segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

O monstro

Desde o fundo insondável das idades, os homens encontram-se em sociedade sobre a Terra, no sentido de terem sempre existido em maior ou menor número, pois nem mesmo no Éden bíblico houve a completa solidão. Talvez porque poucas coisas doam tanto, maltratem tanto quanto a solidão. Dizem, mesmo, que só os santos, os sábios e os loucos conseguem suportá-la.
Assim, nossa vida depende de outras vidas, nosso mundo vai sendo feito por muitas mãos, somos todos tripulantes do mesmo barco, igualmente expostos aos temporais e aos naufrágios. Juntos recebemos, também, as graças das naturezas, compartilhamos todos idênticas leis biológicas, temos todos o mesmo estágio embrionário no seio materno, e partimos todos, um dia, envolvidos pelo mesmo silêncio irremediável que nos desliga da corrente humana que se agita sobre a Terra.
A inevitabilidade da vida, e da vida entre os demais seres humanos, deveria exigir que nos conhecêssemos uns aos outros, antes de mais nada, que nos compreendêssemos e nos ligássemos como num batalhão se arregimenta para defesa comum, como o coral se reúne para produzir harmonia.
O estado de criatura humana, a condição de criatura humana, deveria ser santo e senha para qualquer ser humano, através de todos os quadrantes da Terra. Não se negará que seria, essa, a recomendação da lógica, da intuição, do simples bom senso. Mas, talvez porque um dia, por uma fração de segundo, os primeiros homens tivessem tido a faculdade de criar, eis que criaram um monstro para seu próprio uso. Deve ter sido assim que surgiu, desde o início dos tempos, essa força impiedosa, dominadora e eficiente, que separa os homens, atirando-os uns contra os outros, que fez desse pobre grupo de peregrinos, cuja origem e cuja meta são exatamente as mesmas, um rebanho tresmalhado a bater-se pelos sombrios campos da cizânia.
Essa força é o medo. O medo gerou a prepotência, deu nascimento à crueldade. O medo disfarçou-se em heroísmo, e embelezou a carnagem, o saque, a invasão, a escravização, o massacre. O medo tem sido responsável pelos acontecimentos sangrentos que a humanidade aprendeu a reverenciar como sublimes. O medo destruiu santos e profetas. O medo crucificou Jesus Cristo. Atrás de cada ato que violência há sempre o medo, o abjeto terror.
Se pudéssemos criar no mundo condições de vida em que, para existir dignamente, ninguém precisasse descer à sabujice, sucumbir à corrupção, aceitar desigualdades tão marcadas, viver na estacada, sempre pronto ao ataque ou à defesa, afiando eternamente as garras para melhor rasgar carnes e sentimentos alheios, flectindo os dedos para melhor reter no côncavo da mão tudo quanto possa recusar o próximo - teríamos aprendido a nobre ciência, a ciência das relações humanas.
Mas o homem vive respirando uma atmosfera envenenada pelo medo. Receia perder a vida que não lhe pertence, os bens de que é simples depositário, o amor que não sabe conservar, a situação que suspeita não merecer. E por medo mata, por medo rouba, por medo mente, por medo calunia, por medo bajula, por medo se humilha, por medo odeia, por medo é infinitamente desgraçado. Cultivando o medo, cultiva a desconfiança, a insegurança, a discriminação, o preconceito. Querendo afirmar-se, desejando refinar-se, só o sabe fazer negando alguém, frustrando alguém. Os regimes despóticos prosperam à sombra do medo, do medo que alucina, que anula os sentimentos, que dobra orgulhos, que desagrega sensibilidades. Do medo que produz espiões, que favorece a vingança.
Assim entre os homens como entre as nações, assim entre as raças como entre os credos, cavamos, homens e povos, nossas próprias trincheiras, e nelas ficamos atolados, sem desejar saber se ali adiante, na outra trincheira, haverá alguém a quem poderíamos dar, e de quem poderíamos receber, o beijo fraterno. (Nair Lacerda)

Profª Márcia Garcia
Mestre em Letras e Especialista em Literatura e Ensino de Literatura pela UNESP. Professora de Gramática, Literatura e Redação no CENAPHE (Centro de Aperfeiçoamento Humano Educacional Profª Márcia Garcia).e-mail: marciaagarcia@yahoo.com.br

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