quinta-feira, 27 de setembro de 2012

NARRAÇÃO x MERO RELATO



Leia atentamente os textos seguintes.

TEXTO 1

TRAGÉDIA BRASILEIRA

Misael, funcionário da fazenda, com 63 anos de idade,
Conheceu Maria Elvira na Lapa — prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-o num sobrado no Estado, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto elo queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonito, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. Não fez nada disso: mudou de cosa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.
Os amantes moraram no Estado, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olária, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estado, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul. (em Estrela da Manhã, Manuel Bandeira)

TEXTO 2

(...)


TEXTO 3


ENCONTRO NA PRIMAVERA

Setembro chegou e com ele a esperança de dias melhores. O céu mais limpo, o azul mais azul, um agradável cheiro de flores no ar. Assim sentia Ritinha nessa época do ano, em todos os anos. E, em cada ano que passava, ela nutria a mesma esperança: um encontro mágico com o príncipe encantado que possivelmente iria aparecer na "festa da primavera" organizada pelo colégio em que estudava, nos jardins cheios de flores de sua pequena cidade, no pôr-do-sol nos quais se perdia em devaneios, na casa de suas amigas em forma de um primo distante, nas estradas que ligavam sua cidadezinha ao mundo, nos livros que lia — cheios de aventuras amorosas e finais róseos.
Setembro era o mês da felicidade para a jovem sonhadora. Mês de um sagrado ritual: banhos de ervas à tarde, xampu de babosa nos longos e sedosos cabelos negros — mais negros que o breu da noite, discretamente despenteados ao secar —, uma leve loção de fragrância floral aplicada em gotículas abaixo de cada orelha, tom laranja de um discreto batom sobre os lábios, só para fingir cor natural. Para completar, uma camisa de seda ou de linho, de preferência em tom pastel, casando com a saia, a mais curta possível, já que seus joelhos foram esculpidos para ficarem à mostra.
Tudo isso era Ritinha e muito mais: um metro e sessenta de primavera sobre sandálias altas e amarelas, plena em sua juventude. (do autor, para exemplificar um "anti-texto")


Comparando os dois primeiros textos com este último, constatamos que:

a) Na "Tragédia Brasileira", a caracterização das personagens por oposição cria uma expectativa para as próprias personagens (Misael nutre alguma esperança em relação à Maria Elvira, e esta conta com algum apoio de Misael) e para o leitor (como será a união de um senhor de 63 anos com uma prostituta?). A oposição existente entre eles, por si só, indicia o surgimento de um conflito. Como uma personagem não corresponde à expectativa da outra, o conflito emerge: Maria Elvira começa a trair Misael. Passo seguinte: tentativas de solução do conflito (Misael muda de casa toda vez que Maria Elvira arranja um namorado). Solução final: Misael mata-a.

b) (...)

c) Em "Encontro na primavera", um conflito é insinuado, cria-se para o leitor uma ex¬pectativa de que algo ocorrerá na trajetória da personagem Ritinha. No entanto, o narrador se perde na caracterização excessiva da personagem e não procura soluções para o conflito.
Além das diferenças estilísticas entre os três textos, uma se impõe como fundamental:
os dois primeiros realizam uma narração, tipo de composição que ocupa um espaço teórico na teoria do discurso; o terceiro, constitui apenas um mero relato.


Segue abaixo um esquema de comparação:



NARRAÇÃO

1. Cria-se uma EXPECTATIVA para as personagens e para o leitor.
2. A expectativa contém ÍNDICES do conflito.
3. Quebra da expectativa.
4. Explode o CONFLITO (principal característica).
5. Busca-se a SOLUÇÃO do conflito.
6. O conflito pode ou não ser solucionado — as personagens resolvem ou tentam resolver o conflito.
7. A partir da "solução" do conflito, conhece-se a INTENÇÃO do narrador.

MERO RELATO

1. Cria-se uma expectativa sem objetivo definido.
2. Surgem ou não índices do conflito.
3. A expectativa se mantém ou é substituída por outra.
4. Ausência de conflito: o conflito não surge, ou é simplesmente insinuado.
5. Os fatos e as caracterizações se acumulam inexpressivamente,
6. Já que não há conflito, qualquer final — pretensa solução — pode ser apresentado como fecho para o texto.
7. Não se sabe com que intenção a "história" foi relatada.



(Português. Livro 4. Laboratório de redação I. Anglo)

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