sábado, 13 de agosto de 2011

TRECHOS IMPORTANTES: PARA APROFUNDAR REFLEXÃO SOBRE O TEMA "FOME" OU "SEGURANÇA ALIMENTAR"

1. A FAO e a promoção da segurança alimentar universal, Ignacy Sachs

Muito ainda precisa ser feito para garantir a segurança alimentar mundial e isso passa, necessariamente, pela reforma e fortalecimento da FAO e a consolidação de práticas agrícolas socialmente inclusivas e ambientalmente sustentáveis, especialmente da agricultura familiar. (...)

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17969


2. Agricultura familiar ganha força na FAO e no G-20

Em entrevista à Carta Maior, o ex-ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, analisa as mudanças ocorridas na FAO nos últimos anos e as possibilidades de atuação do novo diretor-geral, José Graziano da Silva. Durante muitos anos, lembra, a FAO foi uma sombra da OMC. "Os temas da agenda da FAO eram tratados segundo os interesses de mercado. A partir de 2003, o governo Lula passou a tensionar essa situação a partir de políticas de fortalecimento da agricultura familiar e de combate à fome. Elas influenciaram a agenda da FAO e do próprio G-20, como se viu na recente reunião de ministros da agricultura do grupo.
Marco Aurélio Weissheimer

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Carta Maior: Qual o significado da vitória de Graziano para a direção da FAO?

Guilherme Cassel: A vitória de Graziano reflete uma significativa mudança de posição em relação à agricultura familiar. Durante muitos anos, a FAO foi uma espécie de sombra da Organização Mundial do Comércio (OMC). Os temas da agenda da FAO eram tratados fundamentalmente segundo os interesses de mercado. A partir de 2003, o governo Lula passou a tensionar essa situação a partir de um conjunto de políticas públicas voltadas para o fortalecimento da agricultura familiar e ao combate à fome e à pobreza. Com o tempo, essas políticas foram conquistando reconhecimento internacional e incidindo também na agenda da FAO.
É importante assinalar também que, antes da conferência da FAO, ocorreu a reunião do G-20 agrícola (reunião dos ministros da agricultura das vinte principais economias do mundo). O documento final do encontro abre afirmando que o impasse da alta de preços passa por valorizar cada vez mais agricultura familiar e pela regulamentação dos preços dos alimentos. É tudo que viemos dizendo há dez anos.

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17987


3. A FOME NÃO É SÓ DE COMIDA

Fome: história de uma cicatriz social

“A fome e a guerra não obedecem a qualquer lei natural, são genuínas criações humanas”
(Josué de Castro, 1908-1973)


Cláudio Cerri e Ana Cláudia Santos

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A palavra maldita

Vista sempre como fenômeno natural, ou efeito secundário de acidentes climáticos, a fome nunca foi aceita pelas elites como obra de um autor implacável: a desigualdade social.

Todavia, a palavra carrega tamanha carga auto-explicativa que muitos governos, além de ocultar suas causas, acharam conveniente tirar o próprio vocábulo de circulação.

Quando o médico e geógrafo Josué de Castro (1908-1973) escreveu seu livro mais conhecido em 1946, tratando pioneiramente do tema, sofreu pressões para que o título fosse substituído por outro mais ameno. Não aceitou. Geografia da fome tornou-se um marco no estudo da pobreza brasileira e uma denúncia referencial de suas causas estruturais


http://www.apropucsp.org.br/revista/r19_r05.htm


4. A FOME NÃO É SÓ DE COMIDA - A atualidade de Josué de Castro

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Contra as teses malthusianas
Josué de Castro rejeitou com veemência as idéias neomalthusianas de William Vogt nos anos 40 e 50. Ele não admitia a proposta do controle de natalidade como medida a ser adotada na solução do problema da fome, “Os neomalthusianos, ao afirmarem que o mundo vive faminto e está condenado a perecer numa epidemia total de fome porque os homens não controlam de maneira adequada os nascimentos de novos seres humanos, não fazem mais do que atribuir a culpa da fome aos próprios famintos.”


http://www.apropucsp.org.br/revista/r19_r09.htm


5.A revolução “duplamente verde” de José Graziano

André Siqueira e Soraya Aggege 1 de julho de 2011


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CC: A crise financeira internacional atingiu mais as economias desenvolvidas do que o mundo em desenvolvimento, mas parece ter reconfigurado os mercados internacionais de commodities agrícolas, ao estabelecer patamares mais elevados para os preços dos alimentos. Qual o impacto desse cenário para as populações mais pobres?
JG: Na maior parte do mundo, a fome é um problema de acesso: existe comida suficiente, mas o que muitas vezes falta é o dinheiro para comprá-la. Famílias pobres chegam a gastar até 70% de sua renda em alimentos, daí a importância de reforçar as redes de proteção social, especialmente em épocas de alta de preços. No entanto, se isso não for acompanhado de programas de inclusão produtiva, dificilmente as famílias conseguirão manter-se acima da linha da pobreza, graças a seu próprio esforço. Para grandes exportadores de alimentos, a alta dos preços representa uma oportunidade. O desafio é utilizar isso em benefício da inclusão social. Mas o lucro com os preços mais altos nem sempre- chega até os agricultores familiares, muitas vezes ficando com intermediários do processo. Também é importante lembrar que a atual alta dos preços vem acompanhada de um aumento na volatilidade. Sem saber a que preço poderão vender sua safra, muitos agricultores têm receio de investir.

CC: Uma solução de longo prazo para os desafios da segurança alimentar está mais relacionada ao aumento da produção ou a uma melhor distribuição e utilização dos recursos disponíveis? E essa solução exige mais dinheiro ou vontade política, em âmbito mundial?
JG: Garantir a segurança alimentar depende, essencialmente, de traduzir a vontade política em ação concreta. Sem isso, o discurso fica vazio.
Para alimentar uma população mundial que deverá subir dos atuais 7 bilhões para 9 bilhões em 2050 e que vai se alimentar melhor, a FAO estima que precisamos aumentar a produção em 70%. Temos as condições de fazer isso, mas é preciso voltar a investir em agricultura. Entre a década de 1980 e 2005, a ajuda internacional destinada ao setor caiu de 17% para 3%.

http://www.cartacapital.com.br/politica/a-revolucao-duplamente-verde-de-jose-graziano


6. Agronegócio não garante segurança alimentar

Correio da Cidadania 6 de abril de 2011

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Na mesa dos brasileiros: resultados da agricultura familiar

De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é a agricultura familiar a grande responsável pela alimentação da população brasileira, garantindo em torno de 70% do que é consumido. “É a agricultura familiar que produz feijão, arroz, leite, verdura, é a produção diversificada que consumimos todos os dias. Tem uma importância muito forte para a segurança alimentar e também para a soberania alimentar”, afirma o secretário nacional de agricultura familiar do MDA Laudemir Muller. Ele diz que a produção da agricultura familiar tem crescido muito, acompanhando o consumo de alimentos, que também aumentou. Laudemir explica que a soberania alimentar também é garantida com este modelo de agricultura. “É a agricultura familiar que preserva as tradições, que tem uma produção diversificada, que mantêm a tradição das sementes. Então, na escolha do que nós comemos, a agricultura familiar é o grande bastião dessa diversidade, seja dos povos da floresta, do cerrado, dos grupos de mulheres”, comenta.
Entretanto, dados do próprio Consea mostram que o agronegócio cresce mais do que a agricultura familiar e, de acordo os participantes da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas, este modelo de produção tem ameaçado a segurança e a soberania alimentar do país por vários motivos. Entre os problemas do agronegócio estão a concentração de terras e a conseqüente diminuição das áreas destinadas à agricultura familiar; a baixa diversidade de produção, pois há regiões inteiras com apenas uma espécie plantada – como as monoculturas de eucalipto, cana de açúcar e soja; e a utilização de tecnologias como a dos agrotóxicos e transgênicos, que apresentam um risco para a saúde.
Um relatório do Consea lançado no final de 2010, que avalia desde a Constituição de 1988 até a atualidade a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à alimentação adequada no Brasil, apresenta dados que confirmam este problema. De acordo com o estudo, o ritmo de crescimento da produção agrícola destinada à exportação é muito maior do que para o consumo interno. “A área plantada dos grandes monocultivos avançou consideravelmente em relação à área ocupada pelas culturas de menor porte, mais comumente direcionadas ao abastecimento interno. Apenas quatro culturas de larga escala (milho, soja, cana e algodão) ocupavam, em 1990, quase o dobro da área total ocupada por outros 21 cultivos. Entre 1990 e 2009, a distância entre a área plantada dos monocultivos e estas mesmas 21 culturas aumentou 125%, sendo que a área plantada destas últimas retrocedeu em relação a 1990. A monocultura cresceu não só pela expansão da fronteira agrícola, mas também pela incorporação de áreas destinadas a outros cultivos”, diz o documento.
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http://www.cartacapital.com.br/carta-verde/agronegocio-nao-garante-seguranca-alimentar


7.Soberania alimentar: uma necessidade dos povos

O direito à alimentação é um direito humano básico, incluído na Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, 1944. “todas as pessoas têm direito a uma boa nutrição como condição sine qua non para um desenvolvimento pleno, físico e mental (artigo 25).”

João Pedro Stedile e Horacio Martins de Carvalho

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Durante o século XX, as sociedades se organizaram de tal maneira que a maioria desses fenômenos já não foram responsáveis pela ocorrência de fome e desnutrição. No entanto, a fome e desnutrição jamais atingiram tantas pessoas como na era contemporânea da historia da humanidade. Onde estaria a causa agora?

A explicação pode ser encontrada nas teses de nosso querido Josué de Castro: “a fome e a desnutrição não é uma ocorrência natural, mas resultado das relações sociais e de produção que os homens estabelecem entre si”.

De fato, a ocorrência da fome que atinge a milhões de pessoas — que em 2009 alcançou a um bilhão de seres humanos e em 2010 recuou em para 925 milhões, tem suas causas no controle da produção e na distribuição da produção e da renda entre as pessoas.
Nunca antes na humanidade a produção de alimentos esteve tão concentrada sob controle de uma mesma matriz de produção. Nunca antes na humanidade tão poucas empresas oligopolizaram o mercado, atuando a nível internacional e tiveram tanto controle sobre a produção e comércio de produtos alimentícios como agora. Estima-se que menos de 50 grandes empresas transnacionais tenham o controle majoritário da produção de sementes, de insumos agrícolas e da produção e distribuição dos alimentos em todo mundo.
O direito a alimentação, sob o manto do capitalismo internacionalizado, não é mais um direito humano, de todos os seres humanos, independente de sua condição social, de cor da pele, local de moradia, gênero e idade. Agora, o acesso a alimentos está regido pelas leis capitalistas do lucro e da acumulação. E, portanto, as pessoas só têm acesso a alimentos se tiverem dinheiro e renda para comprá-los. E como há uma elevada concentração da renda, em praticamente todas as sociedades, e mais gravemente nos paises do hemisfério sul, as populações pobres, majoritárias que vivem nesses países, sofrem as conseqüências da falta de acesso aos alimentos.
Vive-se uma situação mundial em que nunca antes o planeta havia produzido tantos alimentos, em função das técnicas agrícolas e da capacidade de beneficiamento e armazenamento, mas mesmo assim, nunca antes tantas pessoas estiveram privadas do acesso a esse direito humano, que fere a sobrevivência da própria espécie.
As chamadas políticas públicas, de responsabilidade dos governos que controlam os aparatos estatais, relacionadas com a política de abastecimento alimentar, estão mais do que nunca estabelecidas no âmbito geral de uma correlação de forças políticas determinadas pela macroeconomia mundial e corroboradas pelas práticas dos organismos multilaterais de defesa dos mercados oligopolistas. Assim, o comportamento do FMI (Fundo Monetário internacional), da OMC (organização mundial do comercio) e do Banco Mundial, sempre defenderam em primeiro lugar os interesses das empresas, encobertos sob o manto da liberdade de circulação do capital e das mercadorias. E no máximo, agora, defendem políticas governamentais compensatórias, para que a fome e a desnutrição não se transformem em tragédias sociais ou conflitos políticos internacionais. O outro organismo das Nações Unidas, criado para cuidar especificamente do tema, a FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) está completamente ausente e incapaz de propor políticas de mudanças estruturais aos governos. A FAO se transformou nas últimas décadas em apenas um organismo burocrático de pesquisa e registro dos volumes da fome e da desnutrição que atinge a humanidade. Ajuda a denunciar, porem não tem forças para combater suas causas.
Mesmo as políticas compensatórias recomendadas por esses organismos internacionais acabam atuando muito mais sobre o rebaixamento do custo de vida nas grandes cidades, e assim, facilitam a manutenção e agravamento de baixos salários e das condicionantes de desigualdade social registradas em todos os paises do hemisfério sul. E isso não tem sido contraditório, mas funcional aos interesses dominantes das grandes empresas e governos imperiais, com sua oligopolização do comércio de alimentos e com a política de dependência dos paises pobres, periféricos, perante os mercados internacionais de alimentos controlados por essas grandes empresas transnacionais.
Um dos principais estudiosos contemporâneos do problema, o professor suíço e consultor das Nações Unidas, Jean Ziegler nos adverte que : “Uma das principais causas da fome e da desnutrição de milhões de seres humanos é a especulação, que sobrevêm, sobretudo, da Chicago Commodity Stock Exchange (Bolsa das matérias primas agrícolas de Chicago), onde são estabelecidos os preços de quase todos os produtos alimentícios do mundo (…). Para resolver a crise alguns sugerem as seguintes soluções: regulação da especulação… em vetar de modo absoluto a transformação dos produtos agrícolas em biocarburantes… uma outra poderia ser que as instituições como Bretton Woods e a OMC poderiam mudar os parâmetros de sua política na agricultura e dar prioridade absoluta aos investimentos nos produtos de primeira necessidade e na produção local, incluindo sistemas de irrigação, infra-estrutura, sementes, pesticidas, etc. Trata-se, pois, de um problema de coerência. Muitos países que fazem parte da Internacional Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (Convenção Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) são também membros das instituições Bretton Woods e OMC (…).”3

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Estamos assistindo, também, a uma ofensiva do capital internacional sobre recursos naturais e terras disponíveis no hemisfério sul, para produção de energia, nos chamados agrocombustíveis, que podem ser usados nos veículos individuais, sozinhos ou mesclados com a gasolina e o óleo diesel. Evidentemente que isso afetará a produção de alimentos, pela utilização de terras férteis para o monocultivo de plantas agroenergéticas como a cana-de-açúcar, soja, palma africana, etc. Esse processo ademais contribui para a elevação dos preços dos alimentos, pois os preços da produção de agrocombustíveis estão relacionados com os preços internacionais do petróleo, e elevam a media da renda da terra e dos preços médios de todos os produtos agrícolas. E finalmente, a ampliação de áreas de agricultura baseadas em grande escalas de monocultivos com uso intensivo de venenos agrícolas, afetam o equilíbrio do meio ambiente, destroem a biodiversidade, afetam o nível das águas, e por conseqüência a médio prazo trarão conseqüências danosas a toda produção agrícola, naquelas regiões.
Essa tendência geral pelo controle oligopolizado mundial da produção, processamento e distribuição de alimentos tende a sugerir novas formas de colonialismo. Essas estratégias macro políticas sobre o abastecimento alimentar ditadas pelas empresas transnacionais segue no sentido inverso de qualquer consideração e proposta de soberania alimentar. A agricultura brasileira está seguindo nesse caminho, apesar dos programas governamentais que visam compensar os distúrbios na oferta de alimentos provocados pelos mercados oligopolizados. Não é em demasia assinalar, conforme observou Peter Rosset em 2008, que as mesmas empresas transnacionais que controlam os mercados de grãos no Brasil fazem com que “61% de todos os contratos futuros de grãos nos EUA sejam adquiridos por fundos (de risco) multimercados (…) Esses fundos têm ‘descoberto’ o ‘commodities trading’ [comércio de bens] como resultado do colapso do verdadeiro mercado estatal nos EUA, e estão em busca desesperada de novas áreas de investimentos. Eles vivem da volatibilidade nos preços, tirando seus lucros das oscilações tanto para altas como para quedas, e estão atualmente inflando a ‘bolha’ das commodities, que está deixando a alimentação fora do alcance das pessoas pobres por todo o mundo”.12
Outro exemplo grotesco da especulação financeira buscando lucro fácil e virtual, com o comércio de papéis de commodities agrícolas é dado pelo banco ABN Amro. O gigante financeiro ABN Amro é particularmente adepto de obter lucro no atual mercado. Como provedor de produtos de investimento em commodities para investidores privados, o ABN Amro se tornou a partir de março(2008) o primeiro banco a oferecer certificados que permitem aos pequenos investidores apostarem na alta dos preços do arroz na Bolsa de Futuros de Chicago. O departamento de marketing do banco reagiu com precisão fria às manchetes sobre a fome ao redor do mundo. Quando especialistas alertaram sobre a crise de fome iminente e a instabilidade política associada a ela, o ABN Amro apresentou uma nova campanha publicitária em seu site. Com a proibição pela Índia da exportação de arroz, dizia o anúncio, a oferta mundial de arroz caiu ao mínimo: agora o ABN Amro está possibilitando, pela primeira vez, investir no alimento básico mais importante da Ásia”.13
O modelo de produção e tecnológico praticado pelo agronegócio no Brasil e em muitos países, ao buscar o controle da oferta dos produtos alimentares e dos sistemas agrícolas, com elevada predisposição para a permissividade na presença do capital estrangeiro através de acordos e fusões agroindustriais entre empresas nacionais e estrangeiras, inclusive para a apropriação de terras, prejudica as iniciativas favoráveis à soberania alimentar nacional. Impõem condições concretas para que o abastecimento alimentar brasileiro fique subordinado ao mercado internacional sob o controle das grandes empresas privadas. Isso já resultou na eliminação dos estoques estratégicos governamentais nacionais a partir das pressões da Organização Mundial do Comércio – OMC em nome do livre comércio mundial e da distorsões mercantis que esses estoques poderiam provocar. Isso levou a que no passado os governos com vocação neoliberal tenham inclusive eliminado, e privatizado as redes publicas de armazenagem, no Brasil e em todo mundo. Deixaram assim a oferta de alimentos à mercê dos interesses das grandes empresas.
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8. “Livre comércio agrícola é máquina de fabricação de pobreza”

Para o pesquisador francês Marcel Mazoyer, do Instituto Nacional Agronômico Paris-Grignon, em alguns países a política de liberalização do mercado agrícola tem levado até 80% da população à pobreza. As regiões mais ricas, nas quais os produtores conseguem se apropriar de técnicas de aumento de produtividade, se tornam mais competitivas e aos poucos eliminam os pequenos. “Trata-se de desenvolvimento desigual, que termina no empobrecimento e exclusão dos camponeses”, disse. “Em muitos lugares, como no Brasil, o capitalismo agrário está impedindo a agricultura familiar e camponesa”.
06/07/2010

Está no Brasil o pesquisador francês Marcel Mazoyer, professor emérito de agricultura comparada e de desenvolvimento agrícola no Instituto Nacional Agronômico Paris-Grignon. Mazoyer veio ao país participar de uma série de debates de lançamento do livro História das Agriculturas no Mundo – do Neolítico à Crise Contemporânea, escrito em parceria com Laurence Roudart, mestre em economia política agrícola e alimentar pelo mesmo instituto francês.
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Carta Maior – Seu livro resgata a epopéia da agricultura durante milênios a partir da perspectiva dos camponeses produtores e vendedores de produtos agrícolas. Por que esta escolha?
Marcel Mazoyer – Porque sou filho de camponeses. Estudei economia agrícola na escola, mas venho de uma região de camponeses pobres, no centro da França, numa parte da Borgonha, onde pequenos produtores foram pouco a pouco eliminados pela concorrência, ao longo de um processo de empobrecimento. Neste processo, as regiões mais ricas, nas quais os produtores conseguem se apropriar de técnicas de aumento de produtividade, se tornam mais competitivas e aos poucos eliminam os pequenos. Trata-se de desenvolvimento desigual, que termina no empobrecimento e exclusão dos camponeses. Eu cresci dentro desta realidade. Na minha cidade havia 20 fazendas. Hoje não há mesmo uma.
CM – A concentração não seria uma consequência natural do capitalismo?
MM – Não. Mesmo fora do capitalismo, uma economia mercantil concorrencial resulta nisso. O objetivo perseguido é encontrar meios de produção mais eficazes, que vão aumentar a concorrência, fazer baixar o preço da produção e dominar o mercado, excluindo aqueles que não são competitivos. Isso aconteceu com a França e com os países de capitalismo desenvolvido da Europa Ocidental. Mas nesses países a agricultura não era capitalista; eram países capitalistas baseados numa agricultura familiar camponesa. No final do século XVIII, os dinamarqueses fazem uma reforma agrária, realizada pela nobreza, e este modelo é seguido posteriormente pela Europa Ocidental, com uma única exceção: os ingleses. Lá os camponeses foram expropriados, para fazer baixar o preço da força de trabalho na indústria, enviar trabalhadores para colonizar os Estados Unidos e a Austrália e também para ter, na agricultura da Inglaterra do século XVII e XVIII, a mão de obra mais barata possível. Ou seja, o modelo de desenvolvimento da agricultura inglesa era latifundiário. O mesmo aconteceu aqui no Brasil, desde a abolição da escravatura. A melhor maneira de acumular o capital e de ter a mais barata força de trabalho disponível é privar o camponês de seu acesso à terra.
CM – Mas o fato de não ser uma política agrícola capitalista não impediu a concentração de renda.
MM – Exato. E esta concentração se deu de forma desigual. Sozinho – não tem nada a ver com a idéia de trabalhadores assalariados do capitalismo –, os produtores franceses passaram de 50 para 100 hectares, de um trator de 100 cavalos para um de 200 cavalos, e assim por diante. Estudando, vi que poderíamos agir diferente. Poderíamos ter uma política que não permitisse que o desenvolvimento desigual se desse de forma muito rápida.
CM – Como a França fez a isso?
MM – Em 1962, o ministro francês da Agricultura, em diálogo com lideranças dos jovens camponeses, que não estavam satisfeitos com o que herdariam de seus pais – propriedades não competitivas –, toma uma decisão política muito importante: implementa uma lei anti-acumulação, que proibia as propriedades de crescerem a um tamanho maior daquele que demandasse mais de dois trabalhadores. Ou seja, interditamos a agricultura capitalista assalariada. Proibimos a constituição de propriedades por capitais que não os das famílias de agricultores. Deixamos de fora o capital estrangeiro na compra de terras. Havia, portanto, decisões de governos – que não eram necessariamente de esquerda; na França o presidente era De Gaulle – que impediam o desenvolvimento desigual do capitalismo na agricultura.
CM – Havia um objetivo de proteger a soberania alimentar naquele momento?
MM – A idéia de praticar uma política de soberania alimentar, ou seja, uma política agrícola que respondesse aos interesses dos franceses, era algo em que ninguém pensava naquela época. Esta preocupação existe hoje porque há uma regulamentação internacional que impede alguns países de fazer isso. Mas em 1945, os países desenvolvidos da Europa Ocidental e o Japão, após a guerra, não tinham produção suficiente. Quem tinha excedente de produção eram Estados Unidos, Canadá, Austrália e África do Sul, enfim, países anglo-saxões que não haviam sido quebrados pela guerra. Havia fome quase em todos os países da Europa, talvez até mais do que na África. Então éramos importadores de alimentos, e os Estados Unidos emprestava dinheiro a todos os países que estavam em necessidade alimentar para comprar seus próprios excedentes. O preço dos alimentos era muito alto, e os Estados Unidos lucraram com esses investimentos. Mas a preocupação não era proteger a soberania alimentar, e sim a concentração da propriedade.
CM – Mas essa política não foi reproduzida em todos os países.
MM – Não. As agriculturas americana e européia aumentaram sua capacidade de produção, baixaram o preço de seus produtos e, pouco a pouco, eliminaram os pequenos agricultores em países que não tinham uma política de proteção. Quando os produtos chegavam na África, onde a produtividade era 10, 20, 50 vezes menor, esses produtos provocavam paralisação do desenvolvimento e queda na renda. Ou seja, as exportações daqueles que já são equipados e muito competitivos afetam todos os camponeses dos países que não se protegem. E a África estava competindo com os preços mais competitivos do mundo.
CM – Como isso começou?
MM – Nos anos 70, o Plano de Ajuste Estrutural impôs aos países pobres e subdesenvolvidos do Sul a liberalização de seu mercado, o que acabou com as poucas indústrias que eles tinham em competição com as indústrias dos países mais desenvolvidos. Nos anos 80, começamos a impor também o livre comércio agrícola. É preciso diferenciar a liberalização agrícola e da financeira-industrial. Nos anos 70 houve a liberalização dos capitais, sobretudo do Japão, que envia os capitais acumulados à sua periferia no sudeste asiático. Depois, pouco a pouco, todos os países capitalistas foram obrigados a fazer o mesmo. Então chegamos à globalização liberal, à exceção da agricultura. Até aí, o GATT (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio) não havia tocado na agricultura. O princípio da soberania alimentar excluía que falássemos de liberalização agrícola. Cada país tinha o direito de fixar sua política. Os países importadores – como nós, de 1945 a 1970 – faziam os acordos com os americanos, mas se protegiam. Hoje se um país agrícola pobre reivindica o direito de se proteger os países desenvolvidos lembram a Rodada Uruguai [que levou à liberalização do comércio agrícola]. Mas antes proteger a agricultura de um país para atender às necessidades de seu povo era algo inquestionável. Não conheci nenhum economista, nem na FAO, no Banco Mundial ou no FMI, na OCDE [Organização Européia de Cooperação e Desenvolvimento] que dissesse “é necessário fazer o livre comércio agrícola.” Se alguém falasse isso seria considerado louco.
A política de soberania alimentar fazia parte de um conjunto de políticas globais kenesyanas, incluída a Política do Pleno Emprego. A ONU havia promovido a reforma agrária em todos os lugares para evitar a miséria campesina. O capitalismo havia compreendido que seria necessário eliminar a pobreza para que o sistema funcionasse bem. Não por bondade, mas por necessidade. Não era uma coisa de política de esquerda ou direita. Todos os governos implementaram esta política. Por isso, na Europa não havia mais pobres, não havia desemprego, mendicância, quase não havia prostituição, todo mundo tinha educação até os 16 anos e acesso à saúde.
Essa política durou 30 anos, mas em 1975 começam os desequilíbrios, porque nos esquecemos de estender os benefícios ao restante do mundo. E, por uma questão de correlação de forças, em função de uma onda neoliberal que crescia, decide-se suprimir esta política nos países desenvolvidos e de utilizar o capital para explorar a mão de obra de maneira selvagem nos quatro cantos do mundo – e assim contribuir para baixar os salários e gerar desemprego nos outros países.
Este Plano de Ajuste Estrutural, de 1980 a 1990, fez todos países reduzirem gastos, o que foi extremamente negativo para a população. A pobreza aumentou sensivelmente. Mas eles perceberam que, apesar disso, nada provocou a revolução. Ou seja, era politicamente suportável. E foi aí que resolveram incluir a agricultura no programa do GATT e liberar o comércio agrícola.
CM – Que tipo de conseqüências essa liberalização gerou?
MM – Isso foi decisivo para os países agroexportadores desenvolvidos: Estados Unidos, Canadá, Austrália. Em 1974, quando houve a explosão dos preços agrícolas, pessoas compravam um milhão de hequitares no Mato Grosso, na Argentina. É lá que os capitais se aproveitam da revolução agrícola e da revolução verde e começa a primeira onda de grande investimento capitalista na agricultura. Começa a exportação brasileira, argentina: soja, trigo, milho. As exportações americanas e canadense estabilizam e, em alguns momentos, diminuem. O que fazem então os Estados Unidos diante de países que podem produzir na mesma quantidade, ou mais, por um custo menor? Eles compreendem que vão perder parte do seu mercado de exportação – e o controle do mercado agrícola internacional não é apenas uma posição de poder econômico, mas também de poder político. São obrigados então a agir de duas formas em paralelo: proteger seus investimentos, seus negócios agrícolas e alimentares nos quatro cantos do mundo e também dentro do país. Fixam então um preço internacional e garantem que seus produtores não terão prejuízo vendendo os produtos a este valor para fora e também dentro do país. Isso faz com que seus produtos não cheguem ao mercado externo mais caros que os produtos brasileiros ou argentinos. Na prática, fazem dumping. Protegem seus agricultores vendendo de maneira mascarada produtos subsidiados.
CM – A política protecionista francesa, no entanto, é mais criticada pelos grandes produtores brasileiros.
MM – O sistema americano é muito pior que o protecionismo europeu. Nós não exportamos muito. O que acontece nos EUA é dumping. É isso que permite ao agronegócio brasileiro dizer aos africanos que “a culpa é daqueles que subsidiam”. A causa do subsídio é o dumping econômico e social, ecológico do grande capital, que adquire as melhores terras do mundo. Fazendo seu sistema de subvenção, os americanos são cúmplices do livre comércio do agronegócio instalado no Brasil, na Argentina. Esta é a verdade. São defensores do livre comércio pra todo mundo, menos para eles.
Já a crítica do agronegócio brasileiro é natural. Quando você é proprietário de capitais ou parte do agronegócio brasileiro e está num território com a maior quantidade e a melhor qualidade de terras disponíveis, com os salários mais baixos do mundo, cada vez que alguém lá fora diz que não quer importar a produção brasileira, por qualquer razão que seja, vira seu inimigo. Mas isso não é novo. Os ingleses fizeram uma guerra com a China para poder exportar seus produtos industriais; a França fez guerras na África e na Indochina. Ou seja, a guerra econômica não começa com os latifundiários brasileiros. É uma história antiga. Aqueles que são mais fortes e mais competitivos estão sempre a favor do livre comércio.
CM – No seu livro o senhor afirma que isso gera pobreza. Como?
MM – Na agricultura o livre comércio traz problemas muito sérios. Porque não é só uma parte do que você consome que desaparece diante das mercadorias que chegam de fora mais baratas, mas, nos países mais pobres, cerca de 80% da população – os camponeses – é destruída com as importações agrícolas. Você transforma 80% da população em desempregados. É isso o que acontece com o livre comércio na África, por exemplo, onde a agricultura ainda é manual. E é manual porque não houve industrialização, já que o poder de compra da maioria da população foi sendo destruído. Então você fabrica favelados e imigrantes.
CM – Acabar com o livre comércio agrícola seria a solução?
MM – Veja, hoje há 3 bilhões de pessoas que vivem com menos de 3 dólares por dia; 2 bilhões que não ingerem a quantidade necessária de calorias por dia – e que desenvolvem uma série de doenças em função disso – e 9 milhões de pessoas que morrem de fome por ano, todos os anos. Lançaram então os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que tinham como meta reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população com renda inferior a 1 dólar por dia e reduzir pela metade, no mesmo período, a proporção da população que passava fome.
Os neoliberais, depois do Plano de Ajuste Estrutural, sabiam da pobreza que haviam produzido. Estavam conscientes que o livre comércio podia produzir estragos. Então resolvem mobilizar o possível para limitar os problemas. Pensaram: vamos aumentar o orçamento para a agricultura nos países, aumentar a ajuda alimentar via programas da ONU, aumentar os investimentos públicos em desenvolvimento… Todo um conjunto de coisas que, se tivessem sido feitas, teriam permitido barrar o agravamento da pobreza. O problema é que nenhuma dessas medidas atacava a raiz do problema: o livro comércio agrícola, que destruía centenas de milhares de camponeses. A idéia era atenuar os efeitos da liberalização agrícola, mas ninguém disse isso explicitamente. Muito menos autorizaram os países a se protegerem. E proteger os camponeses da África, impedir que eles empobreçam e tenham fome é central.
CM – Mas as conseqüências não se restringem à África.
MM – É preciso dizer: não foi na África que isso começou. No Brasil vocês foram os primeiros a produzir a fome entre os camponeses, com os latifundiários, antes mesmo de exportar para o mundo todo. E os latifundiários continuam fazendo isso. Tomam as melhores terras, que são inacessíveis aos camponeses – e que às vezes, de tão pobres, as vendem – e também uma parte do mercado interno e externo. Fazem isso porque detêm capital. Graças ao que aconteceu entre 1945 e 1970, os camponeses do Norte e do Sul fizeram de tudo para serem incluídos na agricultura modernizada, mecanizada, competitiva. Mas o que os impede de conseguir isso? É que eles são muito pequenos. Em muitos lugares, como no Brasil, o capitalismo agrário está impedindo a agricultura familiar e camponesa, como faziam na época do velho capitalismo arcaico, que impedia os camponeses de ter acesso à terra para manter o monopólio. Agora que eles são capazes de comprar os equipamentos da revolução agrária, os grandes proprietários compram as melhores terras, as melhores máquinas e utilizam as técnicas mais eficazes. Muitas vezes utilizam o conhecimento produzido por milhares de camponeses em todo o mundo. E fazem isso para controlar a maior parte do mercado interno do Brasil e também o mercado internacional.
CM – No entanto, vigora na opinião pública brasileira a idéia de que o agronegócio, via exportações, é o responsável pelo superávit em nossa balança comercial e por parte significativa do sucesso da nossa economia. Por isso, vale tudo para ampliar sua produção, inclusive expandir a fronteira agrícola em regiões da Amazônia. Como o senhor vê essa política?
MM – Antes de mais nada, é preciso confirmar essa história de que a balança comercial brasileira é superavitária graças ao agronegócio. É preciso que a opinião pública saiba que o Brasil exporta o que o povo brasileiro não come e que deveria comer. Ainda há subnutridos no Brasil. É um escândalo. O agronegócio poderia exportar, ou o governo poderia deixar o agronegócio exportar, sob a condição de que não houvesse mais fome no Brasil. Todo mundo sabe, inclusive os ruralistas, que a única solução para acabar com o desemprego e garantir alimentação para todos é que aqueles que pleiteiam terra – ou seja, 4 ou 5 milhões de pessoas – tenham acesso muito rápido à terra. Do contrário, você pode fazer crescer todo o agronegócio que quiser e isso não mudará nada. Além disso, é preciso questionar: a balança comercial está a benefício de quem? Sem dúvida não é das pessoas pobres. É de uma classe média alta, para comprar coisas que são muito menos indispensáveis do que comida para os pobres.
Sem falar que, nos últimos 10 anos, houve um avanço sobre terras que antes eram dos camponeses – e isso inclui terras de minorias indígenas em reservas protegidas. Isso fabrica pobres e subnutridos. Expropriar a terra de camponeses é algo que deveria ser absolutamente proibido. É preciso um plano para reverter essa situação. Barrar o agronegócio é politicamente impossível e, economicamente, uma loucura. Sozinho não é possível reverter o poder do capitalismo agrário. Lula compreendeu bem isso. A solução então é impedir que ele adquira terras dos camponeses e indígenas. Além disso, há terra suficiente no Brasil para que sejam assentadas mais do que 5 mil pessoas por ano. Isso não é nada, não é reforma agrária. A soberania alimentar é um assunto político que deve suprimir a pobreza e permitir à máquina econômica alimentar o povo brasileiro. Mas hoje o agronegócio brasileiro é a máquina que opera contra a soberania alimentar, no Brasil e no resto do mundo.


Fonte: Carta Maior

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