sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A militarização da segurança pública: um entrave para a democracia brasileira


  

José Maria Pereira da Nóbrega Júnior




I. INTRODUÇÃO
Quando um país passa por um processo de redemocratização, uma das primeiras medidas a ser tomada é a desmilitarização do seu aparato de segurança. O objetivo é tornar nítida a separação das funções militares e civis: a polícia é responsável pela ordem interna, enquanto os militares encarregam-se dos problemas externos. A Constituição de 1988 manteve inalterada a prerrogativa militar de intervir em assuntos internos, limitando o controle civil sobre os militares brasileiros (ZAVERUCHA, 1998).
Ponto importante para a efetividade da democracia2 é o que diz respeito à segurança dos indivíduos. A segurança é um direito civil e social, e consta nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal de 1988. Em seu artigo n. 144, temos disponibilizado o seu ordenamento. A estrutura da segurança pública brasileira, que deveria ser de natureza civil e com fins de defender os interesses dos cidadãos brasileiros em quaisquer circunstâncias, preocupa-se mais com a defesa dos interesses do Estado do que da cidadania. O processo de militarização3 dessas instituições é a prova do hiper-dimensionamento do Estado em relação aos cidadãos4.
Neste artigo, discuto a questão da segurança pública baseado na teoria democrática contemporânea de caráter minimalista, não submínima (MAINWARING, BRINKS & PÉREZ-LIÑÁN, 2001). Observo que atores políticos não eleitos influenciam de forma decisiva no quesito Segurança Pública. No caso aqui em destaque, esses atores políticos são os militares5. Encontramos ingerências dos militares na segurança pública, e isso fere os princípios básicos da democracia, pois são atores não eleitos que planejam, gerem e estruturam instituições de segurança no lugar dos atores civis, sendo estes indicados pelos representantes eleitos pelo povo. As instituições que focamos para desenvolver esta interpretação são a Constituição de 1988, o Ministério da Defesa e a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência).


II. OS MILITARES E A CONSTITUIÇÃO DE 1988
Na Constituição Federal de 1988, as cláusulas relacionadas às Forças Armadas, policiais militares estaduais, sistema judiciário militar e de segurança pública em geral, permaneceram praticamente idênticas à Constituição autoritária de 19671969. As Forças Armadas tiveram um papel de grande importância na manutenção de suas prerrogativas, pois nomearam 13 oficiais superiores que fizeram lobby pelos seus interesses no período de redação daquela carta (ZAVERUCHA, 1998).
Eram oito as comissões de trabalho responsáveis pela elaboração da Carta Constitucional. A Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições, presidida pelo então Senador Jarbas Passarinho - o mesmo que participou do Ato Institucional 5 (AI-5), em 1968, que fechou o Congresso Nacional - ficou encarregada dos capítulos ligados às Forças Armadas e à Segurança Pública (ZAVERUCHA, 2005, p. 60).
O Deputado Ricardo Fiúza ficou responsável pela Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança. Apoiou firmemente as demandas militares nos debates constitucionais, chegando a rejeitar a tentativa de alguns congressistas de criar o Ministério da Defesa, bem como a trabalhar, também, contra a tentativa de dar-se fim ao controle do Exército sobre as Policias Militares Estaduais. Optou por favorecer a autonomia das Forças Armadas, mantendo o controle parcial do Exército sobre as polícias militares, alegando, para isso, que o governo necessitaria de todas as suas forças para controlar contestadores da ordem social6 (idem, p. 60-61).
O resultado disso foi uma constituição com fortes prerrogativas para os militares. Isso ficou configurado no caráter ambíguo da carta magna: entre artigos liberais de um lado e de outro, artigos com forte inclinação à ingerência militar7. Analisando o artigo 142, da Constituição Federal de 1988, percebe-se tal fato de forma bastante dimensionada: "As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Como garantidores da lei e da ordem internas, a qualquer momento esse ator político (as Forças Armadas) pode interferir em assuntos de segurança interna que, em democracias plenas, jamais existiria. Tal prerrogativa aparece como sendo de alta intensidade, pois a constituição encarrega os militares de serem os principais responsáveis na garantia da lei e da ordem interna, outorgando-lhes uma grande margem de decisão que lhes permitem determinar quando e como devem cumprir com suas obrigações (STEPAN, 1988, p. 525).
Lei e ordem podem ter várias conotações; a interpretação da ordem interna por parte dos militares pode estar permeada por uma série de estímulos ideológicos. A garantia dessa ordem, ou dos poderes constitucionais, quando da solicitação de qualquer um dos três poderes da República (Executivo, Legislativo ou Judiciário), pode não ser levada em consideração por parte dos militares. Se os três poderes não acharem conveniente ou necessária a intervenção dos militares para manter a ordem interna, mas estes, baseados na Constituição - que lhes dá poderes de garantidores da lei e da ordem interna -, acharem que devem intervir, prevalecerá a vontade castrense, daqueles que estão armados (ZAVERUCHA, 1998, p. 128). Por conseguinte, a autoridade suprema do Presidente da República perante os militares pode ter efeito nulo, sobretudo quando ele estiver fraco politicamente. O artigo 142 também não especifica de que tipo é a lei que está nele inserida, se de ordem constitucional ou ordinária, e a ordem também não está especificada, se tem caráter social, político ou moral. Esse artigo é muito vulnerável, fazendo que uma intervenção militar em assuntos internos ocorra ao bel-prazer dos militares.
É importante destacar a questão da hierarquia e a visão dos militares brasileiros. Atassio (2007) demonstra como a memória social dos militares aponta para uma perspectiva positiva do ordenamento e do papel das Forças Armadas. No exemplo levantado em seu trabalho, a autora demonstra que é positiva a visão oficial dos militares, sobre o golpe militar de 1964 - visão que é a versão oficial da história militar, chamada de "Revolução de 64" e que é ensinada nas academias militares, perpetuando essa perspectiva histórica. "A memória herdada é aquela em que, por meio da socialização, seja ela política, seja histórica, ocorre um fenômeno de projeção ou identificação com uma memória que não pertence àquele que a lembra, mas que vem de outra pessoa, do mesmo grupo, todavia é sentida como se tivesse sido realmente vivida pelo que a rememora. A imagem sobre Castello Branco é um exemplo deste tipo de memória. Tido como um exemplo de militar legalista, a história nos conta que Castello era sim um conspirador, no entanto, possuía um perfil mais moderado. Ainda assim, a imagem perpetuada dentro da instituição vê o primeiro Presidente militar como o baluarte da moral e integridade apregoada pela instituição, que chegou por acaso à liderança do movimento de 64" (idem, p. 6).
Dessa forma, a hierarquia é vista como um valor, um símbolo muito forte dentro das Forças Armadas. A tendência é destacar os militares como defensores da democracia e da ordem, expurgando qualquer posição que seja a ela contraditória. No início da revolução, muitos militares moderados, de esquerda e de pensamento mais progressista, foram expurgados das Forças Armadas de forma sumária (ALVES, 1984). Os militares omitem fatos que os desagradam da época em que golpearam o país; seus líderes até hoje reverberam o valor das insígnias da caserna como elementos fundamentais para a manutenção da democracia (MAGALHÃES, 2009).
Depois do incidente provocado pela intervenção militar, solicitada por um juiz do Terceiro Distrito de Volta Redonda8, na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que resultou na morte de três operários da empresa, o Congresso Nacional aprovou, em 23 de julho de 1991, uma lei complementar, de número 69, que veio restabelecer a cláusula constitucional de 1967-1969. Esta concedia apenas ao poder Executivo federal o direito de pedir a intervenção militar interna. O artigo n. 142 nivela os três poderes e não especifica nenhuma hierarquia dentro deles ou entre eles. "Na primeira versão do artigo 142 os militares perderam o papel de guardiões da lei e da ordem. O Ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves, ameaçou zerar todo o processo de redação constitucional. Temerosos, os constituintes acharam por bem ceder e o papel de garantidores da lei e da ordem voltou a aparecer na nova versão do referido artigo. Para que tal capitulação ficasse dourada, o Congresso optou por conceder tanto ao Judiciário quanto ao Legislativo o direito de pedir a intervenção das Forças Armadas em assuntos domésticos. Ao não especificar que instância do Judiciário poderia convocar os militares, a Constituição nivelou os poderes do Supremo Tribunal Federal ao de um juiz iniciante em uma pequena cidade. Do mesmo modo, equiparou o Presidente do Congresso a um parlamentar em seu primeiro mandato" (ZAVERUCHA, 1998, p. 128-129). Ou seja, a lei complementar n. 69, ao invés de inferir maior controle civil sobre os militares, deu maiores prerrogativas aos mesmos, pois retomou a essência do período de exceção, concentrando as decisões no poder Executivo. Com um Presidente nas mãos dos castrenses, a intervenção militar em assuntos políticos fica mais fácil de ocorrer.


III. O MINISTÉRIO DA DEFESA9: ESFERA CIVIL OU MILITAR?
O Ministério da Defesa (MD) surge como um ponto importante nas relações civis-militares. Segundo Oliveira e Soares (2000), o MD foi criado na tentativa de colocar os assuntos militares sobre influência e controle dos civis. Depois de um longo processo de análise, que durou todo o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em julho de 1999, foi criado o MD, após um período de cinco meses em caráter extraordinário - durante o qual conviveu com os demais ministérios militares, que foram extintos posteriormente. A criação do MD deu-se por Medida Provisória; a participação do Congresso foi praticamente inexistente. A participação da comunidade acadêmica foi irrisória (OLIVEIRA & SOARES, 2000). No processo de construção de tal ministério, a atuação dos militares, com sua representação no EMFA (Estado Maior das Forças Armadas) foi decisiva, e sua estrutura mostra-se, ainda hoje, bem militarizada. Os ministros civis que "comandam" o MD são ofuscados por vontades de generais (alguns deles da reserva) que realmente mandam, mantendo o poder reservado ao poder Executivo.
Nos Estados Unidos, a posição institucional do Ministro da Defesa é fortalecida10. No Brasil, aquele modelo foi criticado pelos militares, que alegaram peculiaridades tais que inviabilizariam modelo estadunidense. O Ministro da Defesa dirige-se diretamente aos comandantes de cada força, já que o Ministério da Defesa não possui um forte Estado-Maior Geral, que comande a Marinha, o Exército e a Aeronáutica. Esse Estado-Maior Geral, denominado no Brasil de Estado-Maior da Defesa, tem a função de assessoria e segue uma especificidade militar. O Ministro da Defesa termina não participando do processo de ordenança das operações. Já no modelo dos Estados Unidos, o Secretário de Defesa controla pessoalmente os comandos (LOPES, 2001).
No que tange à criação do MD, ali não houve nenhuma intenção de efetivar algum tipo de controle civil sobre os militares. Na verdade, o que existiram foram interesses externos da política brasileira. "Desde 1995, quando FHC anunciou seu propósito de criar o Ministério da Defesa, o plano vinha sendo tocado lentamente. De repente, os Estados Unidos anunciaram que a Argentina seria seu sócio extra-OTAN11. Logo a seguir, o então Presidente Menem declarou, em 17 de agosto de 1997, que o lugar dos países latino-americanos no Conselho de Segurança da ONU12 deveria ser rotativo, e não fixo para o Brasil, como desejava a diplomacia verde-amarela" (ZAVERUCHA, 2000). De pronto, FHC reagiu. Durante a reunião do Grupo do Rio em Assunção, em 24 de agosto de 1997, ele anunciou a criação do Ministério da Defesa. Foi uma manobra política para favorecer a candidatura do Brasil a um assento no Conselho de Segurança da ONU, já que seria difícil explicar ao mundo como um país com vaga neste Conselho aspira decidir sobre questões de segurança internacional tendo quatro ministros militares respondendo pela defesa. Afora isso, FHC também quis acabar com a figura de ministros militares por ter um projeto de implantação do parlamentarismo: "Ficaria muito estranho se, numa queda de gabinete, todos os ministros caíssem com exceção dos militares" (ZAVERUCHA, 2003, p. 406).
Partindo dessa última perspectiva, percebe-se que o MD nasceu com "falhas genéticas" sérias. Criado para subjugar os militares ao jogo político democrático, ou seja, controle efetivo civil sobre os militares, o MD teve, na verdade, fins instrumentais. O próprio relator do projeto de criação do dito ministério, Benito Gama, afirmou que o novo Ministro seria uma espécie de "rainha da Inglaterra". Além da fragilidade instrumental do Ministro da Defesa, este também passaria por uma fragilização institucional, que os comandantes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica só deixariam de ser, politicamente, ministros de Estado, não perdendo o seu status jurídico (idem).
Os comandantes militares são membros do Conselho de Defesa Nacional. O Ministro da Defesa tem de levá-los a cada reunião desse conselho. Os comandantes militares são aqueles que de fato detêm o poder, o Ministro da Defesa, civil13, é um mero despachante das Forças Armadas perante o Presidente da República e o Congresso14. Os militares, também, são responsáveis, juntamente com o Ministro da Defesa, pela indicação de oficiais-generais ao Presidente da República (idem). Desde 1985, os presidentes da República acataram integralmente os nomes propostos pela cúpula militar para promoção.
No processo de indicação do primeiro Ministro da Defesa, ficou clara como a interferência verdeoliva é cabal. Fernando Henrique Cardoso quis indicar um Diplomata, Ronaldo Sardemberg, para o MD. Mas, como o Itamaraty tem uma rivalidade histórica com as Forças Armadas, o Presidente cedeu às pressões castrenses e escolheu o ex-líderdo governo no Senado, o Senador Élcio Álvares, que tinha sido derrotado nas eleições de seu estado, o Espírito Santo. Álvares assumiu na qualidade de Ministro Extraordinário da Defesa. Interessante notar que, em seis meses, o Brasil conviveu com cinco ministérios na área da defesa: o MD, a Marinha, o Exército, a Aeronáutica e o EMFA. Álvares ficou numa situação incômoda, pois despachava numa salinha no quarto andar do prédio do EMFA, sendo depois transferido para outra sala, também de pequenas dimensões. O ex-Senador só veio ocupar o gabinete do Ministro-Chefe do Estado Maior das Forças Armadas quando foi publicada no Diário Oficial a sua nomeação como Ministro efetivo da Defesa. Quando assinava o documento oficial, tinha de pedir a assinatura de seus subordinados, i. e., os comandos militares.
Seus sucessores permaneceram como sendo figuras "ilustrativas". Depois da saída indecorosa de Álvares - acusado de envolvimento com o narcotráfico -, que gerou um ato de indisciplina militar por parte do Brigadeiro Brauer, forçando-o a declarar publicamente seu repúdio para com o Ministro (MARTINS, 1999), assumiu Geraldo Quintão, que até então era o Advogado Geral da União.
Quintão assumiu logo anunciando ações que agradaram em cheio os militares: estudo para aumento de soldos; incremento de verbas para a modernização das três forças e defesa de um sistema previdenciário diferenciado do civil (AZEREDO, 2000).
Tais promessas não foram cumpridas, gerando insatisfação entre os militares. Para complicar ainda mais a situação dos civis, FHC resolveu demitir o comandante do Exército, o General Gleuber Vieira, que tinha feito uma declaração criticando a falta de verbas. A crise instalou-se, os castrenses reuniram-se em Brasília para um ato de desagravo, diga-se, sem a presença do Ministro da Defesa. Fernando Henrique Cardoso cedeu à pressão verde-oliva e voltou atrás na demissão de Gleuber Vieira. Os militares ainda pressionaram para que fosse editado uma Medida Provisória concedendo reajuste salarial, no que foram prontamente atendidos. Quintão permaneceu no cargo numa posição discreta, procurando não criar atritos com os militares.
Diferentemente de FHC, Lula conseguiu colocar no MD um Diplomata, José Viegas. Apesar da aprovação do nome do Diplomata para a cadeira do MD pelos comandos das Forças Armadas, isso não quis dizer que Viegas não teria o mesmo papel de seus antecessores, ou seja, ser uma figura ilustrativa, uma "rainha da Inglaterra". Mas, Viegas não levou a sério as regras do jogo no MD. Tomou medidas que desagradaram as três forças, sobretudo o comandante do Exército, Francisco Albuquerque.
Viegas criticou a falta de empenho do Exército, ao contrário das outras forças, na busca de corpos de desaparecidos políticos nos conflitos da Guerrilha do Araguaia, comportou-se como membro do governo entrando em choque com os quartéis ao aceitar a decisão da área econômica em não dar aumento salarial aos militares, solicitando, também, que os militares não fizessem declarações públicas em favor de aumentos salariais.
A "quebra-de-braço" entre o Ministro e o comando do Exército tornou-se bastante clara no caso da nota que o General Francisco de Albuquerque direcionou à imprensa sobre o caso das supostas fotos de Vladimir Herzog sendo torturado nos porões da ditadura, publicadas no Correio Brasiliense15. Tal nota foi considerada ofensiva pelo Presidente Lula. Ela afirmava que o Exército não tinha mudado suas convicções sobre o acontecido no período da ditadura.
O Exército falou em nome do MD, sem consentimento das outras forças e, muito menos, do Ministro da Defesa, Viegas. Este exigiu a retratação do Comandante do Exército, o General Francisco de Albuquerque, no qual redigiu uma nova nota que, substancialmente, não mudava em quase nada a essência da nota anterior. No final das querelas, Viegas saiu do comando do MD.
Assumiu a pasta da Defesa o vice-Presidente José Alencar16. Este não podia ser demitido, pois, num eventual impedimento do Presidente Lula, ele seria o comandante-em-chefe das Forças Armadas. José Alencar entregou o cargo em outubro de 2006 para disputar as eleições. Assumiu o cargo Waldir Pires, ex-Ministro de Sarney. Este esteve envolvido num dos maiores problemas enfrentados pelo MD na Nova República, a questão dos controladores de vôos. Ficou clara a fragilidade do Ministro, que não conseguiu dirimir esse sério problema e, pior, não esclareceu aos cidadãos quais são os verdadeiros problemas que estão infringindo o espaço aéreo brasileiro, por, simplesmente, não estar a par do que acontece nos Cindactas (Centros Integrados de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo). Estes estão sob o (des)controle da Aeronáutica. O pacto da transição permanece, os militares aceitam uma semidemocracia (NÓBREGA JR., 2006) em troca da manutenção dos enclaves autoritários dentro do aparato do Estado17.
As três forças são independentes do MD, ou seja, do controle civil. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica fazem suas negociações à revelia do Congresso e do Presidente. Como exemplo, a Marinha acertou a compra, juntamente ao Kwait, de 20 aviões de ataque A-4 sem passar pelo crivo do Congresso e sem passar pela chancela presidencial (ZAVERUCHA, 2003).
O controle institucional do orçamento das Forças Armadas pelo Congresso Nacional é meramente contábil, sem maiores esclarecimentos das estratégias previamente definidas. O MD não tem a menor intenção de mudar essa realidade. "Não basta um representante da vontade presidencial exercendo o cargo de Ministro para configurar a direção política, mas a presença decisiva de civis no cerne da formulação e implantação dos rumos da defesa e das questões militares" (OLIVEIRA & SOARES, 2000).
Partindo do papel institucional do MD para a questão da coordenação do setor de defesa da nação, têm-se observado que o controle civil mostra-se frágil. Com os defeitos genéticos do MD relatados aqui, a coordenação do setor de defesa, ou a segurança pública estatal, mostra-se bastante militarizada.
Stepan (1988) coloca que, para que a prerrogativa militar - coordenação do setor de defesa - tenha baixa intensidade de jure e de facto, a coordenação desse setor tem de ser realizada por uma autoridade no quadro ministerial (em geral, um civil indicado pelo poder Executivo federal) que controle uma equipe, em grande parte constituída por funcionários civis nomeados. Para Stepan (1988), a prerrogativa militar terá alta intensidade se tal coordenação for realizada, de jure e de facto, pelos comandos das três forças armadas militares, atuando de modo separado, sob a fiscalização muito frágil do EMFA e contando com a frágil participação do poder Executivo federal (idem, p. 526).
Sabe-se que o setor de defesa, ou a Defesa Nacional, é atividade do Ministério da Defesa, em países efetivamente democráticos. Que o MD é responsável pelo planejamento e pela execução dos assuntos voltados para a defesa da nação, em que as Forças Armadas têm um papel de destaque nessa garantia. Cabe aos civis executarem as atividades de coordenação e de elaboração dos planejamentos de defesa, bem como administrar o orçamento de defesa com total independência. O que ocorre é justamente o predomínio das Forças Armadas, em todos esses requisitos.
O MD aparece, à primeira vista, como um grande avanço para a consolidação da democracia no Brasil, mas, na verdade esconde, nos bastidores, a verdadeira ação em seu bojo, ou seja, o domínio dos castrenses como força política no planejamento, gestão e execução das atividades de defesa. Tem-se um domínio de jure de um Ministro "fantoche", mas de facto, o que se verifica é a autonomia dos comandos militares (Exército, Aeronáutica e Marinha) na direção do MD. A coordenação do setor de segurança nacional está nas mãos dos verde-oliva.


IV. A FORTE PRESENÇA MILITAR NA AGÊNCIA BRASILEIRA DE INTELIGÊNCIA (ABIN)
A ABIN18 é outro exemplo do fenômeno da militarização da Segurança Pública, que fragiliza a democracia brasileira. Nessa instituição existe uma série de fatores que podem ser colocados como sendo anacrônicos para o desenvolvimento de um serviço de inteligência efetivo e responsivo em nosso país. Como a inteligência é um bem público arduamente disputado entre os grupos que almejam controlar o Estado, é fundamental que este esteja sob controle civil.
O processo de militarização da ABIN foi iniciado no período do mandato de Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República. Este governante indicou um General para coordenar institucionalmente aquela instituição. O resultado disso foi uma formatação institucional muito parecida com a do antigo SNI (Serviço Nacional de Informações), do antigo regime autoritário19.
Além disso, a lei que criou a ABIN é nebulosa; diz que cabe a ela "fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional", não vindo a definir o que seja "interesse nacional". Isso faz que cada Presidente da República venha a definir o que isso seja.
A ABIN deveria ficar, de forma direta, subordinada ao Presidente da República, no entanto, logo após a sua criação, FHC, via Medida Provisória, deixou-a subordinada ao General Ministro-Chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), cargo de natureza militar. O General é quem efetivamente manda, filtrando quais as informações devem chegar às mãos do Presidente (ZAVERUCHA, 2006).
No governo de Lula, a indicação para a direção da ABIN do Delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, em substituição a Marisa Almeida Del'Isola e Diniz, gerou grande insatisfação no meio das Forças Armadas. A escolha do nome de Lima e Silva foi indicação do Presidente. O Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, General Jorge Armando Félix, criticou a indicação e a desconsideração do Presidente, pois o mesmo não levou em consideração a insatisfação castrense (ROMERO & CALDEIRA, 2004).
Os militares, que criticaram reservadamente a indicação de Lima e Silva para a direção da ABIN, alegavam que o Delegado tinha uma forte aproximação com o FBI (a Polícia Federal dos Estados Unidos), do qual o Delegado participou, a convite, de um curso de especialização. Lima e Silva disse que sua ligação com o FBI deveria ser vista como uma conquista individual da qual ele orgulhava-se e que as críticas existiriam mesmo se ele tivesse feito qualquer curso, em qualquer parte do globo.
Na verdade, a resistência dos militares estava no fato de Lima e Silva ser o primeiro policial civil a comandar o departamento de inteligência do governo brasileiro, aproximando mais o órgão do Presidente, já que existe uma relação tensa, oriunda da presença militar no combate à violência urbana e da divisão de tarefas na repressão ao narcotráfico nas fronteiras nacionais.
Em julho de 2005, depois de forte pressão política por parte do General Jorge Armando Félix (que comanda o GSI atualmente), o delegado Mauro Marcelo Lima e Silva foi demitido, tendo sido nomeado para seu lugar Márcio Paulo Buzanelli, veterano do antigo SNI. A vitória política do General Félix significa, também, a perpetuação do SNI, órgão de inteligência do período ditatorial.
O aspecto da fragilidade democrática da ABIN não está apenas em pontos informais. A Lei n. 9 883, que rege essa instituição, afirma, em seus artigos, pontos que levam a uma ampla interpretação. Em seu artigo 1º, fica "instituído o Sistema Brasileiro de Inteligência, que integra as ações de planejamento e execução das atividades de inteligência do País, com a finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional". Como se observa nesse artigo, é clara a prerrogativa presidencial em assuntos de inteligência, fazendo que o governo tenha maiores poderes sobre o serviço de inteligência nacional do que os outros poderes da República20.
Não existe um cuidado e uma preocupação nos assuntos de inteligência. O Congresso Nacional tem na Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) o órgão responsável pela fiscalização dos assuntos de inteligência. No entanto, esse órgão não tem competência quando o assunto é a inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal (que faz parte do Ministério da Justiça). Dessa forma, não penetra nas instâncias mais importantes do setor de inteligência.
As atividades de inteligência, no Brasil, segundo artigo da Lei n. 9 883, são de natureza civil e militar. Isso vem a misturar a sua competência, pois as P-2s (Serviços de Inteligência das Polícias Militares Estaduais) passam a ser vinculadas à ABIN. Sabe-se, de antemão, que as atividades de inteligências das polícias militares são de inteira responsabilidade do Exército. Tal arranjo institucional, bastante complexo e esdrúxulo, abriu espaço para a atuação desproporcional dos militares em um bem público que é a inteligência.
A ABIN mantém em seu bojo uma racionalidade de segurança nacional em defesa do Estado contra o inimigo interno; não existe atribuição da instituição à esfera civil na defesa da ordem pública. Existe uma lista imensurável de denúncias de espionagem política por parte da ABIN. A racionalidade de perseguição política mantém-se como na época do SNI. Arapongagem e investigações com fins políticos estão na ordem do dia21.
Alguns exemplos podem ser colocados para reforçar tal análise institucional. Os direitos individuais são ameaçados sem que haja uma medida severa de punição aos atos de ilicitude da ABIN22. Espionagem de presidentes e ex-presidentes, como foi o caso de Itamar Franco, é um exemplo cabal de desmando. Itamar fora investigado desde março de 1998, quando tentou sair candidato pelo PMDB23 a Presidência da República. A ABIN produziu vários relatórios sobre o investigado, inclusive de cunho financeiro, em que invadiu o sigilo bancário e fiscal do ex-Presidente.
O jornalista Andrei Meireles, da revista IstoÉ, também foi investigado. Ele apurava o eventual envolvimento do ex-Secretário-Geral do Palácio do Planalto, Eduardo Jorge Caldas Pereira, no escândalo do desvio de verbas da obra do Tribunal Regional do Trabalho, em São Paulo. Outra revista de grande veiculação nacional, Veja, revelou a ficha ideológica de Andrei Meireles. Esta teria sido revelada por arapongas da ABIN, afirmando que o mesmo tinha pertencido ao Partido Comunista Brasileiro, que foi do sindicato de jornalistas e participou de um encontro sindical em Cuba. Parece uma perseguição política ao inimigo interno da época da ditadura militar, i. e., a Lei de Segurança Nacional, tal como ideologizada pela Escola Superior de Guerra (ESG) e sua Doutrina de Segurança Nacional24 (ALVES, 1984).
A Operação Satiagraha, executada pela Polícia Federal, demonstrou como a ABIN ainda perpetua a concepção de perseguição ao inimigo interno, ou ao inimigo do Estado, sem levar em consideração a Constituição e os direitos de defesa. Várias pessoas tiveram seus sigilos telefônicos invadidos por agentes da ABIN, que foram utilizados de forma ilegal pelo Delegado Protógenes Queiroz, da Polícia Federal. Até o Presidente do Supremo Tribunal Federal foi "investigado" pela ABIN, sem nenhum tipo de controle institucional. Seu diretor geral, Paulo Lacerda, foi afastado, e o Presidente do GSI, General Jorge Armando Félix, que deveria controlar a Agência, até hoje não conseguiu explicar o desmando dentro daquela instituição.
O Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamento a defesa do Estado democrático de direito e a dignidade da pessoa humana, devendo, ainda, cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e os demais dispositivos da Constituição Federal. Pelo que foi destacado, não são cumpridas tais atribuições. O órgão de inteligência máximo do país serve, na verdade, para fins políticos e, dessa forma, passa por cima da própria democracia.
O ranço autoritário ainda se mostra bem forte dentro da ABIN. O maior número de assentos dentro dessa instituição é de militares. Dessa forma, as informações cedidas pelas secretarias de segurança pública estatais serão direcionadas para as mãos dos militares federais, principalmente quando se tratar de distúrbios sociais. A agência também pode agir de forma a obstaculizar avanços quanto aos direitos humanos no Brasil, sobretudo a respeito de informações do período autoritário. Existe uma clara "quebra de braço" entre civis e militares dentro da ABIN, na qual o GSI aparece, até o momento, na frente, na disputa pelo controle dessa agência de inteligência25.


V. CONCLUSÕES
O processo de militarização da Segurança Pública no Brasil pode ser colocado como uma variável explicativa muito relevante para a não consolidação da democracia no Brasil. Foram destacados aqui alguns pontos desse processo de militarização que, mesmo depois de termos redemocratizado o país, em moldes procedimentaissubmínimos (NÓBREGA JR., 2005a), a questão da segurança interna permanece de forma bastante acentuada nas mãos dos verde-oliva. Isso gera falta de controle civil sobre os militares, atributo imprescindível para a consolidação da democracia, além de limitações sérias à defesa dos direitos dos cidadãos. Observando tais detalhes, percebo que o atual quadro da segurança pública do Estado brasileiro contempla, no máximo, uma semidemocracia.
Não obstante, não se deve esquecer os avanços democráticos, nos dois eixos de Robert Dahl (1969), i. e., o eixo da competição e o eixo da inclusão. Tivemos avanços no que se refere a certos aspectos da democracia representativa e às garantias de liberdades individuais, como a liberdade de imprensa, alternativas de informação, pluripartidarismo, lisura nas eleições, liberdade de associação, dentre outros direitos fundamentais. O povo brasileiro teve consolidados seus aparatos de contestação e de inclusão no processo do voto.
Contudo, em democracias sólidas, além das eleições - livres, limpas, competitivas, periódicas e pluripartidárias - e direitos políticos para a maioria adulta da população, é imprescindível a garantia dos direitos civis (acesso à Justiça e direito à vida, por exemplo) e o efetivo controle das instituições da Res Publica por atores políticos eleitos pelo povo. O caso da militarização da segurança pública é um claro exemplo de ator político não eleito infligindo em assuntos da esfera política civil. Os militares no Brasil mantiveram suas prerrogativas em muitos assuntos do Estado brasileiro, na verdade, saíram do governo mantendo suas prerrogativas, ou seja, mantiveram-se no poder.
As polícias militares estaduais apresentam um grande vínculo com o Exército, fragilizando o poder dos governadores dos estados. Os seus órgãos de informações-inteligência (P-2) devem sujeição ao comando do Exército, contribuindo ainda mais para o fortalecimento das forças militares em assuntos de segurança interna. Nossa constituição apresenta artigos que mantêm o statu quo ante do regime autoritário. O art. 142 cede poderes de garantidores da lei e da ordem interna, inclusive de ordem constitucional, aos militares, dando um poder quase que ilimitado às Forças Armadas.
O que exemplifica de forma mais eloqüente o domínio verde-oliva em atividade civil é o seu papel no Ministério da Defesa. Órgão vinculado ao poder Executivo, que deveria estar imbuído na defesa dos interesses civis, mostra-se como uma instituição estranha ao corpo da esfera civil. Na verdade, as prerrogativas dos comandos, principalmente o Exército, prevalecem, e o Ministro dessa pasta é um mero despachante dos interesses castrenses, uma "rainha da Inglaterra" que "reina", mas não governa de fato.
A Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) é outro órgão que foi fortemente dominado pela militarização. Temos a prevalência do domínio do GSI que está sob o comando de um militar da ativa. Este domina as atividades de inteligência não só dessa agência, mas de outras instituições de informações e inteligência do Brasil, como é o caso das P-2s, das polícias militares.
O que prevalece na Segurança da nossa Res Publica é uma estrutura militarizada, herança do período autoritário, que não avança para outra estrutura comandada de forma eficiente por civis capacitados e direcionados para a realidade do Estado de Direito democrático.

(Disponível em : http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-44782010000100008&script=sci_arttext)


Nenhum comentário: