José Maria Pereira da Nóbrega Júnior
I.
INTRODUÇÃO
Quando
um país passa por um processo de redemocratização, uma das primeiras medidas a
ser tomada é a desmilitarização do seu aparato de segurança. O objetivo é
tornar nítida a separação das funções militares e civis: a polícia é
responsável pela ordem interna, enquanto os militares encarregam-se dos
problemas externos. A Constituição de 1988 manteve inalterada a prerrogativa
militar de intervir em assuntos internos, limitando o controle civil sobre os
militares brasileiros (ZAVERUCHA, 1998).
Ponto
importante para a efetividade da democracia2
é o que diz respeito à segurança dos indivíduos. A segurança é um direito civil
e social, e consta nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988. Em seu
artigo n. 144, temos disponibilizado o seu ordenamento. A estrutura da
segurança pública brasileira, que deveria ser de natureza civil e com fins de
defender os interesses dos cidadãos brasileiros em quaisquer circunstâncias,
preocupa-se mais com a defesa dos interesses do Estado do que da cidadania. O
processo de militarização3
dessas instituições é a prova do hiper-dimensionamento do Estado em relação aos
cidadãos4.
Neste
artigo, discuto a questão da segurança pública baseado na teoria democrática
contemporânea de caráter minimalista, não submínima (MAINWARING, BRINKS &
PÉREZ-LIÑÁN, 2001). Observo que atores políticos não eleitos influenciam de
forma decisiva no quesito Segurança Pública. No caso aqui em destaque, esses
atores políticos são os militares5.
Encontramos ingerências dos militares na segurança pública, e isso fere os
princípios básicos da democracia, pois são atores não eleitos que planejam,
gerem e estruturam instituições de segurança no lugar dos atores civis, sendo
estes indicados pelos representantes eleitos pelo povo. As instituições que
focamos para desenvolver esta interpretação são a Constituição de 1988, o
Ministério da Defesa e a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência).
II.
OS MILITARES E A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Na
Constituição Federal de 1988, as cláusulas relacionadas às Forças Armadas,
policiais militares estaduais, sistema judiciário militar e de segurança
pública em geral, permaneceram praticamente idênticas à Constituição
autoritária de 19671969. As Forças Armadas tiveram um papel de grande
importância na manutenção de suas prerrogativas, pois nomearam 13 oficiais
superiores que fizeram lobby pelos seus interesses no período de redação
daquela carta (ZAVERUCHA, 1998).
Eram
oito as comissões de trabalho responsáveis pela elaboração da Carta
Constitucional. A Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das
Instituições, presidida pelo então Senador Jarbas Passarinho - o mesmo que
participou do Ato Institucional 5 (AI-5), em 1968, que fechou o Congresso
Nacional - ficou encarregada dos capítulos ligados às Forças Armadas e à
Segurança Pública (ZAVERUCHA, 2005, p. 60).
O
Deputado Ricardo Fiúza ficou responsável pela Subcomissão de Defesa do Estado,
da Sociedade e de sua Segurança. Apoiou firmemente as demandas militares nos
debates constitucionais, chegando a rejeitar a tentativa de alguns
congressistas de criar o Ministério da Defesa, bem como a trabalhar, também,
contra a tentativa de dar-se fim ao controle do Exército sobre as Policias
Militares Estaduais. Optou por favorecer a autonomia das Forças Armadas,
mantendo o controle parcial do Exército sobre as polícias militares, alegando,
para isso, que o governo necessitaria de todas as suas forças para controlar
contestadores da ordem social6
(idem, p. 60-61).
O
resultado disso foi uma constituição com fortes prerrogativas para os
militares. Isso ficou configurado no caráter ambíguo da carta magna: entre
artigos liberais de um lado e de outro, artigos com forte inclinação à
ingerência militar7.
Analisando o artigo 142, da Constituição Federal de 1988, percebe-se tal fato
de forma bastante dimensionada: "As Forças Armadas, constituídas pela
Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais
permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina,
sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da
Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer
destes, da lei e da ordem". Como garantidores da lei e da ordem internas,
a qualquer momento esse ator político (as Forças Armadas) pode interferir em
assuntos de segurança interna que, em democracias plenas, jamais existiria. Tal
prerrogativa aparece como sendo de alta intensidade, pois a constituição
encarrega os militares de serem os principais responsáveis na garantia da lei e
da ordem interna, outorgando-lhes uma grande margem de decisão que lhes
permitem determinar quando e como devem cumprir com suas obrigações (STEPAN, 1988,
p. 525).
Lei
e ordem podem ter várias conotações; a interpretação da ordem interna por parte
dos militares pode estar permeada por uma série de estímulos ideológicos. A
garantia dessa ordem, ou dos poderes constitucionais, quando da solicitação de
qualquer um dos três poderes da República (Executivo, Legislativo ou
Judiciário), pode não ser levada em consideração por parte dos militares. Se os
três poderes não acharem conveniente ou necessária a intervenção dos militares
para manter a ordem interna, mas estes, baseados na Constituição - que lhes dá
poderes de garantidores da lei e da ordem interna -, acharem que devem
intervir, prevalecerá a vontade castrense, daqueles que estão armados
(ZAVERUCHA, 1998, p. 128). Por conseguinte, a autoridade suprema do Presidente
da República perante os militares pode ter efeito nulo, sobretudo quando ele
estiver fraco politicamente. O artigo 142 também não especifica de que tipo é a
lei que está nele inserida, se de ordem constitucional ou ordinária, e a ordem
também não está especificada, se tem caráter social, político ou moral. Esse
artigo é muito vulnerável, fazendo que uma intervenção militar em assuntos
internos ocorra ao bel-prazer dos militares.
É
importante destacar a questão da hierarquia e a visão dos militares
brasileiros. Atassio (2007) demonstra como a memória social dos militares
aponta para uma perspectiva positiva do ordenamento e do papel das Forças
Armadas. No exemplo levantado em seu trabalho, a autora demonstra que é
positiva a visão oficial dos militares, sobre o golpe militar de 1964 - visão
que é a versão oficial da história militar, chamada de "Revolução de
64" e que é ensinada nas academias militares, perpetuando essa perspectiva
histórica. "A memória herdada é aquela em que, por meio da socialização,
seja ela política, seja histórica, ocorre um fenômeno de projeção ou
identificação com uma memória que não pertence àquele que a lembra, mas que vem
de outra pessoa, do mesmo grupo, todavia é sentida como se tivesse sido
realmente vivida pelo que a rememora. A imagem sobre Castello Branco é um
exemplo deste tipo de memória. Tido como um exemplo de militar legalista, a
história nos conta que Castello era sim um conspirador, no entanto, possuía um
perfil mais moderado. Ainda assim, a imagem perpetuada dentro da instituição vê
o primeiro Presidente militar como o baluarte da moral e integridade apregoada
pela instituição, que chegou por acaso à liderança do movimento de 64" (idem,
p. 6).
Dessa
forma, a hierarquia é vista como um valor, um símbolo muito forte dentro das
Forças Armadas. A tendência é destacar os militares como defensores da
democracia e da ordem, expurgando qualquer posição que seja a ela
contraditória. No início da revolução, muitos militares moderados, de esquerda
e de pensamento mais progressista, foram expurgados das Forças Armadas de forma
sumária (ALVES, 1984). Os militares omitem fatos que os desagradam da época em
que golpearam o país; seus líderes até hoje reverberam o valor das insígnias da
caserna como elementos fundamentais para a manutenção da democracia (MAGALHÃES,
2009).
Depois
do incidente provocado pela intervenção militar, solicitada por um juiz do
Terceiro Distrito de Volta Redonda8,
na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que resultou na morte de três
operários da empresa, o Congresso Nacional aprovou, em 23 de julho de 1991, uma
lei complementar, de número 69, que veio restabelecer a cláusula constitucional
de 1967-1969. Esta concedia apenas ao poder Executivo federal o direito de
pedir a intervenção militar interna. O artigo n. 142 nivela os três poderes e
não especifica nenhuma hierarquia dentro deles ou entre eles. "Na primeira
versão do artigo 142 os militares perderam o papel de guardiões da lei e da
ordem. O Ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves, ameaçou zerar
todo o processo de redação constitucional. Temerosos, os constituintes acharam
por bem ceder e o papel de garantidores da lei e da ordem voltou a aparecer na
nova versão do referido artigo. Para que tal capitulação ficasse dourada, o
Congresso optou por conceder tanto ao Judiciário quanto ao Legislativo o
direito de pedir a intervenção das Forças Armadas em assuntos domésticos. Ao
não especificar que instância do Judiciário poderia convocar os militares, a
Constituição nivelou os poderes do Supremo Tribunal Federal ao de um juiz
iniciante em uma pequena cidade. Do mesmo modo, equiparou o Presidente do
Congresso a um parlamentar em seu primeiro mandato" (ZAVERUCHA, 1998, p.
128-129). Ou seja, a lei complementar n. 69, ao invés de inferir maior controle
civil sobre os militares, deu maiores prerrogativas aos mesmos, pois retomou a
essência do período de exceção, concentrando as decisões no poder Executivo.
Com um Presidente nas mãos dos castrenses, a intervenção militar em assuntos
políticos fica mais fácil de ocorrer.
III.
O MINISTÉRIO DA DEFESA9:
ESFERA CIVIL OU MILITAR?
O
Ministério da Defesa (MD) surge como um ponto importante nas relações
civis-militares. Segundo Oliveira e Soares (2000), o MD foi criado na tentativa
de colocar os assuntos militares sobre influência e controle dos civis. Depois
de um longo processo de análise, que durou todo o primeiro mandato de Fernando
Henrique Cardoso (FHC), em julho de 1999, foi criado o MD, após um período de
cinco meses em caráter extraordinário - durante o qual conviveu com os demais
ministérios militares, que foram extintos posteriormente. A criação do MD
deu-se por Medida Provisória; a participação do Congresso foi praticamente
inexistente. A participação da comunidade acadêmica foi irrisória (OLIVEIRA
& SOARES, 2000). No processo de construção de tal ministério, a atuação dos
militares, com sua representação no EMFA (Estado Maior das Forças Armadas) foi
decisiva, e sua estrutura mostra-se, ainda hoje, bem militarizada. Os ministros
civis que "comandam" o MD são ofuscados por vontades de generais
(alguns deles da reserva) que realmente mandam, mantendo o poder reservado ao
poder Executivo.
Nos
Estados Unidos, a posição institucional do Ministro da Defesa é fortalecida10.
No Brasil, aquele modelo foi criticado pelos militares, que alegaram
peculiaridades tais que inviabilizariam modelo estadunidense. O Ministro da
Defesa dirige-se diretamente aos comandantes de cada força, já que o Ministério
da Defesa não possui um forte Estado-Maior Geral, que comande a Marinha, o
Exército e a Aeronáutica. Esse Estado-Maior Geral, denominado no Brasil de
Estado-Maior da Defesa, tem a função de assessoria e segue uma especificidade
militar. O Ministro da Defesa termina não participando do processo de ordenança
das operações. Já no modelo dos Estados Unidos, o Secretário de Defesa controla
pessoalmente os comandos (LOPES, 2001).
No
que tange à criação do MD, ali não houve nenhuma intenção de efetivar algum
tipo de controle civil sobre os militares. Na verdade, o que existiram foram
interesses externos da política brasileira. "Desde 1995, quando FHC
anunciou seu propósito de criar o Ministério da Defesa, o plano vinha sendo
tocado lentamente. De repente, os Estados Unidos anunciaram que a Argentina
seria seu sócio extra-OTAN11.
Logo a seguir, o então Presidente Menem declarou, em 17 de agosto de 1997, que
o lugar dos países latino-americanos no Conselho de Segurança da ONU12
deveria ser rotativo, e não fixo para o Brasil, como desejava a diplomacia
verde-amarela" (ZAVERUCHA, 2000). De pronto, FHC reagiu. Durante a reunião
do Grupo do Rio em Assunção, em 24 de agosto de 1997, ele anunciou a criação do
Ministério da Defesa. Foi uma manobra política para favorecer a candidatura do
Brasil a um assento no Conselho de Segurança da ONU, já que seria difícil
explicar ao mundo como um país com vaga neste Conselho aspira decidir sobre
questões de segurança internacional tendo quatro ministros militares
respondendo pela defesa. Afora isso, FHC também quis acabar com a figura de
ministros militares por ter um projeto de implantação do parlamentarismo:
"Ficaria muito estranho se, numa queda de gabinete, todos os ministros
caíssem com exceção dos militares" (ZAVERUCHA, 2003, p. 406).
Partindo
dessa última perspectiva, percebe-se que o MD nasceu com "falhas genéticas"
sérias. Criado para subjugar os militares ao jogo político democrático, ou
seja, controle efetivo civil sobre os militares, o MD teve, na verdade, fins
instrumentais. O próprio relator do projeto de criação do dito ministério,
Benito Gama, afirmou que o novo Ministro seria uma espécie de "rainha da
Inglaterra". Além da fragilidade instrumental do Ministro da Defesa, este
também passaria por uma fragilização institucional, que os comandantes
militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica só deixariam de ser,
politicamente, ministros de Estado, não perdendo o seu status jurídico (idem).
Os
comandantes militares são membros do Conselho de Defesa Nacional. O Ministro da
Defesa tem de levá-los a cada reunião desse conselho. Os comandantes militares
são aqueles que de fato detêm o poder, o Ministro da Defesa, civil13,
é um mero despachante das Forças Armadas perante o Presidente da República e o
Congresso14.
Os militares, também, são responsáveis, juntamente com o Ministro da Defesa,
pela indicação de oficiais-generais ao Presidente da República (idem). Desde
1985, os presidentes da República acataram integralmente os nomes propostos
pela cúpula militar para promoção.
No
processo de indicação do primeiro Ministro da Defesa, ficou clara como a
interferência verdeoliva é cabal. Fernando Henrique Cardoso quis indicar um
Diplomata, Ronaldo Sardemberg, para o MD. Mas, como o Itamaraty tem uma
rivalidade histórica com as Forças Armadas, o Presidente cedeu às pressões
castrenses e escolheu o ex-líderdo governo no Senado, o Senador Élcio Álvares,
que tinha sido derrotado nas eleições de seu estado, o Espírito Santo. Álvares
assumiu na qualidade de Ministro Extraordinário da Defesa. Interessante notar
que, em seis meses, o Brasil conviveu com cinco ministérios na área da defesa:
o MD, a Marinha, o Exército, a Aeronáutica e o EMFA. Álvares ficou numa
situação incômoda, pois despachava numa salinha no quarto andar do prédio do
EMFA, sendo depois transferido para outra sala, também de pequenas dimensões. O
ex-Senador só veio ocupar o gabinete do Ministro-Chefe do Estado Maior das
Forças Armadas quando foi publicada no Diário Oficial a sua nomeação como
Ministro efetivo da Defesa. Quando assinava o documento oficial, tinha de pedir
a assinatura de seus subordinados, i. e., os comandos militares.
Seus
sucessores permaneceram como sendo figuras "ilustrativas". Depois da
saída indecorosa de Álvares - acusado de envolvimento com o narcotráfico -, que
gerou um ato de indisciplina militar por parte do Brigadeiro Brauer, forçando-o
a declarar publicamente seu repúdio para com o Ministro (MARTINS, 1999),
assumiu Geraldo Quintão, que até então era o Advogado Geral da União.
Quintão
assumiu logo anunciando ações que agradaram em cheio os militares: estudo para
aumento de soldos; incremento de verbas para a modernização das três forças e
defesa de um sistema previdenciário diferenciado do civil (AZEREDO, 2000).
Tais
promessas não foram cumpridas, gerando insatisfação entre os militares. Para
complicar ainda mais a situação dos civis, FHC resolveu demitir o comandante do
Exército, o General Gleuber Vieira, que tinha feito uma declaração criticando a
falta de verbas. A crise instalou-se, os castrenses reuniram-se em Brasília
para um ato de desagravo, diga-se, sem a presença do Ministro da Defesa.
Fernando Henrique Cardoso cedeu à pressão verde-oliva e voltou atrás na
demissão de Gleuber Vieira. Os militares ainda pressionaram para que fosse
editado uma Medida Provisória concedendo reajuste salarial, no que foram
prontamente atendidos. Quintão permaneceu no cargo numa posição discreta,
procurando não criar atritos com os militares.
Diferentemente
de FHC, Lula conseguiu colocar no MD um Diplomata, José Viegas. Apesar da
aprovação do nome do Diplomata para a cadeira do MD pelos comandos das Forças
Armadas, isso não quis dizer que Viegas não teria o mesmo papel de seus
antecessores, ou seja, ser uma figura ilustrativa, uma "rainha da
Inglaterra". Mas, Viegas não levou a sério as regras do jogo no MD. Tomou
medidas que desagradaram as três forças, sobretudo o comandante do Exército,
Francisco Albuquerque.
Viegas
criticou a falta de empenho do Exército, ao contrário das outras forças, na
busca de corpos de desaparecidos políticos nos conflitos da Guerrilha do
Araguaia, comportou-se como membro do governo entrando em choque com os quartéis
ao aceitar a decisão da área econômica em não dar aumento salarial aos
militares, solicitando, também, que os militares não fizessem declarações
públicas em favor de aumentos salariais.
A
"quebra-de-braço" entre o Ministro e o comando do Exército tornou-se
bastante clara no caso da nota que o General Francisco de Albuquerque
direcionou à imprensa sobre o caso das supostas fotos de Vladimir Herzog sendo
torturado nos porões da ditadura, publicadas no Correio Brasiliense15.
Tal nota foi considerada ofensiva pelo Presidente Lula. Ela afirmava que o
Exército não tinha mudado suas convicções sobre o acontecido no período da
ditadura.
O
Exército falou em nome do MD, sem consentimento das outras forças e, muito
menos, do Ministro da Defesa, Viegas. Este exigiu a retratação do Comandante do
Exército, o General Francisco de Albuquerque, no qual redigiu uma nova nota
que, substancialmente, não mudava em quase nada a essência da nota anterior. No
final das querelas, Viegas saiu do comando do MD.
Assumiu
a pasta da Defesa o vice-Presidente José Alencar16.
Este não podia ser demitido, pois, num eventual impedimento do Presidente Lula,
ele seria o comandante-em-chefe das Forças Armadas. José Alencar entregou o
cargo em outubro de 2006 para disputar as eleições. Assumiu o cargo Waldir
Pires, ex-Ministro de Sarney. Este esteve envolvido num dos maiores problemas
enfrentados pelo MD na Nova República, a questão dos controladores de vôos.
Ficou clara a fragilidade do Ministro, que não conseguiu dirimir esse sério
problema e, pior, não esclareceu aos cidadãos quais são os verdadeiros
problemas que estão infringindo o espaço aéreo brasileiro, por, simplesmente,
não estar a par do que acontece nos Cindactas (Centros Integrados de Defesa
Aérea e Controle do Tráfego Aéreo). Estes estão sob o (des)controle da Aeronáutica.
O pacto da transição permanece, os militares aceitam uma semidemocracia
(NÓBREGA JR., 2006) em troca da manutenção dos enclaves autoritários dentro do
aparato do Estado17.
As
três forças são independentes do MD, ou seja, do controle civil. O Exército, a
Marinha e a Aeronáutica fazem suas negociações à revelia do Congresso e do
Presidente. Como exemplo, a Marinha acertou a compra, juntamente ao Kwait, de
20 aviões de ataque A-4 sem passar pelo crivo do Congresso e sem passar pela
chancela presidencial (ZAVERUCHA, 2003).
O
controle institucional do orçamento das Forças Armadas pelo Congresso Nacional
é meramente contábil, sem maiores esclarecimentos das estratégias previamente
definidas. O MD não tem a menor intenção de mudar essa realidade. "Não
basta um representante da vontade presidencial exercendo o cargo de Ministro
para configurar a direção política, mas a presença decisiva de civis no cerne
da formulação e implantação dos rumos da defesa e das questões militares"
(OLIVEIRA & SOARES, 2000).
Partindo
do papel institucional do MD para a questão da coordenação do setor de defesa
da nação, têm-se observado que o controle civil mostra-se frágil. Com os
defeitos genéticos do MD relatados aqui, a coordenação do setor de defesa, ou a
segurança pública estatal, mostra-se bastante militarizada.
Stepan
(1988) coloca que, para que a prerrogativa militar - coordenação do setor de
defesa - tenha baixa intensidade de jure e de facto, a coordenação desse setor
tem de ser realizada por uma autoridade no quadro ministerial (em geral, um
civil indicado pelo poder Executivo federal) que controle uma equipe, em grande
parte constituída por funcionários civis nomeados. Para Stepan (1988), a prerrogativa
militar terá alta intensidade se tal coordenação for realizada, de jure e de
facto, pelos comandos das três forças armadas militares, atuando de modo
separado, sob a fiscalização muito frágil do EMFA e contando com a frágil
participação do poder Executivo federal (idem, p. 526).
Sabe-se
que o setor de defesa, ou a Defesa Nacional, é atividade do Ministério da
Defesa, em países efetivamente democráticos. Que o MD é responsável pelo
planejamento e pela execução dos assuntos voltados para a defesa da nação, em
que as Forças Armadas têm um papel de destaque nessa garantia. Cabe aos civis
executarem as atividades de coordenação e de elaboração dos planejamentos de
defesa, bem como administrar o orçamento de defesa com total independência. O
que ocorre é justamente o predomínio das Forças Armadas, em todos esses
requisitos.
O MD
aparece, à primeira vista, como um grande avanço para a consolidação da
democracia no Brasil, mas, na verdade esconde, nos bastidores, a verdadeira
ação em seu bojo, ou seja, o domínio dos castrenses como força política no
planejamento, gestão e execução das atividades de defesa. Tem-se um domínio de
jure de um Ministro "fantoche", mas de facto, o que se verifica é a
autonomia dos comandos militares (Exército, Aeronáutica e Marinha) na direção
do MD. A coordenação do setor de segurança nacional está nas mãos dos
verde-oliva.
IV.
A FORTE PRESENÇA MILITAR NA AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA (ABIN)
A
ABIN18
é outro exemplo do fenômeno da militarização da Segurança Pública, que
fragiliza a democracia brasileira. Nessa instituição existe uma série de
fatores que podem ser colocados como sendo anacrônicos para o desenvolvimento
de um serviço de inteligência efetivo e responsivo em nosso país. Como a
inteligência é um bem público arduamente disputado entre os grupos que almejam
controlar o Estado, é fundamental que este esteja sob controle civil.
O
processo de militarização da ABIN foi iniciado no período do mandato de
Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República. Este governante indicou
um General para coordenar institucionalmente aquela instituição. O resultado
disso foi uma formatação institucional muito parecida com a do antigo SNI
(Serviço Nacional de Informações), do antigo regime autoritário19.
Além
disso, a lei que criou a ABIN é nebulosa; diz que cabe a ela "fornecer
subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional",
não vindo a definir o que seja "interesse nacional". Isso faz que
cada Presidente da República venha a definir o que isso seja.
A
ABIN deveria ficar, de forma direta, subordinada ao Presidente da República, no
entanto, logo após a sua criação, FHC, via Medida Provisória, deixou-a
subordinada ao General Ministro-Chefe do GSI (Gabinete de Segurança
Institucional), cargo de natureza militar. O General é quem efetivamente manda,
filtrando quais as informações devem chegar às mãos do Presidente (ZAVERUCHA,
2006).
No
governo de Lula, a indicação para a direção da ABIN do Delegado Mauro Marcelo
de Lima e Silva, em substituição a Marisa Almeida Del'Isola e Diniz, gerou
grande insatisfação no meio das Forças Armadas. A escolha do nome de Lima e
Silva foi indicação do Presidente. O Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República, General Jorge Armando Félix,
criticou a indicação e a desconsideração do Presidente, pois o mesmo não levou
em consideração a insatisfação castrense (ROMERO & CALDEIRA, 2004).
Os
militares, que criticaram reservadamente a indicação de Lima e Silva para a
direção da ABIN, alegavam que o Delegado tinha uma forte aproximação com o FBI
(a Polícia Federal dos Estados Unidos), do qual o Delegado participou, a
convite, de um curso de especialização. Lima e Silva disse que sua ligação com
o FBI deveria ser vista como uma conquista individual da qual ele orgulhava-se
e que as críticas existiriam mesmo se ele tivesse feito qualquer curso, em
qualquer parte do globo.
Na
verdade, a resistência dos militares estava no fato de Lima e Silva ser o
primeiro policial civil a comandar o departamento de inteligência do governo
brasileiro, aproximando mais o órgão do Presidente, já que existe uma relação
tensa, oriunda da presença militar no combate à violência urbana e da divisão
de tarefas na repressão ao narcotráfico nas fronteiras nacionais.
Em
julho de 2005, depois de forte pressão política por parte do General Jorge
Armando Félix (que comanda o GSI atualmente), o delegado Mauro Marcelo Lima e
Silva foi demitido, tendo sido nomeado para seu lugar Márcio Paulo Buzanelli,
veterano do antigo SNI. A vitória política do General Félix significa, também,
a perpetuação do SNI, órgão de inteligência do período ditatorial.
O
aspecto da fragilidade democrática da ABIN não está apenas em pontos informais.
A Lei n. 9 883, que rege essa instituição, afirma, em seus artigos, pontos que
levam a uma ampla interpretação. Em seu artigo 1º, fica "instituído o
Sistema Brasileiro de Inteligência, que integra as ações de planejamento e
execução das atividades de inteligência do País, com a finalidade de fornecer
subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional".
Como se observa nesse artigo, é clara a prerrogativa presidencial em assuntos
de inteligência, fazendo que o governo tenha maiores poderes sobre o serviço de
inteligência nacional do que os outros poderes da República20.
Não
existe um cuidado e uma preocupação nos assuntos de inteligência. O Congresso
Nacional tem na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência
(CCAI) o órgão responsável pela fiscalização dos assuntos de inteligência. No
entanto, esse órgão não tem competência quando o assunto é a inteligência das
Forças Armadas e da Polícia Federal (que faz parte do Ministério da Justiça).
Dessa forma, não penetra nas instâncias mais importantes do setor de
inteligência.
As
atividades de inteligência, no Brasil, segundo artigo da Lei n. 9 883, são de
natureza civil e militar. Isso vem a misturar a sua competência, pois as P-2s
(Serviços de Inteligência das Polícias Militares Estaduais) passam a ser
vinculadas à ABIN. Sabe-se, de antemão, que as atividades de inteligências das
polícias militares são de inteira responsabilidade do Exército. Tal arranjo
institucional, bastante complexo e esdrúxulo, abriu espaço para a atuação
desproporcional dos militares em um bem público que é a inteligência.
A
ABIN mantém em seu bojo uma racionalidade de segurança nacional em defesa do
Estado contra o inimigo interno; não existe atribuição da instituição à esfera
civil na defesa da ordem pública. Existe uma lista imensurável de denúncias de
espionagem política por parte da ABIN. A racionalidade de perseguição política
mantém-se como na época do SNI. Arapongagem e investigações com fins políticos
estão na ordem do dia21.
Alguns
exemplos podem ser colocados para reforçar tal análise institucional. Os
direitos individuais são ameaçados sem que haja uma medida severa de punição
aos atos de ilicitude da ABIN22.
Espionagem de presidentes e ex-presidentes, como foi o caso de Itamar Franco, é
um exemplo cabal de desmando. Itamar fora investigado desde março de 1998,
quando tentou sair candidato pelo PMDB23
a Presidência da República. A ABIN produziu vários relatórios sobre o
investigado, inclusive de cunho financeiro, em que invadiu o sigilo bancário e
fiscal do ex-Presidente.
O
jornalista Andrei Meireles, da revista IstoÉ, também foi investigado. Ele
apurava o eventual envolvimento do ex-Secretário-Geral do Palácio do Planalto,
Eduardo Jorge Caldas Pereira, no escândalo do desvio de verbas da obra do
Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo. Outra revista de grande veiculação
nacional, Veja, revelou a ficha ideológica de Andrei Meireles. Esta teria sido
revelada por arapongas da ABIN, afirmando que o mesmo tinha pertencido ao
Partido Comunista Brasileiro, que foi do sindicato de jornalistas e participou
de um encontro sindical em Cuba. Parece uma perseguição política ao inimigo
interno da época da ditadura militar, i. e., a Lei de Segurança Nacional, tal
como ideologizada pela Escola Superior de Guerra (ESG) e sua Doutrina de
Segurança Nacional24
(ALVES, 1984).
A
Operação Satiagraha, executada pela Polícia Federal, demonstrou como a ABIN
ainda perpetua a concepção de perseguição ao inimigo interno, ou ao inimigo do
Estado, sem levar em consideração a Constituição e os direitos de defesa.
Várias pessoas tiveram seus sigilos telefônicos invadidos por agentes da ABIN,
que foram utilizados de forma ilegal pelo Delegado Protógenes Queiroz, da
Polícia Federal. Até o Presidente do Supremo Tribunal Federal foi
"investigado" pela ABIN, sem nenhum tipo de controle institucional.
Seu diretor geral, Paulo Lacerda, foi afastado, e o Presidente do GSI, General
Jorge Armando Félix, que deveria controlar a Agência, até hoje não conseguiu
explicar o desmando dentro daquela instituição.
O
Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamento a defesa do Estado
democrático de direito e a dignidade da pessoa humana, devendo, ainda, cumprir
e preservar os direitos e garantias individuais e os demais dispositivos da
Constituição Federal. Pelo que foi destacado, não são cumpridas tais atribuições.
O órgão de inteligência máximo do país serve, na verdade, para fins políticos
e, dessa forma, passa por cima da própria democracia.
O
ranço autoritário ainda se mostra bem forte dentro da ABIN. O maior número de
assentos dentro dessa instituição é de militares. Dessa forma, as informações
cedidas pelas secretarias de segurança pública estatais serão direcionadas para
as mãos dos militares federais, principalmente quando se tratar de distúrbios
sociais. A agência também pode agir de forma a obstaculizar avanços quanto aos
direitos humanos no Brasil, sobretudo a respeito de informações do período
autoritário. Existe uma clara "quebra de braço" entre civis e
militares dentro da ABIN, na qual o GSI aparece, até o momento, na frente, na disputa
pelo controle dessa agência de inteligência25.
V.
CONCLUSÕES
O
processo de militarização da Segurança Pública no Brasil pode ser colocado como
uma variável explicativa muito relevante para a não consolidação da democracia
no Brasil. Foram destacados aqui alguns pontos desse processo de militarização
que, mesmo depois de termos redemocratizado o país, em moldes
procedimentaissubmínimos (NÓBREGA JR., 2005a), a questão da segurança interna
permanece de forma bastante acentuada nas mãos dos verde-oliva. Isso gera falta
de controle civil sobre os militares, atributo imprescindível para a
consolidação da democracia, além de limitações sérias à defesa dos direitos dos
cidadãos. Observando tais detalhes, percebo que o atual quadro da segurança
pública do Estado brasileiro contempla, no máximo, uma semidemocracia.
Não
obstante, não se deve esquecer os avanços democráticos, nos dois eixos de
Robert Dahl (1969), i. e., o eixo da competição e o eixo da inclusão. Tivemos
avanços no que se refere a certos aspectos da democracia representativa e às
garantias de liberdades individuais, como a liberdade de imprensa, alternativas
de informação, pluripartidarismo, lisura nas eleições, liberdade de associação,
dentre outros direitos fundamentais. O povo brasileiro teve consolidados seus
aparatos de contestação e de inclusão no processo do voto.
Contudo,
em democracias sólidas, além das eleições - livres, limpas, competitivas,
periódicas e pluripartidárias - e direitos políticos para a maioria adulta da
população, é imprescindível a garantia dos direitos civis (acesso à Justiça e
direito à vida, por exemplo) e o efetivo controle das instituições da Res
Publica por atores políticos eleitos pelo povo. O caso da militarização da
segurança pública é um claro exemplo de ator político não eleito infligindo em
assuntos da esfera política civil. Os militares no Brasil mantiveram suas
prerrogativas em muitos assuntos do Estado brasileiro, na verdade, saíram do
governo mantendo suas prerrogativas, ou seja, mantiveram-se no poder.
As
polícias militares estaduais apresentam um grande vínculo com o Exército,
fragilizando o poder dos governadores dos estados. Os seus órgãos de
informações-inteligência (P-2) devem sujeição ao comando do Exército,
contribuindo ainda mais para o fortalecimento das forças militares em assuntos
de segurança interna. Nossa constituição apresenta artigos que mantêm o statu
quo ante do regime autoritário. O art. 142 cede poderes de garantidores da lei
e da ordem interna, inclusive de ordem constitucional, aos militares, dando um
poder quase que ilimitado às Forças Armadas.
O
que exemplifica de forma mais eloqüente o domínio verde-oliva em atividade
civil é o seu papel no Ministério da Defesa. Órgão vinculado ao poder
Executivo, que deveria estar imbuído na defesa dos interesses civis, mostra-se
como uma instituição estranha ao corpo da esfera civil. Na verdade, as
prerrogativas dos comandos, principalmente o Exército, prevalecem, e o Ministro
dessa pasta é um mero despachante dos interesses castrenses, uma "rainha
da Inglaterra" que "reina", mas não governa de fato.
A
Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) é outro órgão que foi fortemente
dominado pela militarização. Temos a prevalência do domínio do GSI que está sob
o comando de um militar da ativa. Este domina as atividades de inteligência não
só dessa agência, mas de outras instituições de informações e inteligência do
Brasil, como é o caso das P-2s, das polícias militares.
O
que prevalece na Segurança da nossa Res Publica é uma estrutura militarizada,
herança do período autoritário, que não avança para outra estrutura comandada
de forma eficiente por civis capacitados e direcionados para a realidade do
Estado de Direito democrático.
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