sábado, 22 de outubro de 2011

O BIOCOMBUSTÍVEL NO BRASIL

Novos Estudos - CEBRAP
Print version ISSN 0101-3300
Novos estud. - CEBRAP no.78 São Paulo July 2007
http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002007000200003



O biocombustível no Brasil





Rogério Cezar de Cerqueira LeiteI; Manoel Régis L. V. LealII

IFísico, é professor emérito da Unicamp
IIPesquisador do "Projeto Etanol"






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RESUMO

A busca por soluções alternativas para o consumo do petróleo, desde a década de 1970 até hoje, e a preocupação com a poluição ambiental e a emissão de gases de efeito estufa na atmosfera reforçam cada vez mais a importância da produção comercial dos biocombustíveis. Este artigo analisa a evolução do etanol e do biodiesel no Brasil e examina a tecnologia disponível em direção a um desenvolvimento sustentável.

Palavras-chave: petróleo; efeito estufa; biocombustíveis;etanol; biodiesel.


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SUMMARY

The search for alternative solutions for the consumption of the petroleum, since the decade of 1970 until today, and the concern with environmental pollution and reduction of gas emissions in the atmosphere intensifies the importance of the commercial production of the biofuels. This article analyzes the evolution of ethanol and biodiesel in Brazil and examines the technology available towards a sustainable development.

Keywords: petroleum; greenhouse effect; biofuels; ethanol; biodiesel.


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As razões para o interesse pelos biocombustíveis são muitas e variam de um país para outro e também ao longo do tempo, sendo as principais as seguintes:

• Diminuir a dependência externa de petróleo, por razões de segurança de suprimento ou impacto na balança de pagamentos;

• Minimizar os efeitos das emissões veiculares na poluição local, principalmente nas grandes cidades;

• Controlar a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera.

A primeira razão acima foi a grande motivadora, após os dois choques de petróleo na década de 1970, que incentivou as nações importadoras de petróleo a buscarem alternativas para este insumo fóssil. Floresceram vários programas de desenvolvimento de energias renováveis, de economia de energia, de uso da energia nuclear, do gás natural e do carvão mineral. Este quadro se manteve até meados dos anos 1980, quando os preços internacionais do petróleo caíram a valores em torno de US$ 12 por barril e aí o interesse pelos substitutos de petróleo arrefeceu devido ao custo dos subsídios necessários para mantê-los no mercado.

Já nos anos 1970, a preocupação com a qualidade do ar nas grandes cidades e com os efeitos negativos das emissões veiculares nessa qualidade renovou o interesse pelos biocombustíveis. Os grandes produtores e usuários de álcool, os Estados Unidos e o Brasil, passaram a focar neste aspecto de uma forma séria e intensa, enquanto outros países, como o Japão e os da União Européia, mantiveram um interesse mais reduzido pelo assunto. A obrigatoriedade de adicionar componentes oxigenados na gasolina, para reduzir as emissões de monóxido de carbono e hidrocarbonetos, abriu mercado para o álcool, mas ele tinha de competir com outros oxigenados como o MTBE (Metil Tércio Butil Éter).

Na segunda metade da década de 1990, com a introdução da injeção eletrônica e do catalisador de três vias nos veículos automotivos, e a conseqüente redução drástica das emissões no escapamento, o efeito poluidor desses veículos deixou de ser uma grande preocupação mas continuou a motivar o uso do álcool. A competição entre o metanol e o etanol pelo mercado de álcool combustível terminou com a vitória total deste último.

Desde a década de 1980 os cientistas passaram a alertar os Governos sobre o fenômeno do aquecimento global, mostrando evidências cada vez mais convincentes de que a temperatura da Terra estava subindo a uma taxa maior do que a esperada pelos registros históricos, devido a ações do homem; a queima de combustíveis fósseis seria a principal causa desse fenômeno e os níveis de dióxido de carbono na atmosfera, o principal gás de efeito estufa, havia subido de 280 PPM (partes por milhão), índice que prevalecia antes da Revolução Industrial, para 380 PPM nos dias de hoje. A Convenção do Clima no Rio de Janeiro, em 1992, e a subseqüente assinatura do Protocolo de Quioto, em 1997, oficializaram essas preocupações com o clima global e estabelecerem responsabilidades para as nações signatárias da Convenção Quadro Sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas.

O Protocolo de Quioto foi finalmente ratificado em março de 2005, estabelecendo metas quantitativas para a redução da emissão de gases de efeito estufa pelos países desenvolvidos, referentes aos níveis de 1990. O primeiro período de verificação será de 2008 a 2012, e os países em desenvolvimento estão fora dessa obrigatoriedade.

Nos últimos três anos os preços do petróleo subiram sensivelmente, passando do patamar de US$ 20-30 por barril para um novo patamar entre US$ 50-70 por barril. As instabilidades políticas e sociais nas regiões produtoras e a convicção de que o pico de produção será atingido nos próximos dez ou vinte anos estão mantendo a volatilidade dos preços desse insumo estratégico.

É nesse quadro que os biocombustíveis vão se inserir no mundo com, no mínimo, uma dupla responsabilidade: ajudar a reduzir a emissão de gases de efeito estufa e substituir parcialmente o petróleo para alongar sua vida útil.

Hoje, os biocombustíveis em uso comercial no mundo são o etanol e o biodiesel, nos níveis de 50 bilhões de litros e 5 bilhões de litros por ano, respectivamente.



ETANOL NO BRASIL

O etanol vem sendo usado como combustível no Brasil desde os anos 1920, mas foi somente com o advento do Proálcool, em novembro de 1975, que seu papel ficou claramente definido a longo prazo, permitindo que o setor privado investisse maciçamente no aumento de produção. A motivação do governo para lançar o Proálcool foi o peso devastador da conta petróleo na balança de pagamentos do país, que importava na época mais de 80% do petróleo que consumia.

A produção anual, que estava em torno de 600 milhões de litros, aumentou rapidamente e ultrapassou a meta do programa, de 10,6 bilhões de litros anuais, em menos de dez anos. Com o aumento da produção interna de petróleo e com a queda de seus preços internacionais, o governo perdeu o interesse pelo programa, que passou a navegar à deriva. Os subsídios foram reduzidos e o etanol hidratado perdeu competitividade perante a gasolina; a obrigatoriedade do uso do anidro na mistura com a gasolina e a velha frota de carros a álcool mantiveram o programa vivo, apesar da falta de apoio do governo. Um ponto vital foi a manutenção da infra-estrutura de abastecimento — o etanol estava disponível em mais de 90% dos 30 mil postos de combustível instalados no país.

Em 2001 o mercado de etanol no Brasil foi totalmente desregulamentado, passando a prevalecer a livre competição entre os produtores. O governo não mais estabelecia preços nem cotas. Felizmente, em 2002 começou uma nova elevação nos preços internacionais do petróleo, e o conseqüente aumento de preço da gasolina, que trouxe de volta o interesse do consumidor pelo carro a álcool — as vendas antes não deslanchavam pelo receio que tinha a população quanto à garantia de abastecimento. Percebendo isso, as montadoras de veículos passaram a trabalhar no desenvolvimento do motor flexível ao combustível (FFV — Flex Fuel Vehicle), que poderia operar com gasolina, etanol ou qualquer mistura desses dois combustíveis. O uso de gasolina ou etanol nesses veículos depende do preço relativo entre eles, considerando que a equivalência em quilometragem é de 0,7 litro de gasolina por litro de etanol.

Analisando a situação do etanol combustível hoje no Brasil notam-se os seguintes pontos marcantes:

• O etanol representa cerca de 40% dos combustíveis para motores leves (ciclo Otto);

• Não existem subsídios para o etanol e, mesmo assim, ele consegue competir com a gasolina; os custos de produção foram reduzidos em cerca de 70% desde 1975;

• O Brasil é auto-suficiente em petróleo, importando diesel e exportando outros derivados;

• Cerca de 50% da cana moída no Brasil é usada para produzir etanol;

• Há uma crescente expansão do mercado externo tanto para açúcar como para etanol, sendo difícil hoje identificar o real potencial do mercado mundial de etanol;

• O setor sucroalcooleiro está em franca expansão: existiam 320 usinas em 2001, hoje já são 360, e 120 projetos estão em vários estágios de execução (expansões e novas usinas);

• O Brasil é o maior produtor de etanol de cana no mundo, mas, em produção total, fica atrás dos Estados Unidos, que usa o milho como matéria-prima;

• A tecnologia de produção de etanol no Brasil está totalmente madura, permitindo ainda alguns ganhos de produtividade na área agrícola e pouca coisa na área industrial; existem variedades de cana geneticamente modificadas que permitiriam grandes reduções nos custos de produção, embora não possam ser utilizadas pela morosidade do processo de liberação.

Com tudo isso, pode-se afirmar com muita convicção que a produção de etanol no Brasil está perfeitamente consolidada, podendo crescer ainda na substituição da gasolina caso a volatilidade dos preços do petróleo continue. Assim, o Brasil poderá vir a ser um grande exportador de etanol e gasolina.



BIODISEL NO BRASIL

O desenvolvimento de substitutos do diesel foi tentado com muito afinco no início do Proálcool, como forma de reduzir ainda mais o consumo de petróleo e de manter o perfil de produção de derivados de acordo com a capacidade das refinarias do país. O processo fracassou por várias razões, entre elas os baixos preços do diesel na época, e as atividades cessaram. Com isso, a substituição parcial da gasolina pelo etanol causou desequilíbrio no perfil de refino de petróleo com reflexos na qualidade do diesel, provocando a necessidade de importar cerca de 20% de diesel consumido e exportar parte da gasolina produzida. O governo voltou a se interessar pelo biodiesel quando sua produção e consumo passaram a crescer na Europa, principalmente na Alemanha; também vislumbrou uma forma de fortalecer a agricultura familiar e assim melhorar a inclusão social, um problema muito sério no Brasil. Em 6 de dezembro de 2004 foi lançado oficialmente o Programa Nacional de Produção de Biodiesel, regulamentado pela Lei nº- 11.097, de 2005. O programa estabeleceu a obrigatoriedade do uso de 2% de biodiesel misturado ao petrodiesel a partir de 2008 e de 5% a partir de 2013; esta última data poderá ser antecipada dependendo da capacidade de produção instalada. Para favorecer o pequeno produtor, o programa definiu impostos diferenciados dependendo da origem da matéria-prima, sendo o maior desconto para a produzida por pequenos produtores no Norte-Nordeste. O grande produtor não teria benefícios fiscais, sendo a taxação igual ao do diesel mineral. O produtor de biodiesel, para receber os benefícios fiscais no preço de venda nos leilões, precisa possuir o Selo Social que assegura o atendimento dos requisitos impostos pela lei.

A grande esperança do governo em viabilizar a produção de óleos vegetais e biodiesel na região semi-árida do Nordeste é a cultura da mamona. Alguns projetos foram implantados nessa linha, merecendo destaque a unidade da Brasil Ecodiesel com a usina em Floriano e a plantação de mamona em Canto do Buriti, ambas no Piauí. A usina tem capacidade de produção de 7 milhões de litros por ano usando o processo de transesterificação. O módulo agrícola foi implantado inicialmente em 5 mil hectares, divididos em lotes de 25 hectares por família; cada família deverá cultivar mamona consorciada com feijão, ou outra cultura da escolha da família, em quinze hectares. Os dez hectares restantes serão usados para área de preservação e outros cultivos da família. No final da implantação do projeto serão 40 mil hectares plantados. Cada módulo de produção agrícola contará com ampla infra-estrutura, com escola, posto médico e área de lazer.

O projeto, aparentemente bem estruturado, com um bom conceito de inclusão social e tecnologia industrial de boa qualidade, não está operando como planejado, pois a matéria-prima utilizada tem sido principalmente a soja importada da região Centro-Oeste. Isso prova que não bastam boas intenções e que uma realidade não pode ser desfeita simplesmente com o estabelecimento delas. Tudo indica que faltou tecnologia na parte agrícola do projeto. A mamona recebeu muito pouca atenção nos últimos trinta anos e de repente foi lançada como a grande solução para a inclusão social via agricultura familiar. Há apenas duas variedades comerciais para as condições nordestinas e as técnicas de cultivo e manejo não parecem estar suficientemente desenvolvidas, sem contar com a falta de preparo e treinamento dos agricultores. A mamona precisará de pelo menos mais dez anos, com base na experiência com outras culturas, para ser desenvolvida como uma opção comercial de matéria-prima para a produção de biodiesel. Isso vale também para outras culturas ainda sem experiência de plantio comercial, como o pinhão-manso.

A soja, com uma tecnologia agrícola já bem desenvolvida e perto de 25 milhões de hectares plantados no país, é hoje a principal matéria-prima na produção de biodiesel. É uma opção ruim do ponto de vista do balanço energético, da ocupação de terras e da inclusão social, mas é a melhor do ponto de vista econômico e de disponibilidade, tendo, portanto, predominado sobre as outras alternativas de matéria-prima. Todo país que inicia um programa de biocombustíveis sempre se baseia nas opções já em pleno desenvolvimento comercial. Assim foi no Brasil com o etanol de cana-de-açúcar, nos Estados Unidos com o etanol de milho e o biodiesel de soja, na Europa com o etanol de trigo e beterraba e o biodiesel de colza. Uma cultura exótica ou pouco conhecida precisará de tempo e recursos para ser desenvolvida como opção comercial.



O FUTURO DOS BIOCUMBUSTÍVEIS

Como já foi mencionado acima, a maior motivação para o uso de biocombustíveis é seu potencial de reduzir a emissão de gases de efeito estufa (GEE) de uma forma sustentável. No entanto eles terão de competir com outras formas de energia renováveis e também com tecnologias de seqüestro de carbono, como a injeção e o armazenamento de dióxido de carbono em poços exauridos de petróleo. A economia de energia é uma alternativa de redução de GEE que terá de ser utilizada, mas enfrentará dificuldades em alguns casos por exigir mudança de hábitos, como o uso do veículo particular para transporte. Dessa forma, torna-se muito importante o balanço energético da cadeia produtiva do biocombustível e a quantidade de gases de efeito estufa emitidos na sua produção, incluindo as fases agrícola e industrial. Nesse aspecto, o etanol de cana-de-açúcar tem se mostrado a melhor opção até o momento, pois consome 1 unidade de energia fóssil para 8 unidades de energia renovável produzida; para o etanol de milho ou de trigo essa relação é de 1,1 a 1,5 (dependendo de como se leva em conta o valor energético dos subprodutos). Para o biodiesel, esse balanço indica que a relação entre a energia renovável do biocombustível e a energia fóssil gasta na sua produção só excede o valor 3 para o caso do dendê.

Outro ponto importante na sustentabilidade do biocombustível é a necessidade de terras para produzi-lo. Comparando o etanol de cana-de-açúcar com o biodiesel de mamona vemos que um hectare cultivado com cana produz mais de 6 mil litros por ano de etanol, ao passo que esse mesmo hectare plantado com mamona proporciona apenas 500 litros de biodiesel. Dessa forma, os 13 bilhões de litros de etanol combustível que substituem cerca de 40% da gasolina utilizam pouco mais de 2 milhões de hectares de cana; para substituir 40% do diesel consumido no Brasil, ou seja, 16 bilhões de litros, seriam necessários 32 milhões de hectares plantados com mamona, o que representa cerca da metade da área cultivada no nosso país.

Toda a produção mundial de biocombustíveis se baseia hoje nas chamadas tecnologias de primeira geração, o que significa produção de etanol a partir de açúcares ou amidos (cana, beterraba, milho, trigo, mandioca) e biodiesel de óleos vegetais ou gordura animal (soja, mamona, dendê, sebo, óleo de fritura). Estão em desenvolvimento várias tecnologias que utilizam os materiais lignocelulósicos como matérias-primas (resíduos agroflorestais, madeira de florestas plantadas, culturas energéticas de curto ciclo, lixo urbano), que são mais baratos, mais abundantes e podem ser produzidos nas mais variadas condições de solo e clima.

A cana-de-açúcar será beneficiada com essas tecnologias emergentes, pois além do açúcar ela produz uma grande quantidade de fibras na forma de bagaço e palha; atualmente quase todo o bagaço é usado para fornecer a energia de que a usina precisa e a palha é queimada antes da colheita. Com a redução do consumo energético nas usinas, o fim das queimadas e o início do recolhimento da palha, a produção de etanol por tonelada de cana processada poderá crescer em torno de 50% com a produção de etanol dos resíduos da cana.

O etanol já é hoje um grande sucesso no Brasil com substituto da gasolina e seu futuro é promissor com o advento das tecnologias de segunda geração. O biodiesel ainda tem um árduo caminho pela frente com as tecnologias de primeira geração e o futuro dependente de outras matérias-primas para as tecnologias de segunda geração; não devemos desanimar, mas não há razões para ufanismo quando se trata de biodiesel.





Recebido para publicação em 24 de junho de 2006.



http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002007000200003&script=sci_arttext

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