo que prometi sobre o socialismo. Lembremos só que, de nossos sete Estados mais populosos, apenas dois já elegeram governadoras - o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. O Brasil político é machista. Mas não só o Brasil, quando pensamos numa escala de milênios: o poder sempre foi muito mais masculino que feminino.

Na maior parte da História, as formas de governo foram monárquicas e o que mais se esperava do governante era que fosse guerreiro. Com exceção das míticas amazonas, a profissão militar foi essencialmente masculina. Manejar armas, antes da moderna tecnologia, exigia uma força física mais característica dos homens que das mulheres.



O CONDUTOR MILITAR

O poder político é uma mutação da força. Ao substituí-la, modifica-a, mas nasceu - há muito tempo - dela. Do governante se esperava que fosse um chefe militar. Vejam uma palavra como "duque", em latim dux: ele é quem conduz - o leader, em inglês, mas também o Führer, em alemão, ou mesmo o Duce, em italiano. Esse condutor (condottiere, em italiano) seria um homem.

Mas, a partir do século XIII, as monarquias europeias vão se tornando hereditárias. Cada rei procura ser sucedido pelo filho. Mas qual o sexo do rebento? Se o rei tem filhos, meninas pouco importam. Mas, se só nascerem filhas, poderão reinar? Garantir a sucessão é a forma de um rei assegurar que sua política continue. Melhor com um filho varão mas, na sua falta, o rei preferirá uma filha a um irmão ou primo.

Essa questão determina a grande guerra civil europeia que é a Guerra dos Cem Anos: o rei inglês reivindica a coroa da França porque, pela sua mãe, ele é o parente mais próximo do rei falecido. Mas seu primo, que ocupa o trono em Paris, alega que na França mulheres não só não podem reinar, como sequer transmitem direito à herança. Vê-se a importância que tem o assunto: cem anos de guerra, o fim da Idade Média.



OS TUDORS

Há uma história exemplar. Em 1485, a Inglaterra muda de dinastia, quando os Tudors sobem ao trono. Mas o segundo rei dessa família, Henrique VIII, tem apenas uma menina como herdeira - a futura rainha Maria. Temendo que ela não seja aceita pelos grandes do Reino, ele desfaz seu casamento com a rainha Catarina e desposa Ana Bolena. Daí resulta a Reforma Anglicana e a ruptura com Roma - não tanto porque ele desejasse Ana, mas porque queria um herdeiro varão.


Ana também é abandonada - mais que isso, decapitada - depois de lhe dar uma filha, a futura rainha Isabel ou Elisabeth. O tão desejado herdeiro homem - Eduardo VI - nasce da terceira esposa do rei. Mas é um menino doente, que sobe ao trono criança e morre em poucos anos. Em 1553, sobe assim ao trono Maria, que restaura o catolicismo. Na mesma época, reina na Escócia Maria Stuart, também católica. Contra as duas, um importante pregador presbiteriano escocês, John Knox, escreve um panfleto devastador, que se chama O primeiro toque do trompete contra o monstruoso governo feminino. Por enorme azar, o livro sai em 1558 - o ano em que a protestante Elisabeth sobe ao trono inglês, sucedendo à irmã católica. Ela nunca perdoará Knox.

Essa história é cheia de ironias. O machismo perde a parada de ponta a ponta. Henrique VIII tanto fez para ter um menino - mas acabou gerando, em Elisabeth, o melhor chefe de Estado com que a Inglaterra já contou. Knox, assustado com as duas Marias católicas, não imaginava que Elisabeth substituiria a primeira e executaria a segunda. Ela foi melhor monarca que o pai, protestante mais bem-sucedida que Knox.

Com o passar do tempo, os reis se tornam símbolos. Não governam mais. Quem melhor comandou essa transição foi também uma mulher, a rainha Vitória. Ela percebeu que a monarquia estava desacreditada politicamente, e converteu sua família em modelo moral para o país - são os "valores vitorianos". No Brasil, a princesa Isabel fica eternamente marcada pela sanção da Lei Áurea, que extingue a escravidão, em 1888.

Mas as mulheres ainda não votavam. Só no século XX se generaliza seu papel como eleitoras - exceto em alguns países islâmicos. Como governantes, ainda são poucas. Mulheres foram eleitas para governar a Índia, a Alemanha, a França, a Grã Bretanha, o Chile e a Argentina - mas não os Estados Unidos, a China ou o Brasil.


PRECONCEITO

POR QUÊ? O argumento da força física acabou há muito tempo. No seu lugar, se disse que elas seriam mais emotivas que racionais. Ainda hoje, quando uma mulher busca o poder, muitos dizem que é pouco feminina (Thatcher, Dilma) ou manipulada por um homem (Cristina Kirchner, Rosinha Garotinho). Quem acredita nisso poderia, apenas, ponderar que o saldo dos governantes homens está longe de ser bom.


Para citar nosso político talvez mais criativo em termos de educação, o senador Cristovam Buarque: "Temos milhares de anos de autoritarismo e apenas dois séculos de democracias". A Democracia se aprende, se constrói, se cria. É como se nosso hipotético sistema operacional, cada vez que tem de reagir a uma surpresa, a uma novidade, a algo inesperado, optasse pelas formas conhecidas - que são as mais autoritárias.

Leiam a Constituição: em caso de crise grave, o que ela prevê? Essencialmente, a suspensão das liberdades - que se chama, conforme o país, estado de sítio, estado de defesa, estado de guerra... Ora, por que não enfrentar uma crise da forma oposta, mobilizando o povo, apelando à criatividade, ampliando a liberdade? Vejam, não sei se daria certo; mas perguntar não ofende. Às vezes, apenas convida a pensar.

Diante desses milênios de autoritarismo, que ainda nos marcam, espero que o século XXI traga várias novidades democráticas - e que uma delas seja termos mais mulheres no poder.



Disponível em: http://portalcienciaevida.uol.com.br/esfi/Edicoes/45/artigo167729-1.asp. Acesso em: 29/11/2010.

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