quinta-feira, 5 de maio de 2011

POLÍTICA PÚBLICA: HABITAÇÃO (II)

Cultura > 20/05/2008


O direito à moradia adequada



Ricarda Lucilia Domingues Tavares, arquiteta e urbanista e orientadora do Projeto rio Democracia



Abrigo, casa, lar, residência, habitação, dependendo da abordagem dada ao tema, o objeto de moradia permite diversas denominações. O abrigo sempre foi uma necessidade humana. Ao abrigar-se (proteger-se), o indivíduo também atende a diversas outras necessidades básicas, como alimentar-se, dormir (descansar), trabalhar (produzir), conviver em família, ter sua privacidade resguardada e, se possível, sua propriedade garantida. Além de necessidade básica, a moradia também é um direito, referido por documentos internacionais que tratam da matéria, entre eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e a Agenda Habitat (1996).
O modo como os grupos humanos agem e se organizam socialmente exerce influência direta nas formas que os objetos de morada assumem e no lugar que eles ocupam no espaço, mais especificamente nas cidades. O acelerado processo de urbanização por qual passou o Brasil, a partir de meados do século XX, teve como primeira evidência a progressiva transferência da população do campo para a cidade, até chegarmos ao quadro atual, onde mais de 80% dos brasileiros vivem em áreas urbanas. A multiplicação de contingentes humanos morando em grandes centros de atratividade econômica gerou, num segundo momento, a formação de regiões metropolitanas densamente ocupadas, caracterizadas por uma concentração de equipamentos e serviços na cidade sede e por periferias precariamente infra-estruturadas, absorvendo a maior parte das demandas por um lugar de moradia e trabalho na metrópole.
Alguns temas tornaram-se dominantes nas duas últimas décadas quando se trata do cotidiano nas regiões metropolitanas brasileiras. O principal deles é a urgência de se buscar meios capazes de promover a diminuição, ou correção, das desigualdades sócio-territoriais produzidas pela frenética urbanização, a fim de se garantir, a todos os cidadãos, uma qualidade de vida digna. E a garantia de condições mínimas de qualidade de vida está diretamente relacionada com a efetivação do direito à moradia, a partir da elaboração e implementação de políticas públicas habitacionais eficazes.
A efetivação do direito à moradia se torna complexa por envolver a aquisição de outros direitos. Ter acesso à moradia implica em ter acesso ao solo urbano, regulado por leis e produzido por diversos agentes, em especial os agentes do capital, que imprimem valores diferenciados à terra. A terra urbana tem um preço definido não somente pelo valor da produção de bens e serviços em si, mas pelas regras de valorização do capital em geral, ou seja, pela própria produção social. Assim, o valor da terra está associado também ao (bom) acesso ou não a um conjunto de equipamentos e serviços nela implantados. Portanto, morar custa caro e, se considerarmos sua associação a esses equipamentos e serviços, “morar bem” ou ter uma moradia adequada, custa mais caro ainda.
O Direito à Moradia Adequada é um conceito mais amplo, que significa não só o acesso à habitação, mas também a um conjunto de condições capazes de assegurar uma sobrevivência digna. Grande parte das populações urbanas, apesar de viverem sob um teto, passa por situações adversas, por apresentarem irregularidades no imóvel; por não terem facilidade de acesso a serviços e equipamentos públicos; por não disporem de renda comprovada ou suficiente para arcar com os elevados custos de moradia; por não contarem com níveis de salubridade mínimos; por não integrarem os grupos mais comumente contemplados em programas habitacionais; por terem dificuldades para adequar-se a um ambiente não condizente com suas experiências socioculturais.
Considerando os aspectos acima mencionados, a Relatoria Nacional para o Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana adota como componentes essenciais da moradia adequada:

• Segurança jurídica da posse;

• Disponibilidade de serviços e infra-estrutura;

• Custo acessível;

• Habitabilidade;

• Acessibilidade;

• Localização;

• Adequação cultural.

Portanto, o déficit de unidades habitacionais não é o principal desafio a ser enfrentado para que as necessidades dos grupos mais vulneráveis sejam supridas. A Fundação João Pinheiro sugere que o termo necessidades habitacionais seja utilizado na indicação de dois segmentos distintos: o déficit habitacional e a inadequação de moradias. O deficit habitacional diz respeito ao número necessário de construção de novas moradias para a solução de problemas sociais detectados em determinado momento, tanto relativos a condições de precariedade da habitação como à situação de coabitação familiar ou de gasto excessivo com aluguel.
A inadequação de moradias, por sua vez, refere-se aos problemas na qualidade de vida dos moradores, não tendo relação direta com as demandas por novas unidades, mas sim com o não atendimento das condições mínimas, já citadas como componentes essenciais, para se garantir a dignidade humana.
O Estado é presença determinante na produção, distribuição, regulação e gestão dos equipamentos de consumo coletivos necessários à sobrevivência nas cidades – redes de água, esgoto, drenagem, luz, telefone, coleta de lixo, sistema viário e transporte coletivo; equipamentos de saúde, educação, lazer e esporte; habitação. Determinadas ações e decisões urbanísticas – tais como a realização de obras públicas pontuais e mudanças na legislação e na classificação do solo – podem alterar significativamente o valor da terra e promover estratificações socioespaciais e desigualdades que limitam o direito à cidade.
Atualmente, há um consenso em se apontar o Poder Local (Município/Estado Local) como componente estratégico para o desenvolvimento de programas e ações que tenham como resultado efetivo o respeito aos direitos humanos. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 reconhece o Município como um dos entes da Federação, ao lado da União, dos Estados e do Distrito Federal. O artigo 23, inciso IX, diz ser competência comum da União, Estados e Municípios promoverem programas de construção de moradia e melhorias nas condições habitacionais. Ao Município cabe a gradativa responsabilidade de provisão de moradia para a população de mais baixa renda que no seu território vive e habita, devendo estabelecer, para isso, uma Política Habitacional.
O direito à moradia foi consagrado e diretamente mencionado na Carta Magna a partir da Emenda Constitucional 26/2000, que modificou a redação do Art. 6º incluindo-o entre os demais direitos sociais. Além disso, a Constituição de 88 foi a primeira a dedicar um capítulo exclusivo à Política Urbana, composto pelos artigos 182 e 183. Seu conteúdo é resultado de históricas reivindicações de diversos segmentos da sociedade brasileira por cidades mais justas.
Foram necessários treze anos para que os artigos 182 e 183 fossem regulamentados, por meio do Estatuto da Cidade, Lei Federal no 10.257/2001, que também estabelece normas para regulação do uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. O Estatuto confirma o Município como o principal responsável pela execução da política urbana, oferecendo-lhe um conjunto de instrumentos capazes de intervirem no mercado de terras e no processo de exclusão social, garantindo o cumprimento integral da função da cidade e da propriedade urbana.
As principais diretrizes estabelecidas no Estatuto da Cidade são:

• A garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para a atual e para as futuras gerações (Art. 2º, I);

• A gestão democrática, que é a garantia de participação da população e de segmentos sociais em todas as decisões de interesse público (Art. 2º, II);

• A “gestão social da valorização da terra”, entendida como o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (Art. 2º, IV).

• A justa distribuição dos benefícios e dos ônus decorrentes do acelerado processo de urbanização (Art. 2º, IX);

• A regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais (Art. 2º, XIV).

O Estatuto promoveu um avanço fundamental ao incluir a regularização fundiária na agenda obrigatória da política urbana e habitacional, pois as irregularidades jurídicas são um dos maiores entraves à universalização do direito à cidade. Como principal instrumento da política urbana municipal, cabe ao plano diretor a definição de diretrizes e previsão de instrumentos específicos que possam viabilizar o acesso à moradia adequada para as camadas mais populares.
Terminado o prazo legal, estabelecido pelo Estatuto da Cidade, para que os municípios em obrigatoriedade – entre eles, os integrantes de regiões metropolitanas – elaborassem ou revisassem seus planos diretores, torna-se imprescindível uma avaliação. De que maneira os municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro vêm incorporando os conteúdos da Constituição e do Estatuto? Como vêm se organizando para cumprir sua responsabilidade em prover de moradia os grupos mais vulneráveis? Quais políticas públicas vêm sendo implementadas com esta finalidade? Elas têm sido eficazes? Quais propostas podem integrar uma agenda para que o direito à moradia adequada seja efetivado? O Projeto Rio Democracia, com sua programática e objetivos específicos, pretende chegar a respostas para essas questões e ainda indicar possibilidades de ações futuras que visem à efetivação dos direitos sociais.



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