quinta-feira, 5 de maio de 2011

POLÍTICA PÚBLICA: HABITAÇÃO (I)

Entrevista com RAQUEL ROLNIK


DIREITO À MORADIA VERSUS ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA


(Revista Caros Amigos, abril de 2011, pp 12-7.)


Atual relatora especial da ONU para direito à moradia adequada e professora da FAU-USP, a urbanista Raquel Rolnik é uma voz respeitadíssima no Brasil e internacionalmente. Participou da Secretaria de Planejamento na gestão Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo (1989-1992) e ficou no Ministério das Cidades de 2003 a 2006, quando deixou o governo por discordar das políticas urbanas e de moradia adotadas com a mudança ministerial. Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, Raquel Rolnik conta episódios de sua passagem pelo governo, expõe a sua visão sobre os problemas urbanos, em especial o da moradia, e relata que tem recebido muitas denúncias de despejos violentos motivados pelas empresas que especulam com a terra nas cidades.

Participam da entrevista: Bárbara Mengardo, Cecília Luedemann, Débora Prado, Paula Salati, Tatiana Merlino.


Débora Prado - A gente sempre começa perguntando como foi a sua formação e a sua trajetória profissional e política.

Eu acho legal, porque essa trajetória explica muito as minhas posições, hoje, e a leitura que eu faço das coisas. Eu estudei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) na Universidade de São Paulo (USP) no início dos anos 1970 e isso foi absolutamente determinante, para mim, porque eu pude viver, não só a FAU, que é uma escola muito especial do ponto de vista de uma abertura para as dimensões humanas, artísticas e técnicas, mas também porque os anos 1970 foram os anos de luta contra a ditadura. E eu tive a oportunidade, o privilégio, de poder participar do movimento estudantil, da reorganização dos movimentos de luta contra a ditadura nos anos 1970. E também tive a oportunidade, através da Profa. Ermínia Maricato, que foi minha professora naquele momento, tinha acabado de entrar como professora, com os movimentos sociais e populares em torno da luta pela moradia que também estava se rearticulando naquele momento. Então, naquele momento era um movimento pela regularização dos loteamentos clandestinos, uma luta por conseguir urbanizar e regularizar favelas e loteamentos no Brasil. Era o começo da sua voz, no sentido: "Nós estamos aqui e queremos ser objeto de políticas." Então, eu tive esse duplo contato, essa dupla inserção. Como movimento pelas liberdades democráticas, naquele momento, pelos direitos humanos, pela liberdade de expressão, através do movimento estudantil na USP, e na relação com os movimentos sociais e populares, propriamente quando o tema da questão aparece para mim.


Taliana Merlino - Então a faculdade colocou você em contato com os movimentos urbanos?

Já na FAU, também, tive o enorme privilégio de poder trabalhar em conjunto com o Nabil Bonduk, que era o meu colega de classe naquele momento. Nós, por um absoluto acaso, também, estávamos desenvolvendo um projeto de pesquisa na área de sociologia dentro da escola e o nosso orientador, na época, que era o Gabriel Bollaffi viajou e nos colocou em contato com o professor Lúcio Kowarick. Naquele momento, o professor Kowarick estava no âmbito, primeiro, do CEBRAP, depois do CEDEC, começando um processo, do ponto de vista intelectual, de compreender o processo de formação da periferia e a questão da espoliação urbana e da exclusão territorial. Nós fomos estagiários do Lúcio Kowarick, depois foi com ele que nós fizemos a nossa iniciação cientifica junto com o Gabriel Bollaffi. Então, o nosso pimeiro trabalho de iniciação científica é um trabalho sobre a formação da periferia de São Paulo. Então, é um trabalho que, de alguma maneira, inaugurou um conjunto de trabalhos de pesquisadores na área da sociologia urbana, dos estudos urbanos e urbanistas, que começaram a denunciar o processo deformação das cidades brasileiras, através de pesquisas de campo. Então, isso também foi muito determinante na minha trajetória.
E, finalmente, teve um terceiro pé dessa trajetória, também, que ainda estudante, eu fui estagiária da Coordenação Geral de Planejamento de São Paulo, a antiga COGEP, que depois virou Secretaria de Planejamento, quando o Secretário era o Coordenador da COGEP, depois virou Secretário, era o Cândido Malta Campos Filho, urbanista. Então foi a primeira experiência no Poder Público, trabalhando no Planejamento Urbano, entrando em contato com as questões da cidade, do ponto de vista da gestão da política urbana.


Tatiana Merlino - Você combinou o ensino e a pesquisa com a gestão pública.

Por isso que eu falei das três vertentes, acabou virando a minha história e o meu trabalho, porque o meu objeto nunca deixou de ser o direito à cidade, o direito à moradia, nunca deixou de ser pensar isto do ponto de vista de uma política urbana, de um planejamento urbano. E eu sempre tive uma trajetória profissional com um pé na academia, fazendo pesquisa, sendo professora. Eu dei aula na Belas Artes, numa escola de Arquitetura que foi muito inovadora e interessante nos anos 1980, mas depois foi totalmente desmontada; depois, 25 anos na PUC de Campinas, como professora na área de urbanismo; e, agora, eu sou professora na FAU, há dois anos. Então eu tive uma trajelória acadêmica, de pesquisadora e professora, com mestrado na FAU, doutorado nos Estados Unidos na New York University.
Mas eu sempre tive, paralelamente, uma trajetória profissional, como urbanista. E começou ali na COGEP, como estagiária, mas eu tive outros momentos bem importantes, porque eu trabalhei como técnica no CDHU, para compreender o desenvolvimento habitacional e urbano do estado de São Paulo. E, depois, quando o Partido dos Trabalhadores já se constitui como uma bancada na Assembléia Legislativa, em 1987, eu fui, como funcionária do Governo do Estado, comissionada para trabalhar corn a bancada do Partido dos Trabalhadores, fazendo uma assessoria para a política urbana e habitacional na bancada. Era uma bancada excepcional. Simplesmente eram deputados estaduais, naquele momento: a Luiza Erundina, a Clara Ant, o José Dirceu, o José Machado, o Celso Daniel, a Telma de Souza, entre outros. Era uma bancada incrível. Eu pude trabalhar junto com eles, fazer assessoria, também uma ligação estreita, que comecei a estabelecer com o PT, desde a sua fundação, mas através da formulação da política urbana e habitacional do PT. E foi por conta dessa inserção na Assembleia Legislativa, desse contato com os deputados do partido, que, quando a Luíza Erundina ganha a eleição como prefeita, em 1989, eu pude virar diretora de Planejamento da área urbana, em São Paulo, trabalhando na Secretaria de Planejamento, cujo Secretário era Paul Singer, e o Guido Mântega era o diretor da área de orçamento, naquela composição incrível que foi o geverno da Luiza Erundina. Tinha Marilena Chauí na cultura... pessoas absolutamente excepcionais.


Débora Prado - Paulo Freire, na Educação...

Paulo Freire na Educação... Enfim, a experiência, então, na Secretaria Municipal de Planejamento em São Paulo, na SEMPLA, trabalhando na formulação do Plano Diretor, com a Ermínia Maricato na Secretaria da Habitação e Desenvolvimento Urbano, o Nabil Bonduk coordenador, colocando ali uma equipe muito interessante que se constituiu naquele momento. Isso foi muito importante, para mim, inclusive tive que abandonar meu doutorado no meio, porque me envolvi totalmente com a gestão municipal. E quando acabou a gestão municipal, até para conseguir entender, processar e digerir tudo aquilo que eu aprendi, enfrentei na prefeitura, eu escrevi a minha tese de doutorado, que se chama A cidade e a lei. É um trabalho muito estruturador do meu pensamento, porque eu penso e trabalho muito na relação entre a legislação urbanística, a regulação urbanística, e o modelo de exclusão territorial, o modelo de desenvolvimento urbano em nossas cidades. Então, acabando essa trajelória na área de planejamento urbano, eu volto para a academia para dar aula, para continuar o meu trabalho como professora e pesquisadora.
E sempre, desde lá nos anos 1970, eu sempre tive contato com os movimentos sociais e populares, e sempre participei muito dos processos de capacitação, de formação de lideranças populares, desde o Instituto Cajamar, depois fundamos o Instituto Polis. Eu sou uma dos fundadores do Instituto Polis, uma ONG voltada para a formação na área da democratização da gestão, na área do fortalecimento dos atores sociais para uma gestão democrática. E, dentro do Polis, eu constitui o grupo de urbanismo no Polis, que tem várias linhas de trabalho, e fiquei mais de 10 anos no Polis, trabalhando e fazendo projetos, sempre muito em contato com os movimentos sociais, principalmente os movimentos de moradia, que naquela altura já tinha crescido, e numa articulação, desde a Constituinte, nos anos 1980, pela Reforma Urbana. Foi uma articulação ampla de movimentos sociais e populares, de urbanistas, de engenheiros, de sindicalistas de arquitetos e engenheiros, de advogados defensores dos direitos das populações de menor renda. Então, essa coalizão do Fórum de Reforma Urbana também participei da construção, participei da apresentação da emenda popular para a Constituinte, da negociação - eu fui a pessoa, graças a minha relação com a bancada do PT no Congresso, naquele momento, acompanhando a negociação - dentro da Constituinte, do capítulo de política urbana para a Constituição, defendendo a emenda popular, lá dentro. E todo esse caminho alimentou muito todo meu trabalho.


Débora Prado - Como você define o seu trabalho?

Meu trabalho é, ao mesmo tempo, um trabalho de ativista, da luta pela moradia e pela cidade, mas é um trabalho, também, de professora, pesquisadora, formadora, e é um trabalho também de reflexão. Então, eu acho que o conjunto dessa trajetória acabou me levando ao governo federal, ao governo Lula, onde eu tive o privilégio de montar, junto com outras pessoas que também fizeram parte dessa luta, o Ministério das Cidades. Um ministério novo, com uma ideia inovadora, sob o comando do Olívio Dutra, com a Ermínia Maricato como Secretária Executiva do Ministério e uma equipe. Eu fui Secretária dos Programas Urbanos, uma Secretaria para tratar dos temas do Planejamento Urbano dentro do Ministério e política fundiária, política de terras. E eu fiquei quatro anos no governo Lula como Secretária, me dedicando, também, de corpo e alma, totalmente, a esse trabalho. Fiquei no primeiro mandato e todos sabem que no meio do primeiro mandato, em 2005, longe da crise do mensalão, o governo, digamos, foi obrigado a passar o ministério para o Severino Cavalcante, ou seja, PP, que indicou o Marcio Fortes, como ministro. A direção do Ministério das Cidades passou a ser uma direção totalmente diferente. Eu permaneci, ainda, a pedido do centro do governo, do gabinete do Lula e dos próprios movimentos, porque nós estávamos no meio da campanha dos Planos Diretores Participativos. Eu ainda fiquei, o ministro novo me convidou para ficar e fiquei, mas para mim foi dificílimo. No final de 2006, eu pedi para ser exonerada, o ministro pediu para eu ficar até a próxima eleição, para ver se ele ficaria ou não. Esperamos a eleição, Lula foi reeleito, o ministro Ibi reafirmado como ministro, eu pedi para sair e para voltar para São Paulo.


Tatiana Merlino - Por que você saiu do Ministério? Foi alguma eoisa específica, foi um acúmulo, foi todo esse período?

Não, não tem um fato específico, mas tem uma guinada na política habitacional e urbana do Brasil. Eu acho que a guinada foi basicamente a seguinte... E, de novo, eu entendo as razões da substituição do ponto de vista da governabilidade num sistema como o nosso do presidencialismo de coalizão (risos), que eu acho que é uma discussão muito complexa, que é o que eu acho que puxa para trás! Eu acho que é muito complicado esse presidencialismo de coalizão que nós temos. Então, eu entendo as razões, do ponto de vista político, da governabilidade. Entretanto, eu acho que foi acontecendo duas coisas. A primeira coisa foi que, quando nós fomos montando o Ministério das Cidades, ele foi montado em cima de uma aposta muito ligada à agenda da Reforma Urbana. A agenda da Reforma Urbana tinha, historicamente, um tripé, desde a primeira Constituinte. Um pedaço dela é a afirmação dos direitos dos posseiros, dos ocupantes, daqueles que constituíram assentamentos informais, populares, por absoluta falta de acesso à terra urbanizada e à moradia. Então, o seu direito no sentido da sua inserção mais completa na cidade, a regularização, a urbanização, a inclusão territorial desses assentamentos que são mais de 70% da área urbana no Brasil.
O segundo ponto da agenda [da Reforma Urbana] é o que a gente chama "a implementação de um modelo baseado na função social da cidade e da propriedade". A ideia de que a gestão do desenvolvimento urbano, além de viabilizar os negócios na cidade, tem que viabilizar, também, que a cidade seja equilibrada do ponto de vista sócio-ambiental. Isto significa que a terra e a propriedade urbana têm que cumprir uma função social, além de cumprir sua função de patrimônio privado de quem é o dono. E que é a política urbana, o planejamento urbano, o ordenamento territorial, que define qual é a função social de cada pedaço da cidade. Um das funções sociais, por exemplo, da terra urbanizada para moradia, é ser bem localizada, quando uma parte da população não tem condições de comprar essa moradia no mercado. Então, esse eixo da função social da cidade, da propriedade, de uma política que vai nessa direção, é também um dos eixos da Reforma Urbana.
E, finalmente, o terceiro eixo que, ao meu ver, está na raiz dos outros dois, é a participação, o que a gente chama de gestão democrática do território, gestão democrática da cidade, gestão democrática do país. É a ideia de que o processo decisório sobre as políticas tem que incluir os excluídos. Historicamente, as políticas públicas no Brasil são excludentes, porque o processo decisório que as definem são historicamente excludentes. Então, toda pauta da participação direta... Porque nós temos milhões de problemas no nosso sistema representativo. O nosso sistema representativo, aquilo que os partidos de esquerda chamam de democracia burguesa, o modelo republicano, ele evidentemente representa e tem suas virtudes, nós avançamos com o voto universal, sem restrições, com eleições livres, partidos livres, liberdade de expressão, tudo isso fortaleceu a nossa democracia. Entretanto, nós temos que entender que a nossa democracia carrega uma cultura política e um modus operandi pesadíssimo, absolutamente conservador. Nosso estado é muito estruturado em torno dessa lógica. E, portanto, a ideia que a participação direta complementa a democracia, no sentido de abrir espaços de interlocução para aqueles que, historicamente, não tiveram acesso à mesa de decisões de políticas, é um dos eixos.


Débora Prado - O que você fez depois de sair do governo?

Eu saí de lá e decidi voltar para a universidade e ficar dois anos entendendo o que aconteceu. Por que isso aconteceu? Por que a nossa agenda não foi aplicada? Como funciona isso? Voltei para a PUC de Campinas, fiz o concurso na FAU para ser professora na USP, e, desde então, tenho trabalhado muito. Meus artigos têm sido no sentido de eu estudar o modo de organização do Estado brasileiro na área do desenvolvimento urbano, como funcionam as emendas parlamentares, qual a relação entre o desenvolvimento urbano e a política, quais os setores. Voltei e pensei em ficar na universidade, sentada, estudando, pensando, dando aula e não fazendo nada mais para reflerir, escrever meu livro. Mas, aí, quando chega em 2008, vem uma articulação internacional dos movimentos de moradia dizer para mim: "Olha, o relator para o direito à moradia, da ONU, Miloon Khotari, um indiano, acaba o mandato dele, agora, e nós queremos que você seja a nova relatora do direito à moradia na relatoria dos direitos humanos." O governo brasileiro entrou em campo para viabilizar também o apoio ao meu nome, além das organizações populares, e eu acabei vencendo os outros nomes, e fui nomeada como relatora especial para o direito à moradia adequada junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU. E ai já me meti, de novo, num outro front global, interessantíssimo, internacional, ligado de novo ao ativismo pelo direito à moradia, do ponto de vista dos direitos humanos, que é um novo ponto de vista, para mim. Então, eu chego no ponto em que estou, agora.


Débora Prado - O governo Lula promoveu a inclusão via consumo, via mercado. Do ponto de vista da política urbana, esse tipo de inclusão promove também os direitos cidadãos?

Eu diria até que graças a nossa história e a nossa trajetória seria possível combinar uma estratégia de inclusão ao mercado com promoção de direitos cidadãos. Isso seria possível. A questão está no campo do poder, da política, e não no campo da viabilidade técnica e até conceitual. Você poderia ter uma política de valorização do salário, do bolsa família, e, ao mesmo tempo, promove os direitos.
Qual a consequência se você não faz isso na política urbana, do protagonismo cidadão, e abandona a ideia de implementar uma política em torno da função social da cidade e da propriedade? Minha Casa Minha Vida é um programa que reproduz programas muito semelhantes que já haviam sido experimentados no Chile, no México. Agora, como relatora, estudei isso mais amplamente no mundo, e se percebe que mesmo nos países onde a moradia era uma política social, que fazia parte de um walfare state, durante os últimos 20 anos, começou nos anos 1980 com Tatcher, Reagan, e depois se intensificou e se espalhou pelo mundo, inclusive com uma promoção muito intensa, através das agências multilaterais, do FMI e do Banco Mundial, com empréstimos com condicionalidades, e a transformação da ideia da moradia como um direito humano, como uma política social, para a ideia da moradia como mercadoria e, posteriormente, como ativo financeiro. A financeirização da moradia.lsso é internacional. Então, você tem uma versão disso nos países de transição, quando cai o muro de Berlim, que privatizam todo parque público construído, mas você tem também uma transformação disso na França, na Inglaterra, na Alemanha, nos Estados Unidos, em todos os países que tinham uma política social. Eu não fazia ideia de que os Estados Unidos tinha uma política social fortíssima de moradia. Então, isso começa a ser desmontado e mercantilizado no sentido do Estado, do poder público, se retirar e isso tudo ir via mercado, e, nessa nova versão, via ampliação do acesso ao crédito. Foi uma espécie de tomada dos circuitos financeiros internacionais com a globalização e com a eliminação das barreiras para a circulação livre do capital financeiro. Você tem um excedente de capital global, os petrodólares dos sheiks, o dinheiro da China, que precisa encontrar campo de investimento para conseguir se reproduzir. Um dos campos de investimento fundamentais para esse excedente, historicamente importantes para os circuitos financeiros, é a produção imobiliária, porque tem uma capacidade incrível de ser ao mesmo tempo um ativo que não vira pó, é concreto, tem capacidade de valorização, não desaparece como uma ação, e, além do mais, como ativo fixo, é capaz de, por hipoteca, gerar mais possibilidades de empréstimo e giro de capital. Mas, de qualquer maneira, houve uma espécie de tomada do mercado imobiliário pelo capital financeiro internacional. Isso se enxerga, a nível global, nos processos que aconteceram de renovação urbana, revitalização urbana que abriram espaços para este investimentos globais chegarem nas cidades, com consequências desastrosas para quem mora nas cidades, porque precisa competir com o preço da terra com o seu recurso local com o sheik do Bahram. Isso tem consequências em cidades europeias, norte-americanas, que a gente chama de gentrificação, expulsão, etc. E a área da moradia virou uma frente para esse capital.


Tatiana Merlino - Como essa finaiiceirizaçao aconteceu no Brasil?

No Brasil, aconteceram duas coisas. Primeiro, nós começamos um processo que tem a ver com essa financeirização geral de abertura de capital em Bolsa de grandes empresas. Sete empresas construtoras no Brasil entraram em Bolsa para captar capital financeiro para aumentar sua escala de produção num movimento que já havia acontecido antes, inclusive da América Latina. As sete grande empresas construtoras captam recursos, compram terras, montam projetos para fazer um lançamento de produtos imobiliários nas cidades brasileiras e aí vem a crise financeira. A crise financeira tem a ver com essa história da financeirização da moradia, começa com a crise hipotecária. A culpa da crise financeira foi a transformação da moradia de política social em política mercantil e financeira. Eu fiz o primeiro relatório na ONU sobre isso e vou trabalhar ainda muito mais sobre isso, porque é o tema internacional. Aí, as sete grandes construtoras abriram o capital, veio a crise e iam falir. Tinham imobilizado capital, estavam com lançamentos prontos, iam dançar, mas vão bater na porta do Ministério da Fazenda e do governo federal. Junto com isso, nas medidas elaboradas no Ministério da Fazenda, pensando em medida anticíclica keynesiana típica: "Não vamos deixar a crise chegar no Brasil. O que fazer para gerar rapidamente emprego? Construção civil." Então, juntando as duas questões SP lança um programa onde o governo, com o orçamento do governo, joga um subsídio muito grande para que as pessoas possam comprar os produtos que essas empresas já estavam prontas para lançar. Só que essas empresas tinham umas 250 mil casas e o governo fala: "1 milhão". Muito mais do que elas tinham. O governo ampliou isso numa outra escala, salva as empresas construtoras com o nosso dinheiro, do orçamento, faz um modelo que permite que setores, isso faz parte da estratégia de inclusão do mercado. Eu entendo perfeitamente a linha de raciocínio do sindicalista Lula com o seu ministro da Fazenda, o Guido, e sua equipe: "Vamos ampliar a capacidade de consumo dos trabalhadores e vamos fazer com que esses trabalhadores possam comprar casas, entrar dentro do mercado formal com subsídio público." As empresas construtoras vão adaptar esse produto para poder chegar em setores que antes não se chegava via financiamento: 4 salários mínimos de renda familiar mensal, 5 salários mínimos, que o mercado privado não atingia. Então, lança-se Minha Casa Minha Vida com essa perspectiva.


Tatiana Merlino - Mas, desse 1 milhão de casas, qual é a porcentagem para as que contemplam de 0 a 3, de 0 a 4 salários mínimos?

O modelo de 0 a 3 salários mínimos são 400 mil casas, de 3 a 6 salários mínimos mais 400 mil casas, e de 6 a 10 salários mínimos mais 200 mil casas.


Débora Prado - O estudo é de que as casas para 0 a 3 salários mínimos estão lá...

É óbvio. O modelo de 0 a 3 salários mínimos não viabilizou. É claro que depende muito. 0 a 3 salários mínimos lá no interior do Maranhão dá para fazer o Minha Casa Minha Vida, porque o preço da terra é baixo, mas nas regiões metropolitanas o de 0 a 3 salários mínimos está difícil. E a demanda na região metropolitana é enorme.
Um dia eu ouvi uma palestra do Mike Davis, muito engraçada, ele falou de um filme onde o personagem principal era o advogado de defesa e de acusação de um réu num julgamento. Então, esse mesmo personagem fez duas narrativas de defesa e outra de acusação. Então, eu fiz a narrativa do ponto de vista da história, assim como ela aconteceu dentro de um circuito. Só que tinha uma outra história acontecendo dentro do Ministério das Cidades. O movimento popular de moradia, desde que implantou o Estatuto da Cidade e podia fazer iniciativa de projeto de lei, desde a Constituinte, apresentou um projeto de lei, criando a ideia de um sistema de habitação de interesse social, como o SUS da Saúde. Um sistema estruturado nos três níveis, governo local, com controle social, com transferência de recurso fundo a fundo, estruturando a área de desenvolvimento urbano, que nunca foi estruturada. A área de desenvolvimento urbano é um banco ou migalha distribuída a esmo. Então, esse sistema de habitação, depois de muitos anos, no governo Lula foi aprovado no Congresso em 2005 e começou a ser implementado, bem devagarzinho. Dentro desse modelo tinha um Plano Nacional de Habitação, os municípios faziam os planos municipais e os estados, os estaduais. Em cada um tinha um fundo, em cada um tinha um conselho, começou a ser implantado isso no Ministério das Cidades.
Veio o Minha Casa Minha Vida. Não tem nada a ver com o modelo anterior do Ministério das Cidades. Desconstitui isso. E fala: "Não, não, a construtora faz, e o governo dá o dinheiro para a pessoa comprar o negócio da construtora." Não tem fundo, não tem sistema, não tem porra nenhuma, não tem controle social! Nada!


Tatiana Merlino - O que existe efetivamente, hoje, de política social para essa população que não tem acesso à moradia pelo mercado, que mora nas encostas ?


Débora Prado - Você falou que 70% da população mora em áreas irregulares...

Então, essa história dessa construção na área de moradia, hoje, nós temos Minha Casa Minha Vida e o PAC das favelas, recursos para o saneamento e a urbanização de favelas. Tem muito dinheiro e está sendo implementado em muitos lugares do Brasil. O que acontece com o modelo que só pensa no mercado, como Minha Casa Minha Vida e não pensa no processo de controle do desenvolvimento urbano, o subsídio está indo, inteiro, para o preço da terra! Nós estamos vivendo um boom de preço da terra, E qual é a consequência disso? Cada vez é mais difícil, para quem tem menos renda, comprar. O Minha Casa Minha Vida, dos 4 a 6 salários que é o que está bombando. Está ocupando os extremos das periferias. E quem é mais pobre que isso?


Débora Prado - Vai para onde?

Tem uma política que aumentou muito o crédito, disponibilizou muito crédito, viabiliza os negócios e a totalidade disso vai para o preço da terra, porque não tem instrumento de manejo de solo urbano para tentar impedir isso. Mais. Falou-se das ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social). Uma das importantes consequências dos Planos Diretores foi que mais de 70% dos planos no Brasil delimitaram as ZEIS, em áreas ocupadas por favelas para ficar e ser urbanizada e áreas vazias para ZEIS na cidade, com o objetivo de baixar o preço ali.
Mas, o que está acontecendo? Como você tem um descompasso total entre a política de financiamento de moradia e a política de gestão de solo, que não existe, que foi desconstituída, e sem nenhum controle social, sem nenhuma forma pública de trabalho, está se fazendo casa sem cidade. Então, nós teremos crise muito maior do que se tem na circulação.


Débora Prado - Crise no transporte.

Crise na infraestrutura. Crise no transporte. Porque não temos um modelo e não temos uma alternativa de acesso à terra urbanizada para a população mais pobre. A única coisa que se tem dinheiro para remediar quando já é construída a favela. Sinceramente, eu sempre defendi, e sempre defenderei, até os últimos dias de minha vida, a urbanização de favelas, mas eu não posso admitir que a gente vai passar o resto da vida deixando o povo morar em favela para depois urbanizar a favela. Porque até a gente sabe que, embora tenha que fazer, nunca fica bom! Vamos falar sério!


Débora Prado - Mas este modelo continua fomentando a criação de favelas?
Até aqui, em São Paulo, pelo transporte caro e a dificuldade de circulação, as favelas estão nas áreas nobres também.


As favelas estão adensando. E as favelas que estão nas áreas nobres estão sendo objeto, agora, de um ataque! Como relatora de direitos humanos, eu recebo direto as denúncias de amecas de remoção. Eu faço uma geografia das denúncias. Quais são as favelas ameaçadas de remoção? As que estão nas áreas mais valorizadas. Favela lá nos quintos dos infernos, no meio da periferia, sem nada, está tranquila... Até quando? Essa aí só mexem nela quando vai passar o Rodoanel, alguma outra grande infraestrutura,e, de novo sem respeitar os direitos já constituídos.
Eu não posso me conformar que nós estamos picando o Estatuto da Cidade e a Constituição quando, finalmente, a gente tem os recursos para implementar isso! Então, eu acho que o problema é esse da política urbana, hoje, no Brasil. E, por incrível que pareça, eu acho que nenhum país do mundo teria condições de fazer uma política urbana e habitacional como nós, pela trajetória, pelo que já aconteceu, pelo que já experimentou, que já tem de amadurecimento dentro dessa área.
Entretanto, acho que a gente tem que entender isso. O que aconteceu no Brasil? A gente teve a Constituinte em 1988, os anos 1990 foram anos de disseminação da agenda neolibeial nu mundo. Aqui, também. Então, a gente viveu uma trajetória esquizofrênica de implantação de direitos junto com a implantação de uma agenda e de uma pauta neoliberal. E um terceiro elemento que é a nossa cultura política. A qualidade dessa cultura política que é violenta, truculenta, excludente. Isso tudo a gente carrega e é uma tradição daquelas troncudas para carregar. É da combinação perversa dessas três coisas que a gente acabou fazendo esse modelo que nos deixa bastante atônitos. Mas, que dá para entender o porquê.


Tatiana Merlino - O Brasil continua tendo um déficit habitacional de 7 milhões. Quer dizer, mesmo com Minha Casa Minha Vida, essa população continua sem moradia?

Olha, vamos fazer um cálculo assim. O déficit habitacional é um déficit que é calculado, já há muitos anos pela Fundação João Pinheiro que envolve muitas variáveis coabitação, infraestrutura, qualidade da moradia, etc. E para se calcular o déficit habitacional, depois das intervenções de 2006, 2007, 2008, 2009, com o censo 2010. Não foi feito um novo cálculo do déficit habitacional pela Fundação João Pinheiro a partir do Censo de 2010, porque precisa dos microdados do censo. Não são esses números gerais que foram divulgados. Os microdados só serão obtidos no início de 2012. Então, não é possível dizer, com absoluta segurança, o déficit habitacional no Brasil, mas poderá dizer no começo do ano que vem com absoluta segurança e ver o que melhorou. Existem outros cálculos. Em 2005, a própria João Pinheiro fez uma Proxy, usando a PNAD e outras pesquisas, mas não tinha analisado o grande dinheiro chegando, ainda. Então, a gente não consegue enxergar isso. Então, não dá para dizer, hoje, cxatamente o déficit.


Tatiana Merlino - Mas, ele é aproximado com o número de imóveis vazios?

Já saiu nos dados do censo de 2010 o número de imóveis vazios. São as casas e os apartamentos que não têm ninguém morando e não é segunda casa, de turismo. Enfim, são domicílios onde não tem ninguém morando. Quando havia um déficit habitacional de 6 milhões, havia 5 milhões de casas e apartamentos vazios. Onde estão? Uma parte está nos municípios que foram abandonados por sua população e que rumaram às grandes cidades. Tem uma grande porcentagem de cidades fantasmas. A cidade inteira que diminuiu. Ainda tem um movimento de migração, não é tão rural-urbana, mas tem a migração intrametropolitana, outros fluxos migratórios, outros municípios que perdem população. Dois tipos de municípios estão perdendo população: esses que são inviáveis do ponto de vista econômico, que perderam a sua atividade econômica, saíram do circuito territorial, não tem como viver e aí as pessoas migram. E, outro tipo, os municípios centrais dentro da região metropolitana, perdem população, porque o preço da terra aumenta tanto que não tem gente suficiente para pagar aquele preço, para ocupar aquele lugar. E é uma coisa tão absurda! Tem uma luta histórica do movimento de moradia para reabilitar as áreas centrais com prédios vazios e desocupados.
E outra coisa que eu fiquei absolutamente indignada: se lança um programa como Minha Casa Minha Vida com um subsídio enorme, sem ter um componente forte de reabilitação. Poderia fazer reabilitação no Minha Casa Minha Vida, mas é inviável, porque não foi montado para isso. Foi montada para produzir casa nova. O Minha Casa Minha Vida é um lindo programa industrial, fantástico, contracíclico, keynesiano, mas não é uma política habitacional, é um programa industrial. E um programa industrial que vai na perspectiva de distribuição de renda, de ampliação do mercado, de inclusão do trabalhador no mercado. Parabéns, Ministério da Fazenda! Mas alguém tem que fazer política urbana nesse país!


Cecília Luedemann - Seguindo aquela sua ideia de que a cidade é mais uma união de acampamentos em suas periferias, não uma cidade propriamente dita, então, agora, no lugar desses acampamentos serão essas casinhas isoladas do Minha Casa Minha Vida ?

São as casinhas, são os predinhos. Ontem, eu levei os meus alunos, na disciplina de Planejamento Urbano, fomos de ônibus, e observando o caminho até chegar em Suzano. A verticalização da periferia. Que loucura! Você vai caminhando, São Miguel, e mais além, em Guarulhos. Você vê uma verticalização da periferia no Minha Casa Minha Vida, que está realmente mudando. Estão acontecendo, realmente, mudanças importantes no mercado imobiliário urbano. O Minha Casa Minha Vida está incidindo sobre isso, mas, infelizmente, como isso não vem acompanhado de nenhuma política urbana, nossas cidades estão ficando cada dia mais insustentáveis. Vão piorar as enchentes, piorar a circulação. Porque nada foi feito em relação a mudar o modelo de ocupação do solo urbano para evitar enchentes, para evitar o caos no transporte. E nós não temos um modelo de Estado brasileiro na área de desenvolvimento urbano que permita que os municípios produzam urbanização ex-ante, quer dizer, que façam cidade e depois venha o povo morar. Não, é sempre primeiro o povo, depois a cidade vai atrás. Por exemplo, recursos: tem para urbanizar a favela e para construir casa. Não é para isso que nós precisamos de recursos. Nós precisamos de recursos para produzir cidade! Isso não tem, não existe! [Risos]


Bárbara Mengardo - Dentro das grandes cidades, como São Paulo, por exemplo, como é essa relação entre déficit habitacional e imóveis vagos?

De acordo com o censo de 2010, está batendo o número de imóveis vagos com o déficit em São Paulo. No município, está quase batendo. E os dois diminuíram: tem menos imóveis vagos e tem menos déficit no município.


Bárbara Mengardo - E onde estão esses imóveis vagos em São Paulo?

Eles estão muito nas áreas do centro consolidado, no anel central, bairros centrais que perderam população. Mas, agora, o que eu queria chamar a atenção de vocês, também, é que os bairros que se verticalizaram em São Paulo, recentemente, como a Lapa, perdeu população. Não ganhou. Porque o modelo de verticalização é de grandes apartamentos, grandes áreas, muitos carros, muito cachorro e pouca gente. [Risos] Então, num bairro operário, como a Lapa, e o mesmo posso dizer em relação à Mooca, que eu mesma vi os estudos, com muitos sobradinhos, um do lado do outro, e famílias grandes, esse bairro, quando se verticaliza, perde população e aumenta a renda.


Débora Prado - E o limite de construção está, cada vez mais, sendo desrespeitado nas operações urbanas, com torres maiores?

É o que aconteceu em São Paulo e, internacionalmente, foi uma linha, nessa trajetória de mercantilização da produção imobiliária na cidade, uma agenda de flexibilização do planejamento, quer dizer, essa ideia de criar mecanismos que permitissem flexibilizar as regras, considerando o planejamento, a partir do qual não seria possível fazer parcerias público-privadas capazes de transformar áreas da cidade, que são essas áreas de renovação urbana. Então, essa agenda fez parte da própria agenda da financeirização da produção da cidade, da renovação urbana.


Tatiana Merlino - Eu queria que você fizesse uma relação entre exclusão urbana, especulação imobiliária e os megaeventos, especialmente a Copa.

Primeiro, deixa eu colocar isso no âmbito internacional. Eu apresentei outro relatório temático sobre megaeventos e direito à moradia, porque eu recebi muitos estudos e muitas denúncias em todas as cidades em que estavam acontecendo megaeventos. Desde a época que sou relatora, eu peguei Beijing, os jogos olímpicos na China, peguei na África do Sul, com a Copa do Mundo, peguei os Dhoni dwells games em Nova Deli, na Índia, e em Vancouver, a olimpíada de inverno. E eu fui acompanhando esses processos. Denúncias de remoções em massa, muitas denúncias de violação do direito à moradia, no âmbito da cidade receber um megaevento. Em função disso, eu resolvi fazer um relatório, estudar, procurei o Comitê Olímpico Internacional (COI), procurei a Fifa para conversar sobre essa questão. Com o COI comecei a estabelecer um diálogo sobre a incorporação da questão do direito à moradia, na fase da seleção dos projetos. A Fifa sequer respondeu à minha carta. Nada. A Fifa é uma das organizações internacionais mais corruptas, é puramente negócios, é absolutamente impressionante, é urn perigo, um perigo! O COI tem ainda uma certa governabilidade, uma ética. E a partir, então, desse relatório, foi possível perceber, e aí eu vou usar uma expressão que o Carlos Vainer tem usado nos trabalhos dele, que se constitui um verdadeiro "Estado de Exceção" nas cidades que são sede desses megaeventos. E por que isso? Na verdade, o megaevento, dentro dessa estratégia mais geral, global, que os mercados imobiliários são âmbitos de atração de capital, é perfeito para essa estratégia, porque permite vender essa nova localização, praticamente de graça, pelo simples fato de que ali vai ter os jogos. Aquilo é o marketing puro, automático, sem investir nele, porque já é uma vitrine, todos vão falar dele. O processo de venda da cidade acontece imediatamente, sem ter que montar stand em feira de negócios. Barcelona foi emblemática dessa mudança, porque os jogos têm se transformado também em processos de transformação urbanística, em formas de fazer processos de urbanização. E com a vantagem de que esses megaeventos criam espírito, tem uma dimensão cultural e afetiva: "É o nosso país!" É uma coisa nacionalista, o esporte, o espírito da competição entre os povos, trabalhado pelo COI. Então, ao mobilizar sentimentos e patriotismos, é muito difícil criticar ou questionar, porque somos nós. Nós, mostrando ao mundo que somos lindos. Não dá para ser contra. Então, essa combinação perversa, para a cidade se preparar para uma Copa do Mundo e uma Olimpíada, ela poder passar por cima de tudo. De tudo que, em circunstâncias normais, existem resistências aqui e ali, uma legislação de proteção dos direitos humanos, uma legislação de proteção ambiental, legislação de processo licitatório, legislação de processo fiscal, ele, tudo. Para conseguir fazer alguma coisa no Brasil não é fácil. (Risos) Existem vários controles legais e sociais em várias esferas. O megaevento permite retirá-los. E já começou a acontecer isso: isenção fiscal, processo de aprovação rápida... Em nome de quê? "A gente não pode fazer feio. Tem que construir logo, tem que estar pronto no dia. Então, tem que passar por cima." Então, é isso que o Vainer define como um "Estado de Exceção".


Débora Prado - O Vainer diz que o megaevento é um instrumento para a cidade-empresa e para a cidade-vitrine, uma atração de negócios e de marketing.

Exatamente. Então, a estratégia dos megaeventos se transformou e foi totalmente capturada nisso. Eu, evidentemente, porque não sou louco não sou contra o Brasil ter Copa do Mundo e Olimpíada. Eu acho, porque sou uma otimista teimosa, que a Copa do Mundo e a Olímpiada poderiam ser um espaço de construção de um legado socioambiental, para a gente poder fazer diferente, fazer com outra lógica. Entretanto, os sinais que estão aí sendo dados, a partir desse começo, vão no sentido contrário, oposto. Mas eu acho que é absolutamente necessário que os grupos, as entidades, as organizações, os intelectuais, os artistas, que estão percebendo que isto está acontecendo, se articulem, rapidamente, para construírem um outro legado. E eu posso dar o exemplo de Vancouver. Uma articulação desse tipo em Vancouver produziu mudanças muito significativas para os Jogos de Inverno e um compromisso social fez parte importante disso. Claro que veio a crise financeira, cortaram o legado social, só ficaram os estádios. (Risos) E acabou não sendo toda a plataforma negociada publicamente sendo implantada. Mas, é um exemplo de que é possível e a sociedade civil brasileira tem que acordar.
Eu acho que nós estamos em uma espécie de anestesia, de susto. De fato, ganhamos o governo federal, ganhamos políticas com mais distribuição de renda, o avanço que aconteceu no Brasil... Nós temos que acordar para perceber que essas coisas têm limites, têm obstáculos e que, aí falando como uma pessoa que esteve no governo municipal e federal, como gestora: "Se não tiver um movimento social e uma vanguarda crítica, questionadora, organizada e forte, o governo só vai para trás!" Porque a força, no Brasil, para ir para trás é tão grande que o governo precisa de um movimento social forte, para o governo poder negociar urna ida para a frente. Porque senão, é impressionante, é para continuar beneficiando que sempre beneficou. Não mudou essa lógica. O Estado brasileiro está montado para isso, para você fazer o contrário com as estruturas que tem, é dificílimo e só com muito movimento social, só com muita luta da sociedade, só com muita denúncia, só com muita crítica que a gente consegue ir para frente.
Infelizmente, os partidos de oposição não fazem isso, não são isso. Infelizmente. No mundo partidário, ou é uma situação que então não faz crítica, porque é situação, dá sustentação política para o governo. E a oposição é pior do que o governo. (Risos) "Sou contra o governo, porque você está no poder, quero estar eu." E com uma pauta, que pudemos ver nas eleições, quando polarizou com o Serra e a Dilma, que Deus me livre! Eu virei, com todas as críticas que eu tinha ao governo Lula, fui para a rua com camiseta e bandeira. Óbvio. Mas, o que aconteceu? O PT e os partidos têm que fazer uma reflexão, porque não é possível! E o movimento social, também, porque a cooptação é muito grande, a distribuição de pequenos benefícios também inclui o movimento social neste momento. Eu acho isso um enorme perigo. E, para a gente poder avançar, a gente vai ter que puxar uma outra agenda e uma outra pauta.


Bárbara Mengardo - Nesse assunto, a gente viu o que aconteceu com o Pan. As obras foram abandonadas, retiraram um monte de gente para depois não ter utilização popular como era dito.


Débora Prado - É uma privatização de massa de recurso público, uma transferência direta para empresa?

É o que está acontecendo. Eu sinto que o governo federal tentou fazer alguns movimentos de controlar, pelo menos, a grande bandalheira. (Risos) O governo federal, por exemplo, tentou não se envolver com recursos públicos federais na construção de estádios, mas agora o BNDES está entrando... Em sei muito bem a insistência de colocar o Henrique Meirelles a frente da Autoridade Olímpica contra o interesse da máfia do esporte no Brasil que queria mandar na Autoridade Olímpica. Agora, o problema é: que sensibilidade tem o Henrique Meirelles para o legado socioambiental? (Risos) A gente fica entre o ruim, o péssimo e o horroroso. Porque, de fato. É verdade que a pressão para a bandalheira, estilo máfia, mubo explícito, é tão grande que o esforço do governo federal de conseguir alguma respeitabilidade e não participação nos esquemas de roubo organizado já é um primeiro passo. (Risos)
Entretanto, isso está em nossas mãos. Se não houver um movimento social forte que obrigue o governo a exigir uma pauta de um legado, ele não vai acontecer, porque a força é o pior do pior.


Otávio Nagoya - Você comentou que o governo Lula fez uma certa redistribuição de renda, mas não mexeu com os interesses do capital. É possível garantir o direito à moradia para a população sem ir contra os interesses das grandes empreiteiras e das grandes construtoras?

Olha, não se faz omelete sem quebrar ovo, não existe a possibilidade de garantir o direito à moradia e o direito à cidade sem que esses interesses sejam contrariados. Entretanto, o que eu acho que estava na agenda da reforma urbana, muito forte nesse momento, era a ideia de um pacto socioterritorial civilizatório, que a gente ainda não teve no Brasil, onde os interesses das classes populares pudessem ser reconhecidos e os ganhos do grande capital pudessem ter menos incidência. Não quer dizer acabar com eles, acabar com o mercado, com os negócios. De jeito nenhum. Eu posso dar inúmeros exemplos dos países europeus, onde pactos desse tipo foram realizados. Você olha a Itália dos anos 1960 é um pacto socioterritorial para os trabalhadores que garantiu avanços e acesso à terra e à moradia. Mas, não acabou com o setor produtivo e empresarial, pelo contrário, mas teve um mínimo de pactuação, tem um limite. A aposta nossa dos planos diretores participativos, a aposta nossa do conselho das cidades, da ideia de constituição de uma esfera pública era a ideia de um espaço de pactuação, onde esses interesses pudessem se manifestar.

(Caros amigos. Abril 2011)

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