domingo, 8 de maio de 2011

SUSTENTABILIDADE

Uma ilha planetária

Não perguntes por quem os sinos dobram: eles dobram pelas focas, pelas fraldas e também pelo homem


Há pouco mais de uma década, a preocupação brasileira com a preservação da natureza tinha data, horário, público e endereço certos. Ela transcorria no dia 21 de setembro, antes do recreio, e era presenciada por crianças de escolas primárias. No Dia da Árvore, a garotada se acotovelava em torno de um garoto que, sob o olhar circunspecto da professora, cavava desajeitadamente um buraco e nele depositava a semente de um pinheiro ou similar. Com a cerimônia, prestava-se reverência ao verde, à mãe natureza, à terra que dá frutos e flores – e se esquecia do assunto no recreio mesmo, até que ele retornasse no próximo Dia da Árvore. Essas árvores todas de antanho podem não ter alterado o equilíbrio ecológico do planeta, mas a idéia de preservação do meio ambiente floresceu numa dimensão amazônica. O 21 de setembro virou assunto cotidiano, com todo um léxico de sinistras expressões: efeito estufa, degelo da calota polar, vazamento de usinas nucleares, lixo atômico, poluição industrial, extinção das espécies animais, camada de ozônio e destruição do planeta.
Mudou a concepção da humanidade em relação à Terra: este é um tempo em que americanos e soviéticos se unem no enregelado Ártico para salvar três baleias, enquanto por todo mundo se acompanha o drama dos simpáticos mamíferos durante quinze dias. Adeus Moby Dick, monstro selvagem que arrastou o capitão Acab para o fundo dos mares silenciosos. Bem-vindos capitães da indústria, tubarões das finanças e cinzentos políticos profissionais, que agora se reúnem para condicionar empréstimos mediante o compromisso de se preservar a Amazônia. No século XVII, o reverendo e poeta anglicano John Donne proclamou do púlpito da Catedral se São Paulo, em Londres, que “nenhum homem é uma ilha completa em si mesma; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme”, e completou o raciocínio com a expressão que Ernest Hemingway usaria como título de romance: “A morte de qualquer homem diminui a mim porque estou envolvido na humanidade; por isso não mandes indagar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.


PLÂNCTON – Neste fim de século, aumenta cada vez mais a consciência de que nenhuma ilha é uma ilha. A consciência de que todos – culturas e ursos pandas, civilizações e focas, tribos indígenas e superpotências nucleares – estão na mesma ilha planetária, no frágil e exaurível ecossistema terrestre cercado de infinito por todos os lados. O brasileiro precisa que o australiano cuide bem do plâncton do Oceano Pacífico para que o clima na Amazônia não seja alterado. O plâncton – a fauna e a flora que sobrenadam nos mares – é que determina a cadeia biológica dos oceanos e se as águas vão absorver muito ou pouco calor solar. Quanto menos plâncton, mais calor as águas absorvem, e mais frio o clima. Nenhum país é uma ilha, completo em si mesmo. Toda a humanidade é parte da natureza e por isso não perguntes por quem os sinos da ecologia dobram: eles dobram por ti.
O sino de Donne badalava no compasso do sentimento religioso, em que todo homem está ligado a seu próximo porque a humanidade faz parte de Deus. Os da ecologia bimbalham o som da ciência, da política, da economia e da técnica, ainda que comportem muito de misticismo. O marco inicial da ecologia foi a Conferência das Nações Unidas sobre o ambiente, que reuniu representantes de 109 países, em Estocolmo. Nela se misturaram políticos profissionais, diplomatas, economistas, cientistas e toda uma ruidosa assistência de hippies, gente da contracultura e militantes da nova esquerda. A conferência foi batizada de “Woodstocolmo”, numa referência ao festival pop de Woodstock, onde já germinavam as idéias de preservação do ambiente.
O ecologismo dos anos 60 fazia parte de uma ideologia mais ampla e mais vaga, mas igualmente poderosa: era parte do movimento contra o então chamado “sistema”, com seu industrialismo predatório, sua contínua produção de dejetos, suas cidades saturadas de seres anônimos. Hippies, contra-culturais e novos esquerdistas são hoje fosseis exibidos no Museu 68, enquanto políticos, economistas e cientistas se adaptaram melhor ao ambiente dos anos 80. Mas como nenhuma ideologia é completa em si mesma, herdando e reelaborando as que lhe antecederam, a ideologia do ecologismo incorporou muito da vaga libertária dos anos 60. Mas a ecologia também não gerou uma utopia. A ecologia, ao contrário, alimenta as imagens do apocalipse.


AIDS – Fim de milênio é tradicionalmente época de utopia e apocalipse. O surgimento do salvador no início da Era Cristã e o fim do mundo na Idade Média, do ano 1000. Agora, a uma década do ano 2000, as imagens do apocalipse são as da Aids (epidemia descontrolada e letal), da guerra nuclear (mesmo que por acaso: o sargento louco que aperta o botão é joga a bomba sobre Moscou, os russos retaliam, e catapum!, hora de Finados para a ilha-Terra tal qual a conhecemos), da superpopulação (em 1800 a humanidade consistia em um 1 bilhão de pessoas e em menos de quarenta anos seremos 10 bilhões de terráqueos), da quebra do sistema financeiro internacional (a dívida dos países do Terceiro mundo é elemento dessa crise) e, claro, do caos ecológico. Todos esses problemas são reais, palpáveis, mas as imagens angustiosas que neles se alimentam têm como base um deslocamento de linguagem. No livro de Susan Sontag A Aids e suas metáforas, lançado há duas semanas nos Estados Unidos, a ensaísta americana sustenta que toda projeção futurista tende necessariamente à catástrofe, ao caos, à entropia. Essas projeções criam uma dupla realidade, a dos desastres ocorridos e até agora contornados e a da sua extrapolação em apocalipse irreparável.
É o caso do efeito estufa, que existe como projeção, e não como realidade. Nessa projeção se defende que se a Amazônia for queimada a quantidade de gás carbônico liberada seria de tal ordem que a atmosfera não teria como lidar com ela. Assim, os raios de sol atravessariam essa nuvem carbônica, se refletiriam no solo, mas, na forma de raios infravermelhos, não conseguiriam furar de volta o CO2 e permaneceriam então aprisionados na superfície do planeta, aumentando o calor na Terra inteira. Esse calor derreteria parte das calotas polares, os oceanos subiriam de nível, e, em meados do próximo século, boa parte da Holanda, a região de Miami, na Flórida, e o Rio de Janeiro seriam inundados. Holandeses, americanos e brasileiros teriam razão para se preocupar hoje com as queimadas na Amazônia. Só que há cientistas, como Fred Singer, do Departamento de Transporte dos EUA, que defendem que o gás carbônico incrementaria as nuvens que refletem o calor, contrabalançando o dano do efeito estufa. Os cientistas debatem a questão, mas, antes que da discussão se faça a luz, a confusão domina. Só tempo permite uma perspectiva esclarecedora: há dez anos, uma descarga acidental de gás sulforoso no Pólo Petroquímico de Camaçari, na Bahia, sufocou e matou 20.000 árvores dos arredores. Mas hoje a média salarial dos 24.000 empregados de Camaçari é de 1.000 dólares por mês – a maior da América Latina.


VERDISMO XIITA – No caso do efeito estufa, impõe-se a idéia de que, por via das dúvidas, é melhor não queimar a Amazônia, em benefício da futura geração de cariocas, holandeses e moradores de Miami. Sem esquecer que há na Amazônia colonos que, se não queimarem a mata, morrerão de fome hoje ou amanhã. O indivíduo que quiser pautar pelo ecologismo extremado, pelo verdismo xiita ou pela soma ensandecida de todas as projeções científico-computadorizadas acabará paralisado. Terá de comer só tomate sem casca, já que um estudo que o Conselho de Defesa de Recursos Naturais, dos Estados Unidos, divulgou na semana passada concluiu que os pesticidas na casca dos tomates podem provocar câncer em 875 pessoas de cada grupo de 1 milhão. Também não poderá usar fraldas descartáveis nos filhos, pois o plástico que há nelas leva 400 anos para se degradar. Soa estranho que o homem, que está na Terra há mais de 2 milhões de anos, tenha saído das cavernas, descoberto o fogo, inventado a roda, a escrita, construído civilizações, pintado teto da Capela Sistina e viajado à Lua para, nessa altura dos acontecimentos, dedicar-se a descascar tomates e lavar fraldas. Nossos ancestrais desceram das árvores em busca de uma vida melhor, de felicidade. A ecologia, a preocupação com a preservação com a natureza, significa o apego do ser humano não só ao seu ambiente, mas também a si mesmo. A Terra existe há mais de 2 bilhões de anos e – eis outra previsão científica – deverá durar uns outros 4 bilhões, quando o Sol acabar de consumir o seu hidrogênio, se expandir e torrar este planeta próximo. Ela começou a existir sem o homem. Poderá terminar sem ele, se a humanidade colonizar outros planetas antes do prazo de 4 bilhões de anos. Mas poderá também terminar junto com o homem se ele não se entender e arrasar a si mesmo e ao planeta. A ecologia é apenas um lembrete desse fato singelo. (Veja. 1º de fevereiro, 1989)

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