Veja também em Convite à Filosofia de Marilena Chauí, disponível em http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/convite.pdf:
“Três concepções filosóficas da liberdade”
“Liberdade e possibilidade objetiva”
Marilena Chauí – Convite à Filosofia
_______________________________
Capítulo 6
A liberdade
1.
A liberdade como
problema
A torneira seca
(mas pior: a falta
de sede)
A luz apagada
(mas pior: o gosto
do escuro)
A porta fechada
(mas pior: a chave
por dentro).
Este
poema de José Paulo Paes nos fala, de forma extremamente concentrada e precisa,
do núcleo da liberdade e de sua ausência. O poeta lança um contraponto entre
uma situação externa experimentada como um dado ou como um fato (a torneira
seca, a luz apagada, a porta fechada) e a inércia resignada no interior do sujeito
(a falta de sede, o gosto do escuro, a chave por dentro). O contraponto é feito
pela expressão “mas pior”. Que significa
ela? Que diante da adversidade, renunciamos a enfrentá-la, fazemo-nos cúmplices
dela e é isso o pior. Pior é a renúncia
à liberdade. Secura, escuridão e prisão deixam de estar fora de nós, para se
tornarem nós mesmos, com nossa falta de sede, nosso gosto do escuro e nossa
falta de vontade de girar a chave.
Um outro poema
também oferece o contraponto entre nós e o mundo:
Mundo mundo vasto
mundo,
Se eu me chamasse
Raimundo
Seria uma rima, não
seria uma solução.
Mundo mundo vasto
mundo,
Mais vasto é meu
coração.
Neste
poema, Carlos Drummond de Andrade, como José Paulo Paes, confrontanos com a realidade
exterior: o “vasto mundo” do qual somos
uma pequena parcela e no qual estamos mergulhados. Todavia, os dois poemas
diferem, pois em vez da inércia resignada, estamos agora diante da afirmação de
que nosso ser é mais vasto do que o mundo: pelo nosso coração – sentimentos e
imaginação – somos maiores do que o mundo, criamos outros mundos possíveis,
inventamos outra realidade. Abrimos a torneira, acendemos a luz e giramos a
chave.
Embora
diferentes, os dois poemas apontam para o grande tema da ética, desde que esta
se tornou questão filosófica: O que está e o que não está em nosso poder? Até
onde de estende o poder de nossa vontade, de nosso desejo, de nossa consciência?
Em outras palavras: Até onde alcança o poder de nossa liberdade? Podemos mais
do que o mundo ou este pode mais do que nossa liberdade? O que está
inteiramente em nosso poder e o que depende inteiramente de causas e forças
exteriores que agem sobre nós? Por que o pior é a falta de sede e não a torneira
seca, o gosto do escuro e não a luz apagada, a chave imobilizada e não a porta
fechada? O que depende do “vasto mundo” e o que depende de nosso “mais vasto
coração”?
Essa
mesma interrogação, embora não explicitada nesses termos, encontra-se presente
no que escreveu o poeta Vicente de Carvalho em “Velho tema”:
Só a leve
esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de
viver, mais nada,
Nem é mais a
existência, resumida,
Que uma grande
esperança malograda.
O eterno sonho da
alma desterrada,
Sonho que a traz
ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz,
sempre adiada
E que não chega
nunca em toda a vida.
Essa felicidade que
supomos,
Árvore milagrosa
que sonhamos
Toda arreada de
dourados pomos
Existe, sim: mas
nós não a alcançamos,
Porque está sempre
apenas onde a pomos
E nunca a pomos
onde nós estamos.
O
poeta contrasta a “esperança malograda” de felicidade e a felicidade que “existe,
sim”, mas que não alcançamos porque “nunca a pomos onde nós estamos”, embora
esteja “sempre apenas onde a pomos”. Nossa alma fica desterrada no sonho,
exilada do real, porque incapaz de reconhecer que a felicidade não é uma árvore
distante, situada em algum lugar não localizável do vasto mundo, mas está em
nós, em nossa “leve esperança”, em nosso
mais vasto coração, dependendo apenas de nós mesmos, “porque está sempre apenas onde a pomos”.
Porta
fechada, vasto mundo, árvore milagrosa: a felicidade parece depender inteiramente
do que se encontra fora de nós. Chave por dentro, coração mais vasto, estar
sempre apenas onde a pomos: a felicidade parece depender inteiramente de nós. Seja
de modo pessimista (como em José Paulo Paes e Vicente de Carvalho), seja de
modo otimista (como em Carlos Drummond), os três poetas nos colocam diante da
liberdade como problema. Filosoficamente, este se apresenta sob a forma de dois
pares de opostos:
1.
o par necessidade-liberdade;
2.
o par contingência-liberdade.
Torneira
seca, luz apagada, porta fechada: a realidade é feita de
situações adversas e opressoras, contra as quais nada podemos, pois são
necessárias. Vasto mundo: se a realidade natural e cultural possui leis causais
necessárias e normas regras obrigatórias, se tanto as leis naturais como as
leis culturais não dependem de nós, se sermos seres naturais e culturais não
depende de nós, se somos seres naturais e culturais cuja consciência e vontade
são determinadas por aquelas leis (da Natureza) e normas-regras (da Cultura),
como então falar em liberdade humana? A necessidade que rege as leis naturais e
as normas-regras culturais não seria mais vasta, maior e mais poderosa do que
nossa liberdade? O que poderia estar em nosso poder?
Árvore
milagrosa: se a felicidade e o bem são milagres, então são puro acaso, pura
contingência e não resta senão o jogo interminável entre a “leve esperança”e a “grande esperança malograda”. Se o mundo é um
tecido de acasos felizes e infelizes, como esperar que sejamos sujeitos livres,
se tudo o que acontece é imprevisível, fruto da boa e da má sorte, de
acontecimentos sem causa e sem explicação? Como sermos sujeitos responsáveis
num mundo feito de acidentes e de total indeterminação? Se tudo é contingência,
onde colocar a liberdade? O par necessidade-liberdade também pode ser formulado
em termos religiosos, como fatalidade-liberdade, e em termos científicos, como determinismo
liberdade.
Necessidade é o termo empregado para
referir-se ao todo da realidade, existente em si e por si, que age sem nós e
nos insere em sua rede de causas e efeitos, condições e conseqüências.
Fatalidade é o termo usado quando pensamos
em forças transcendentes às nossas e que nos governam, quer o queiramos ou não.
Determinismo é o termo empregado, a partir do
século XIX, para referir-se à realidade conhecida e controlada pela ciência e,
no caso da ética, particularmente ao ser humano como objeto das ciências
naturais (química e biologia) e das ciências humanas (sociologia e psicologia),
portanto, como completamente determinado pelas leis e causas que condicionam
seus pensamentos, sentimentos e ações, tornando a liberdade ilusória.
O
par contingência-liberdade também pode ser formulado pela oposição acaso liberdade.
Contingência ou acaso significam que a realidade é imprevisível e mutável,
impossibilitando deliberação e decisão racionais, definidoras da liberdade. Num
mundo onde tudo acontece por acidente, somos como um frágil barquinho perdido
num mar tempestuoso, levado em todas as direções, ao sabor das vagas e dos
ventos.
Necessidade,
fatalidade, determinismo significam que não há lugar para a liberdade, porque o
curso das coisas e de nossas vidas já está fixado, sem que nele possamos
intervir. Contingência e acaso significam que não há lugar para a liberdade,
porque não há curso algum das coisas e de nossas vidas sobre o qual pudéssemos
intervir.
Tomemos
um exemplo da necessidade oposta à liberdade:
Não
escolhi nascer numa determinada época, num determinado país, numa determinada
família, com um corpo determinado. As condições de meu nascimento e de minha
vida fazem de mim aquilo que sou e minhas ações, meus desejos, meus
sentimentos, minhas intenções, minhas condutas resultam dessas condições, nada
restando a mim senão obedecê-las. Como dizer que sou livre e responsável?
Se,
por exemplo, nasci negra, mulher, numa família pobre, numa sociedade racista,
machista e classista, que me discrimina racial, sexual e socialmente, que me
impede o acesso à escola e a um trabalho bem remunerado, que me proíbe a entrada
em certos lugares, que me interdita amar quem não for da mesma “raça” e classe
social, como dizer que sou livre para viver, sentir, pensar e agir de uma maneira
que não escolhi, mas foi-me imposta?
Tomemos,
agora, um exemplo da contingência oposta à liberdade.
Quando
minha mãe estava grávida de mim, houve
um acidente sanitário, provocando uma epidemia. Minha mãe adoeceu. Nasci com
problemas de visão. Foi por acaso que a gravidez de minha mãe coincidiu com o
acaso da epidemia: por acaso, ela adoeceu; por acaso, nasci com distúrbios
visuais. Tendo tais distúrbios, preciso de cuidados médicos especiais. No
entanto, na época em que nasci, o governo de meu país instituiu um plano
econômico de redução de empregos e privatização do serviço público de saúde.
Meu pai e minha mãe ficaram desempregados e não podiam contar com o serviço de
saúde para meu tratamento. Tivesse eu nascido em outra ocasião, talvez pudesse
ter sido curada de meus problemas visuais.
Quis
o acaso que eu nascesse numa época funesta. Tal como sou, há coisas que não
posso fazer. Sou, porém, bem dotada para música e poderia receber uma educação
musical. Porém, houve a decisão do governo municipal de minha cidade de demolir
o conservatório musical público. Não posso pagar um conservatório particular e
ficarei sem a educação musical, porque, por acaso, moro numa cidade que deixará
de ter um serviço público de educação artística. Morasse eu em outra cidade ou
fosse outro o governo municipal, isso não aconteceria comigo. Como, então,
dizer que sou livre para decidir e escolher, se vivo num mundo onde tudo
acontece por acaso?
Diante
da necessidade e da contingência, como afirmar que “mais vasto é meu coração”?
– ou que a felicidade “está sempre onde
a pomos”?
Examinemos
mais de perto os dois exemplos mencionados.
No
primeiro exemplo – negra, mulher, pobre,
numa sociedade racista, machista, classista
– parece que nada posso fazer. A porta está fechada e a luz apagada. Porém,
nada estará no poder de minha liberdade? Terei que gostar do escuro e permanecer
com a porta fechada? Se a ética afirmar que a discriminação étnica, sexual e de
classe é imoral (isto é, violenta), se eu tiver consciência disso, nada farei?
Serei impotente para lutar livremente contra tal situação? Mantendo-me resignada,
conformada, passiva e omissa não estarei fazendo da necessidade uma desculpa,
um álibi para não agir?
No
segundo exemplo – epidemia, desemprego,
fim dos serviços públicos de saúde e educação artística – também parece que
nada posso fazer. Será verdade? Não estarei transformando os acasos de meu
nascimento e das condições políticas em desculpa e álibi para minha resignação?
Falarei em “destino” e “má sorte” para
explicar o fechamento de todos os possíveis para fim? Renunciarei à vastidão do
meu coração, aceitando que a felicidade sempre será posta onde não estou?
Nos
dois casos, podemos indagar se, afinal, para nós resta somente “a pena de viver, mais nada” ou se, como
escreveu o filósofo Sartre, o que importa não é saber o que fizeram de nós e
sim o que fazemos com o que quiseram fazer conosco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário