sábado, 20 de outubro de 2012

ESTADO E SAÚDE (CONVÉM LER!!!!)

São Paulo em Perspectiva

Print version ISSN 0102-8839

São Paulo Perspec. vol.18 no.3 São Paulo July/Sept. 2004
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-88392004000300005


Estado e saúde: os desafios do Brasil contemporâneo





Paulo Eduardo Elias

Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e Pesquisador do Cedec






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RESUMO

O artigo trata da relação entre Estado e saúde apresentando as dificuldades para a sua conceituação e a retomada da sua trajetória na Europa e no Brasil. Mostra aspectos para a reflexão desta relação com a consagração da saúde como direito social e dever do Estado pela Constituição Federal e indica os desafios postos ao Sistema Único de Saúde.

Palavras-chave: política de saúde; política social; Sistema Único de Saúde.


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ABSTRACT

This article deals with the connection between State and Health regarding to the difficulties of conception and concerning to the retaking of its trajectory, both in Europe and Brazil. It also provides elements to the reflection that Health is not only a social right but also a State's duty guaranteed by Federal Constitution. This paper also points out the challenges set to the United Health System.

Key words: Health Politics; Social Politics; United Health System.


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Tratar das relações entre Estado e saúde é um desafio intelectual de porte, pois Estado admite várias conceituações segundo as distintas correntes e escolas sociológicas e políticas (BOUDON; BOURRICAUD, 2001), enquanto a noção de saúde ainda carece de definição satisfatória, isto é, fundada para além das referências à doença ou à linearidade biologista e histórica contida na clássica formulação da Organização Mundial de Saúde - OMS, por representar "o completo bem-estar físico, psíquico e social". Até porque as conexões entre Estado e saúde não se estabelecem de forma linear, mecânica, e não constituem vínculos de tipo causal. Antes, compõem relações complexas de natureza socioeconômica e histórica.

Desse modo, o esforço a ser desenvolvido neste trabalho é o de buscar situar tal relação, ainda que genericamente, a partir de uma breve recomposição dessa trajetória desde a emergência do Estado moderno na Europa, tomado como referência maior da natureza dessa ligação. A seguir, a recomposição contemplará o caso brasileiro até as conjunturas mais recentes e os desafios que desta perspectiva se colocam ao Sistema Único de Saúde - SUS.

Neste trabalho, o SUS é entendido como a principal política pública para o setor de saúde e o projeto maior do movimento sanitário brasileiro. No momento histórico atual tem o desafio principal de efetivar-se como Política de Estado. Isso representa (re)significar o SUS como expressão da negociação Estado/sociedade consagrada na Constituição Federal e, portanto, imune em seus fundamentos às naturais alternâncias de poder. É um grande desafio, a julgar as práticas políticas históricas e correntes, vigentes nas três esferas de governo, de partidarização da máquina pública e apropriação das políticas sociais pelos governantes em prol da lógica de sua reprodução política. Ao se recompor a trajetória do setor saúde no Brasil, serão apontados fenômenos que expressam a natureza dessa relação Estado/saúde.



O ESTADO E A SAÚDE

Para apresentar os pressupostos que orientam esta abordagem, cabe explicar a noção de Estado utilizada. Como já assinalado, definir Estado é uma tarefa quase impossível, uma vez que o seu conceito não é universal, como nos ensina Schiera (1998), mas serve apenas para indicar e descrever uma forma de ordenamento político surgida na Europa a partir do século XIII na base de pressupostos e motivos específicos da história européia, que se estendeu a todo mundo civilizado, libertando-se das condições originais e concretas de nascimento.

A história do surgimento do Estado moderno é a história da tensão do complexo sistema de poder dos senhorios de origem feudal – policêntrico e, em decorrência, pulverizado – indo até o Estado territorial concentrado e unitário, por meio da racionalização da gestão do poder e da própria organização política imposta pela evolução das condições históricas materiais. Segundo Weber (1980), tal centralização se traduz no monopólio da força legítima, apontando a dimensão propriamente política do Estado para além de seu aspecto organizativo e funcional. Isso implica a pesquisa de forças históricas – para Marx, a burguesia e o proletariado – que interpretaram o novo curso e se tornaram portadoras dos novos interesses políticos em jogo. Assim, o Estado também expressa relações de poder entre interesses sociais conflitantes.

Com o advento da era moderna, a saúde torna-se matéria de Estado, isto é, das políticas públicas. É justamente no grande movimento compreendido pelo processo histórico do século XV ao XIX, em que se estabelece a ordem capitalista na Europa, é que a saúde passa a ser objeto da intervenção estatal por meio de políticas públicas (FOUCAULT, 1977).

Esse processo histórico se caracteriza pela transição de uma lógica territorial – materializada no feudo e nas relações sociais dele decorrentes – para uma lógica setorial -assinalada na formação das categorias profissionais dissociadas do território, materializada nas corporações profissionais e nas relações sociais originadas por elas –, que impera a partir do século XIX. Da perspectiva da economia política (SINGER, 1975), essa passagem traduz a dissociação entre produção e reprodução e assim estabelece a contradição entre lógicas globais e setoriais. Em tal situação, a política pública torna-se o mecanismo de intermediação entre o global (todo) e o setorial (as categorias profissionais), transformando-se em instrumento privilegiado do Estado para minimizar as contradições e os conflitos sociais gerados pelo confronto entre as duas lógicas.

Por esse aspecto, as políticas públicas constituem instrumentos para a atuação do Estado e a Política Social é central para a regulação estatal. Já os pressupostos teóricos do Estado para se pensar a área social estão centrados na reprodução da força de trabalho. Dessa forma, a Política Social como tipo particular de Política Pública promove a regulação entre Estado, economia e sociedade, e ao se formularem as políticas de saúde pública, como as do SUS, é exatamente esta a natureza da regulação envolvida.

Em suma, a gênese da relação Estado/saúde na era moderna é a expressão da regulação estatal da saúde para a nova ordem social e econômica emergente – a ordem burguesa – e centrada na reprodução da força de trabalho. No entanto, tal regulação expressa as contradições e conflitos entre o global (todo) e o setorial (parte).

Assim, na Inglaterra do século XVII, são clássicos os trabalhos iniciais de William Petty indicando a importância do estudo quantitativo do fato social e incentivando seu amigo John Graunt, comerciante londrino de roupas masculinas, a se colocar como um dos pioneiros da estatística com sua obra sobre mortalidade publicada em 1662. Ela envolve a busca de regularidades matemáticas em acontecimentos humanos como nascimentos, mortes e incidência de doenças. Em 1714, Bellers publica um tratado no qual estabelece um plano para um serviço nacional de saúde, que caracteriza os primórdios da estatística vital (REGONINI, 1998).

Posteriormente, no século XIX, a Lei dos Pobres (1834) documenta uma das primeiras incursões do Estado moderno no campo da saúde. Mediante essa edição, o Estado provia esses indivíduos por considerá-los tendencialmente perigosos para a ordem e higiene públicas. É também clássico o projeto levado adiante na Prússia entre 1883 e 1889, por Bismark, para a construção de um sistema de seguridade social voltado para o proletariado e centrado nas corporações profissionais (lógica setorial), que contemplava a assistência médica individual. Tal movimento abrange outros países europeus, como França, Itália, países nórdicos, mas é na Inglaterra do início do século XX, no período entre 1905 e 1919, que, sob um alinhamento político progressista de inspiração igualitária, institui-se um seguro nacional de saúde aliado a um sistema fiscal fortemente progressivo.

No conjunto da Europa, a relação Estado/saúde terá sua expressão mais notável após a Segunda Guerra Mundial, com a constituição do Welfare State, representando o desenvolvimento desse tipo particular de Estado que se denomina Estado Social e ainda hoje é muito vigoroso naquele continente. Seu princípio fundamental é expresso pelo postulado de que, independentemente da renda, todos os cidadãos têm direito a ser protegidos, com pagamento em dinheiro ou serviços, contra situações de dependência longa, tais como velhice ou invalidez, e curta, como doença, desemprego e maternidade. O slogan dos trabalhistas ingleses em 1945, "participação justa de todos", resume o conceito do universalismo da contribuição que é o fundamento do Welfare State (REGONINI, 1998).

A explicação para a gênese desse tipo particular de Estado divide os autores em duas correntes principais: os que ressaltam o papel desempenhado pelos fatores econômicos (o crescimento da economia como seu impulsionador) e aqueles que acentuam a política (a ameaça à ordem capitalista representada pela Revolução de 1917 na Rússia), tema para outra oportunidade. Importa assinalar aqui que os estudiosos consideram o desenvolvimento do Welfare State uma quebra da separação entre a sociedade (ou mercado, ou esfera privada) e o Estado (ou política, ou esfera pública), tal como concebido no modelo de sociedade liberal.

Nos países capitalistas periféricos esse movimento repercute desigualmente em função das especificidades presentes em cada um deles; no entanto, em todos apresenta um padrão mitigado perante o movimento originário (LAURELL, 1995). Desse modo, desenvolvem-se sistemas de proteção específicos geralmente vinculados ao mercado formal de trabalho, compondo na maioria das vezes sistemas previdenciários solidários sob a égide do método de repartição simples.

No caso brasileiro, como veremos, o esmaecimento da separação entre a esfera privada e a pública explicita-se no âmbito do econômico, quando o Estado se apresenta como uma espécie de sócio do capital privado, ainda que no plano das políticas públicas não se tenha verificado nenhuma iniciativa comparável ao modelo do Estado de Bem-Estar Social.

Quanto à relação Estado/saúde, o advento do Estado de Bem-Estar Social significa a desmercantilização da saúde com a elevação de seu estatuto a direito universal e nuclear para a cidadania plena.



A RELAÇÃO ESTADO/SAÚDE NO BRASIL

No Brasil, apesar de a intervenção estatal no setor da saúde ocorrer desde o período colonial, mais precisamente no início do século XIX (MACHADO et al., 1978), as formas mais incisivas da intervenção se dão a partir do período republicano. Na dimensão coletiva da saúde, são exemplos clássicos da especificidade da regulação Estado-sociedade-economia, as intervenções sanitário-urbanas realizadas no início do século XX nas cidades dos principais portos brasileiros – Rio de Janeiro e Santos – e as campanhas pela erradicação da febre amarela, que na época assolava essas cidades, resultando na insurgência popular conhecida como revolta da vacina e a fúria dos moradores dirigida a seu idealizador, o sanitarista Oswaldo Cruz (COSTA, 1985).

Dados os interesses mais específicos em jogo, é na dimensão individual da saúde representada pela assistência médica que a relação Estado/saúde vai revelar melhor a sua especificidade no caso brasileiro.

A origem da intervenção estatal na assistência à saúde no Brasil tem na Lei Elói Chaves um significativo marco. Editada em 1923 – período no qual o Estado Social já se consolidara na Europa, e após as movimentações operárias do período 1910 a 1920 –, estabelecia os marcos regulatórios para as aposentadorias, pensões e assistência médica, numa espécie de arremedo ao que se passava na Europa desde o século anterior.

Vejamos os motivos dessa qualificação. Tal qual os modelos europeus, essa política pública nasce vinculada ao mundo do trabalho, portanto submetida à lógica setorial corporativa. Entretanto, no caso brasileiro, não se efetivou para abranger o conjunto dos trabalhadores, mas apenas parte deles: justamente aqueles vinculados aos pólos mais dinâmicos da economia, como os ferroviários e os portuários. Seu financiamento dava-se exclusivamente por desconto compulsório na folha de salário, sem qualquer participação de recursos fiscais do Estado.

Assim, a assistência médica previdenciária emerge no Brasil mercantilizada sob a forma de seguro, no qual a garantia do acesso aos serviços de saúde é feita com pagamento mediante desconto compulsório, ao mesmo tempo em que se estrutura um sistema urbano de assistência quando a maioria da população era rural. Da mesma forma, configura-se segmentado e socialmente excludente, isto é, privilegia a população urbana em detrimento da maioria rural. Na área urbana atinge apenas a força de trabalho e, entre os trabalhadores, favorece os vinculados aos pólos dinâmicos de acumulação capitalista. A saúde assim estruturada concorre para o padrão de regulação social denominada por Santos (1979) de cidadania regulada, mantendo-se praticamente intocada até o final da década de 80.

Esse modelo centrado na lógica setorial (corporações) tem sua expressão mais completa nos anos 30 e 40. Inicialmente, com a estruturação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões – IAPs por categoria profissional, foi mantida a contribuição compulsória sobre a folha de salário e a vinculação ao trabalho formal, possibilitando um duplo padrão na relação público/privado. São exemplos, o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários – IAPB, que investia em serviços próprios, e o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários – Iapi, que comprava serviços de terceiros. Eis a tensão que irá marcar o sistema previdenciário brasileiro, com a poupança previdenciária servindo de base para a reprodução do capital pela via da assistência à saúde, que desta maneira inicia seu processo de mercantilização.

Nos anos 40, o modelo setorial é estendido aos trabalhadores do setor público por meio dos sistemas de previdência fechados nas diferentes esferas de governo, tais como o do Instituto de Previdência dos Servidores – Ipase, no âmbito federal, e o do Instituto de Assistência Médica do Servidor Público Estadual – Iampse, abrangendo os funcionários paulistas.

A configuração público/privado na saúde como expressão da sua mercantilização tem sua expressão maior na criação do Instituto Nacional da Previdência Social – INPS (pós-golpe militar de 1964), que por meio da implementação de políticas voltadas para o setor privado da saúde se constituirá em potente instrumento para a ampliação da dinâmica de acumulação no setor (COHN, 1980). Esse novo ajuste revela a organicidade da relação Estado/saúde em prol dos interesses dos produtores privados, pois ao Estado se reservava a função de organizar a clientela, financiar a produção de serviços e subsidiar o investimento privado para ampliação da capacidade instalada (COHN, 1995). Eis aí o processo sociopolítico e histórico que engendra a privatização precoce do sistema de saúde brasileiro com a conseqüente estruturação da produção de serviços de saúde em moldes privados e lucrativos, fenômeno que na América Latina se iniciará apenas na década de 80 com o golpe militar no Chile.



A CONTEMPORANEIDADE E O ADVENTO DO SUS

No Brasil, o movimento de consolidação do setor privado na saúde ganha velocidade a partir do final da década de 80, com o fechamento do ciclo de industrialização propiciado pelo projeto nacional desenvolvimentista que orientou a ação estatal desde os anos 30.

Pois é justamente nesse momento histórico de grande indefinição para o projeto econômico do Estado e em pleno processo de saída da ditadura militar com a redemocratização da relação Estado/sociedade, que a noção de seguridade social é consagrada na Constituição Federal. Tal fato assinala um importante ponto de inflexão nas Políticas Públicas de saúde vigentes.

Pela primeira vez nas Cartas Constitucionais brasileiras, a de 1988 apresenta uma seção específica para a saúde, consagrando-a como direito do cidadão e dever do Estado. Esse procedimento desloca a noção de seguro social, vigente desde os anos 20, pela de seguridade, isto é, à semelhança do que ocorre no Estado de Bem-Estar Social, está previsto que o acesso pleno ao sistema de saúde passa a não depender da renda, buscando-se garantir um novo padrão de cidadania.

Tal deslocamento, ao mesmo tempo em que constitui um ponto de apoio para a redefinição radical das políticas públicas, por exigir a desmercantilização da saúde, revela-se fonte de enormes tensionamentos e conflitos ao se confrontar com a realidade do acelerado processo de mercantilização da saúde como tendência mundial. No Brasil, esse movimento se expressa no crescimento rápido do sistema privado de saúde (BAHIA; VIANA, 2002). Em escala progressiva, a área da saúde vai se firmando como fonte para acumulação de capital.

Ademais, o tema da reforma do Estado, em moldes previstos pelo Consenso de Washington ou pela denominada Agenda Neoliberal, começa a fazer parte do temário da política brasileira já no início dos anos 90 (OLIVEIRA, 1999). A entrada se principia justamente pelo ajuste fiscal do Estado, o que resulta em violento "desfinanciamento" das políticas sociais e particularmente das de saúde.

O SUS, a mais ambiciosa e abrangente política pública de saúde já formulada no país, emerge completamente sitiado pela disposição da relação Estado/sociedade nesse momento histórico. De um lado, acossado pelo que poderíamos denominar de a nova agenda de problemas, expressão da atual conformação do Estado, representada pelo acolhimento da mercantilização da saúde – caracterizada, sobretudo, pela regulamentação do sistema privado de saúde (planos e seguro-saúde) –, pela ótica do consumidor completamente à margem do SUS, pela adoção de parâmetros de gestão permeados pela noção de custo/efetividade ou custo/benefício e pela flagrante insuficiência do financiamento perante os compromissos previstos na Constituição Federal na área da saúde (COHN; ELIAS, 2003).

De outro, assomam os tradicionais problemas que compõem persistentemente a agenda do Estado brasileiro, expressos pelo patrimonialismo, pela reprodução das iniqüidades sociais nas políticas públicas, pela persistência de um padrão infenso a qualquer forma de controle público, pela ineficiência social da máquina pública e por suas debilidades na regulação de áreas e setores estratégicos para a emancipação social, com o objetivo de mitigar a imensa dívida acumulada com amplos setores da população (OLIVEIRA, 1999).

Como construção política e histórica, vinculado ao projeto de desenvolvimento do capitalismo, o SUS permeia e é permeado por essas contradições em sua trajetória de afirmação como política pública. Nessa medida, à semelhança do Welfare State, não se presta a constituir um meio para o questionamento da ordem social capitalista, como imaginado por setores do movimento da reforma sanitária brasileira (ESCOREL, 1998).

Ademais, durante 67 anos ajustou-se uma relação Estado/saúde fundada na noção de seguro e no acesso contra pagamento dos serviços, construindo uma cultura da saúde como mercadoria a ser mediada pelo mercado, realçando o pagamento como fonte de legitimação do serviço prestado e transformando o usuário em consumidor em detrimento do seu estatuto de cidadão. Há apenas 17 anos, desde 1988, intenta-se a mudança nessa cultura – o que demanda horizontes do tempo histórico – por meio da noção de seguridade e da afirmação da saúde como direito universal, ainda que, como se viu, sem contar com a conformação de um Estado voltado para estes objetivos.

No entanto, a efetivação do SUS tem apenas 12 anos, iniciando-se com a implementação da Norma Operacional Básica – NOB 01-93, significativamente intitulada "A ousadia de cumprir e fazer cumprir a Lei", marcando também um ato de vontade política do movimento pela municipalização da saúde. Em complemento a esse processo, somente a partir de 1998, com a efetivação da NOB-01-96, ampliam-se as transferências financeiras fundo a fundo, isto é, do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estaduais e municipais, o que irá caracterizar o grau de autonomia dos entes subnacionais e qualificar a descentralização da saúde em curso.

Portanto, o SUS constitui uma política pública cujo princípio fundamental é a consagração da saúde como direito universal. Em razão de seu pequeno curso histórico, encontra-se em estruturação e, por isso, vulnerável a toda sorte de investidas para consagrá-lo ou para abortá-lo em seu fundamento maior.

A efetivação da saúde, portanto, em conformidade com os ditames constitucionais, exige providências de várias ordens, a começar pela reforma do Estado para torná-lo capaz de realizar a saúde como direito universal. A consecução desse objetivo exigirá do Estado a formulação de políticas voltadas à desmercantilização da saúde – o que no âmbito mais imediato da assistência médica implica o incentivo a formas não lucrativas, em detrimento das modalidades lucrativas na produção de serviços –, e à busca incessante de novas modalidades de gestão na relação público/privado, capazes de viabilizar a eficácia social do sistema de saúde.

Somente dessa maneira se criam as condições para a construção de uma nova e potente consciência sanitária, fundada na noção da saúde como necessidade social a ser provida nos marcos da regulação estatal e, portanto, em contraposição ao ideário corrente da saúde como bem a ser satisfeito nos parâmetros de mercado.

A exigência dessa nova consciência sanitária universalista e cidadã torna-se indispensável para que o projeto de mudança na saúde, com o pleno desenvolvimento do SUS, aconteça ancorado em bases sociais sólidas e não em imposição do Estado por meio de estratos políticos e ou de técnicos iluminados, encastelados no aparelho de Estado. A nova consciência sanitária será o elemento de fortalecimento da relação Estado/sociedade renovada e em prol da efetivação da saúde como direito universal, importante passo para a vigência de um outro padrão de cidadania na sociedade brasileira. Ao contrário do ideário vigente em algumas instâncias decisórias do governo, o projeto "mudancista" passa também por uma regulação de caráter setorial, abarcando as corporações – médicos à frente – sem ultrapassá-las ou negá-las, a fim de efetivar um tipo de regulação que, ao englobar o conflito, seja também capaz de afirmar o interesse geral sobre o particular em prol da eficácia social da ação estatal.

No entanto, nos anos 90 acentuam-se os conflitos quando a agenda passa a ser pautada por uma certa reforma do Estado influenciada pelo movimento da globalização e pelos postulados do neoliberalismo. Principalmente no terço final da década de 90, essa reforma promove o esmaecimento da linha que separa o Estado do mercado, influenciada por iniciativas internacionais de "parceria" ou, melhor dizendo, de verdadeira sociedade entre os entes público e privado, como a expansão das linhas de metrô em Londres e a construção de rodovias em Portugal e Espanha. Ilustra essa tendência a recente Lei Federal que institui normas gerais para a parceria entre os setores público e privado, denominada de Parceria Público-Privado – PPP, inicialmente dirigida para as áreas de infra-estrutura. Transpostas para a área da saúde, essa nova configuração representaria uma ampliação do conceito vigente nas Organizações Sociais de Saúde – OSS ou mesmo das Ocips federais que funcionam sob os fundamentos da concessão. No caso do estatuto da PPP, trata-se do compartilhamento no investimento, que resulta em participação na propriedade do equipamento – daí a designação de sociedade –, situação até o momento inexistente no âmbito das políticas sociais atuais. Tal tendência denota a crescente aproximação Estado/capitalismo, revelada com grande crueza para os padrões liberais vigentes até meados do século XX, talvez expressão desse momento histórico em que os capitais privados se impõem diante dos Estados nacionais (FURTADO, 2000).



CONSIDERAÇÕES FINAIS

No que toca mais de perto a saúde, verifica-se o acirramento das contradições perante o processo de globalização em curso, no qual o complexo médico-industrial – a indústria farmacêutica, a de equipamentos e a de insumos médicos – destaca-se como um dos mais ativos pólos do capitalismo, pressionando pelo crescimento da saúde como mercadoria e como setor de realização do lucro (GADELHA, 2003).

No entanto, para afastar o ceticismo exacerbado e o desânimo paralisante, convém assinalar que a política e sua ação não se esgotam na razão, pois a política não é uma ciência exata como ensina Bismark. Antes de tudo ela é movida por emoção, sangue, vontade férrea, utopias e projetos.

O SUS, desafiando racionalidades, vem se mantendo como um projeto que busca avançar na construção de um sistema universal de saúde na periferia do capitalismo, num país continental populoso e marcado por enorme desigualdade social, caso raro ou talvez único entre as nações. No entanto, as possibilidades para a saúde no futuro mais imediato encontram-se inexoravelmente atreladas ao êxito do Estado na formulação de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da exclusão social, de longe a maior mazela brasileira. Isso envolve a reformulação do padrão histórico de compromissos do Estado brasileiro com os interesses do capital, no momento atual implicando a discussão política mais ampla para o encaminhamento das formulações possíveis na área econômica em detrimento do tratamento essencialmente tecnicista vigente nas esferas governamentais.

Na situação de manutenção ou mesmo de aprofundamento da exclusão social, tem-se a persistência do atual sistema de saúde segmentado, seletivo no acesso aos serviços segundo padrões de mercado, seguindo-se no SUS a universalização da assistência básica com o Piso da Assistência Básica – PAB. Esse piso serve de mecanismo de controle de gastos e racionalização do setor, resultando em baixa eficácia social e num verdadeiro apartheid social na saúde. No plano da relação Estado/saúde esse tipo de arranjo configura uma certa "desresponsabilização" do Estado para com a saúde, ao mesmo tempo em que se cristaliza a mentalidade privada no setor.

Na situação de enfrentamento da exclusão social, o SUS ganha grande alento compondo um projeto para a área social centrado na distribuição de renda e articulador, pelo menos, das funções estatais na educação, na saúde e no saneamento básico, a fim de promover a aproximação entre as razões social e econômica, que significa resgatar a economia para o plano da política.

Nesse último caso o SUS pode representar uma enorme contribuição genuinamente brasileira para a América Latina e para os países emergentes – o grupo de países que compõem o G20 –, além de manter acesa a chama da esperança por uma outra sociedade possível, justa, equânime e emancipadora para os seres humanos.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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