terça-feira, 4 de setembro de 2012

MULHER E MACHISMO

De olhos bem abertos


UMA CRÍTICA DO MACHISMO NOSSO DE CADA DIA, E OTRAS COSITAS MÁS...

Mulher, não me venha com história.


Mulheres não têm história. Ou pelo menos é assim que o machismo nos quer fazer pensar. A mulher tem sempre entre 16 e 30 anos de idade, coincidentemente a idade reprodutiva ideal. Sempre está bem disposta, arrumada, preferencialmente com cabelos lisos ou cachos comportados (rabo de cavalo só se for para fazer o tipo esportista) e, acima de tudo, não tem passado.
Enquanto o homem é retratado em suas mais diversas fases, seja como o adolescente rebelde, o jovem adulto, o gatão da meia-idade ou mesmo o cinqüentão bem-sucedido e assim por diante, a mulher, apesar de também ter diferentes representações na indústria cultural, geralmente passa a imagem de sempre possuir os seios firmes, a bunda levantada e todas aquelas outras marcas que na verdade dizem respeito a somente um período corporal e hormonal, e não a uma vida inteira de variações.
Talvez por isso estejam tão em voga as terapias hormonais. Claro, questões como ovários policísticos e conseqüências indesejáveis da menopausa também são solucionadas com terapia hormonal. Mas o que assusta é o fato de mulheres sentirem-se compelidas (pois o querer não está errado, o erro está em sentir-se obrigada a fazer algo) a manter o seu corpo falsamente estático, quando ele tem uma história para contar. A mulher, assim, acaba num entroncamento, em que só pode escolher duas direções: ou se torna a mãe amada por sua família, querida por seus amigos, admirada por todos, mas jamais considerada em sua beleza corporal, e assim avança em direção ao dito outono de sua vida, ou mantém-se eternamente jovem, recorrendo, a depender de seu poder aquisitivo, aos mais diversos artifícios, sejam eles cosméticos ou cirúrgicos.
Por outro lado, a infância também se vê surrupiada em seu grande potencial expressivo por conta dessa imagem estática da dita jovem mulher. Roupas que realçam partes do corpo como coxas, seios, colo são portadas por meninas que ainda estão longe de sua menarca, quando, aí sim, em algumas delas, estas partes começarão a ganhar volume e fará algum sentido dar-lhes destaque. Claro, criança deve usar o que deixa a criança feliz, e por isso não cabe uma crítica individual a esta ou aquela menina, mas sim uma crítica estrutural à forma como a menina é vestida, sempre de maneira não prática, em roupas que dificilmente são adequadas para brincadeiras como pique-esconde ou pega-pega (se é que ainda se brinca disso).
A pedofilização da sociedade é um tema que merece uma reflexão mais detida, e por isso deixaremos para abordá-la em específico em outro momento. O que vale como introdução para a história da mulher sem história é justamente a noção de que a mulher vê-se constantemente empurrada em direção a um ideal feminino, a um ideal que tem idade, que tem cor e que tem classe. Este ideal feminino obedece, primeiramente, ao padrão reprodutivo das mulheres (aqui se utiliza o termo “mulher” para significar pessoas nascidas com vagina, ovários e útero, mas esses ideais também são empurrados a todas aquelas pessoas nascidas com um pênis, mas que buscam construir-se como do gênero feminino, também mulheres).
Não é preciso saber muito de biologia para entender que a idade reprodutiva da mulher começa na primeira menstruação e acaba com a menopausa. A coisa fica um pouco mais complicada, porém, quando tentamos compreender porque numa sociedade onde o número de crianças em abrigo aguardando a adoção é elevadíssimo, onde os métodos de reprodução assistida já se encontram em estágio relativamente avançado, e onde a maternidade, ao menos num primeiro momento, parece não ser uma obrigação à mulher, enfim, é difícil compreender como, atualmente, a beleza de uma mulher pode estar focada nesse significativo, mas não majoritário, período de sua vida.
É como se a beleza da mulher estivesse ligada a sua utilidade enquanto máquina reprodutora. Aqui o argumento biologicizante sempre surge para legitimar esta visão estática, pois se no mundo animal escolhe-se o parceiro de acordo com sua vitalidade e a possibilidade de, em se combinando seus genes com este parceiro, ter-se uma prole mais saudável e forte, no mundo humano não haveria de ser diferente. Acontece que não estamos falando de reprodução, estamos falando de afeto, estamos falando de sexo por prazer, estamos falando daquilo que nos faz humanos, e esta animalização biológica para a qual tentam empurrar as críticas a esse modelo estático é simplesmente um retrocesso que nem o próprio Darwin aceitaria.
Por outro lado, essa imagem estática da mulher não tem só uma utilidade reprodutiva, se é que a tem. A imagem estática da mulher fomenta uma lucrativa indústria de produtos e serviços que vai desde o mais ínfimo lápis de olho até caríssimos tratamentos com choques, produtos químicos e procedimentos invasivos. Novamente, o erro não está em a mulher desejar alterar e viver o seu corpo da forma como ela sente que a fará feliz, mas sim em haver tão-somente uma imagem possível para esse fim almejado.
Mas não é só no setor de produtos e serviços que tal ideário é capaz de receber um investimento financeiro e temporal das mulheres. A indústria cultural talvez seja o principal vetor dessa cultura estática, dessa imagem repetida ao infinito, de uma mulher inexistente. Essa caricatura que busca representar a mulher universal e que, no fim das contas, especialmente por conta dos recursos gráficos hoje amplamente utilizados nas nossas iconografias de banca de esquina, não representa ninguém, transforma a mulher num pastiche, numa cópia imperfeita daquilo que ela nunca poderá ser.
E isso gera frustração. Isso gera uma alienação em relação ao próprio corpo, em relação às próprias formas, em relação às marcas, em relação à própria história. Cuidar da saúde não é sinônimo de ser magra. Ser magra não é sinônimo de não se alimentar bem. Alimentar-se bem não é sinônimo de ser gorda. Ser gorda não é sinônimo de não ser saudável. E nenhum dos anteriores é sinônimo ou antônimo de ser bela. Enquanto o discurso científico avança, mostrando cada vez mais que qualidade de vida é algo muito mais individual do que objetivo, o discurso midiático mantém a imagem estática daquela mulher que não existe.
Contudo, nada é por maldade, mas sim para incentivar a beleza natural das mulheres, afinal toda mulher nasce com uma sobrancelha feita, passa pela puberdade com apenas uma fina tira de pêlos na virilha e chega à meia-idade sem nenhum buço, com cutículas que nunca crescem e cabelos que nunca ressecam e nunca perdem a cor. A “beleza natural” da mulher, no momento em que se coloca como passível de massificação, contradiz-se, uma vez que o natural torna-se normal, normativo, imposto.
Assim, é fácil perceber que a perspectiva pela qual a mulher é capturada tem uma idade, e tem uma classe, porque ser mulher não sai barato. E não sai barato não apenas pelo dinheiro investido, mas também pelo tempo gasto em ser mulher. Um interessantíssimo estudo antropológico (que eu infelizmente não tenho à mão para indicar a referência exata) conduzido entre travestis argentinas buscava compreender como as revistas direcionadas para este setor específico de mulheres atuavam na construção de sua auto-imagem. A espantosa conclusão, já alcançada quase meio século antes por Simone de Beauvoir, foi a de que as revistas para mulheres trans se assemelhavam na sua quase totalidade às revistas de beleza para mulheres cis-gênero, e que tal qual as mulheres trans, as mulheres cis também tinham de aprender a ser mulheres, a andar como mulheres, a se vestirem como mulheres, a falarem como mulheres.
Obviamente, isso não é privilégio feminino, uma vez que também a masculinidade é um habito imposto e duramente reforçado sobre o sujeito nascido com um pênis. Ainda assim, o investimento estético masculino liga-se muito mais a signos de poder do que a signos de submissão. O corpo da mulher aparece enquanto corpo domesticado, marcado, depilado, furado e constantemente alterado a fim de não demonstrar nenhum tipo de alteração, ao passo que o corpo do homem porta símbolos de riqueza, de força, de dominação, quase numa relação sado-masoquista, só que sem consenso, desaguando muitas vezes em frustração, exclusão e, obviamente, desigualdade.
É por isso que a mulher que se insere em espaços eminentemente masculinos muito provavelmente possui o dobro ou o triplo do mérito de um homem que ocupa o mesmo lugar, pois tem sobre si a pressão de ser mulher, de manter o seu corpo, de manter a sua imagem e de não ser “desleixada”, ao passo que para o homem, para não ser desleixado, basta que corte o cabelo uma vez a cada duas ou três semanas, e faça a barba uma vez a cada dois dias, a depender da pessoa.
Portanto, idade e classe, dinheiro e tempo. Mas ainda, raça. E isso porque num país onde mais da metade da população é negra, o ideal de mulher continua tendo a pele clara, os cabelos lisos ou ondulados. O cabelo dito natural certamente não é o forte cacheado de um belo afro, e também não é o interessante emaranhado de um cabelo mulato, mas sim é o cabelo que tomba sobre os ombros, mesmo que sejam os ombros de uma negra.
Enquanto a mulher de cabelos lisos acorda e, geralmente (não vamos fazer generalizações aqui, mas por favor entendam o argumento), precisa tão-somente escovar o cabelo para estar “apresentável”, a mulher negra passa por diversos processos de hidratação, relaxamento, alongamento, alisamento etc, para ter um cabelo considerado “bonito”, ou pelo menos arrumado.
E não só no que se refere aos cabelos, mas também à pele, afinal, se poucas são as mulheres negras na televisão, a maior parte delas é de negras claras, negras que atendem ao estereótipo “mulata tipo exportação”. Dificilmente são chamadas de negras, mas passam tranquilamente por eufemismos, que vão desde o passivo-agressivo “pé-na-senzala” até o consagrado “morena”. Dessa forma, tem-se a mulher e a mulher morena. Tem-se o cabelo e o cabelo ruim. Tem-se, portanto, o sujeito e o sujeito adjetivado, e que geralmente carece de algo para tornar-se sujeito pleno.
Mas isso vai além, uma vez que é a própria face da mulher negra que se torna objeto de disputa política, já que o nariz largo e achatado não condiz com o fino ideal estético pseudo-europeu por nós adotado. A África não é um país, mas um continente, com as mais diversas etnias, e certamente não é suficiente dizer que “tem uma negra na novela”. Aliás, novelas são o de menos. A questão é que por todos os lados, seja na política, seja na educação, seja na indústria cultural, os ideais de mulher negra que conseguem penetrar nesses espaços dificilmente conglobam etnias que não se assemelhem ao rosto europeu, de traços mais finos e ovalados.
Essa retirada simbólica da identidade racial da mulher negra, cis ou trans, também é uma ótima fonte de investimento num país onde, contrariamente ao que a televisão tenta nos fazer crer, a maior parte das pessoas não acorda com cabelos lisos e não tem a pele clara. Assim, é possível criar toda uma série de artifícios através dos quais a mulher negra pode destruir-se, pagando assim o preço de ingresso na sociedade unidimensional da mulher padrão.
Portanto, idade, classe e raça. Apesar de constituírem uma possível miríade de diferentes tipos de corpos, e de vivências do corpo, e de constantes processos de reformulação deste corpo, estes três aspectos funcionam como os três suportes perfeitos de um plano, sobre o qual repousa a fotografia de uma única mulher. Essa mulher não tem história, ela tem eternamente só uma idade. Na medida do possível, essa mulher não tem classe. Ela gasta seu tempo e seu dinheiro num eterno ímpeto de demonstrar ser igual, anulando suas diferenças, mesmo que para isso sacrifique outras possibilidades de investimento financeiro. Finalmente, essa mulher não tem raça, uma vez que, salvo tenha tido a sorte de nascer com a pele mais bem representada de nossa indústria cultural, ela deverá passar a sua vida negando aqueles traços que afloram de seu corpo, e que constituem seu inalienável patrimônio cultural e histórico.

P.S.: agradeço imensamente à paciência e carinho de minha namorada e companheira de militância Ana Flávia, que não apenas digitou a presente reflexão, mas tem me ajudado muito desde que um episódio de breve estupidez inutilizou temporariamente minha mão direita. Te amo muito…
P.P.S.: como não estou em casa, encaminho as referências bibliográficas do texto mais tarde.



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