Por Luis Antônio Francisco de Souza
Em agosto de 2010, o governo do
presidente Lula sancionou uma lei que atribui poder de polícia às Forças
Armadas. Os militares passaram a exercer atividades policiais, como revistar pessoas,
veículos, embarcações, bem como deter indivíduos considerados suspeitos em
áreas de fronteira.
A Polícia Militar, principal
corporação policial do país, responsável pelo policiamento ostensivo e
preventivo, é organizada militarmente e subordinada, em última instância, ao
Exército brasileiro. As ações voltadas para a gestão da insegurança urbana são
em grande medida articuladas em torno do trabalho policial militar: limpeza das
“cracolândias”, reintegração de posse de áreas ocupadas, gestão dos enclaves
urbanos e de grupos sociais considerados párias.
Estamos diante de uma nova onda
de militarização da segurança pública no Brasil? A discussão refere-se à
definição dos crimes cometidos pelos policiais militares, em funções de
policiamento, como crimes militares e, portanto, como transgressões
disciplinares, submetidas a um código, a um processo e a uma justiça militar
próprios. Esse sistema seria responsável pelo desrespeito aos direitos dos
cidadãos e daria suporte às práticas violentas dos policiais na sociedade
brasileira.
Mas a militarização é um fenômeno
mais amplo e refere-se ao processo de adoção de modelos, doutrinas,
procedimentos e pessoal militares em atividades de natureza civil (Zaverucha,
2005 e 2010).
Embora as competências
institucionais da polícia e das Forças Armadas sejam claramente diferentes, as
zonas de fronteira sempre existiram e continuam existindo nos dias atuais. A
polícia procura manter a ordem pública e a paz social trabalhando contra o
crime e na gestão dos conflitos sociais de forma permanente e com vigilância
constante; já o Exército procura manter a soberania de um país contra a
intervenção externa de um inimigo.
Embora a autorização para o uso
da força seja uma característica fundadora dessas duas instituições, é
importante ressaltar que a polícia é caracterizada pela ausência do uso
sistemático da força, enquanto o Exército preconiza o uso da arma como
instrumento dissuasório por excelência. Além do mais, a doutrina, o armamento,
a instrução e o treinamento da polícia e do Exército são necessariamente
distintos.
A polícia não deve aprender nem
usar táticas de guerra, assim como o Exército não deve ensinar ou usar técnicas
de policiamento em contextos urbanos, por exemplo. Mas o país adotou um modelo
de polícia que ainda está fortemente atrelado à defesa do Estado, e não à
defesa do cidadão. É um modelo híbrido, no qual convivem uma polícia
investigativa de caráter civil e uma polícia preventiva de caráter militar
(Zaverucha, 2005).
Nos debates atuais não é mais e
tão somente o uso da força que define a noção e a prática de polícia. Essa
definição mantém a proximidade conceitual da polícia e do Exército. Há muita
ambiguidade aí que, evidentemente, nos alerta para um problema ainda não
totalmente resolvido nas jovens democracias continentais (Bayley, 2001; Lima,
1995).
O debate sobre a militarização da
segurança pública não se esgota aí. Os municípios, que historicamente já
tiveram sua cota de responsabilidade na área da segurança, desde a Constituição
de 1988 passaram a ter a prerrogativa de criar suas guardas policiais. Na
Constituição, entretanto, os municípios poderiam criar guardas apenas para
ajudar na fiscalização de serviços públicos e na proteção de patrimônios
municipais. Mas desde então várias cidades brasileiras vêm formando seus
pequenos exércitos de policiais armados, muitos dos quais carreando poderes de
polícia ou auxiliando as polícias em funções essencialmente de combate ao crime
(Sento-Sé, 2005).
O efetivo de policiais armados
vem crescendo, acompanhando a pressão midiática por mais segurança e − por que
não dizer? − seguindo de perto o crescimento exponencial do mercado privado de
segurança, que conta com um efetivo três vezes superior ao efetivo policial
oficial. E, como face de mercadodesse processo de crise pública, as feiras de
equipamentos de segurança amealham quantias vultosas tanto de investidores
particulares como de compradores públicos, excitados com as últimas novidades
em termos de artefatos de segurança, sobretudo os eletrônicos.
Houve um avanço institucional
importante com o chamado Estatuto do Desarmamento (Lei n. 10.826/2003), que
colaborou para dificultar a injeção de armas no mercado, criando regras mais
duras para a compra, porte e uso de armas no país. O estatuto tentou limitar às
cidades com 500 mil habitantes ou mais a criação de guardas armadas. Mas hoje
os municípios com população acima de 50 mil habitantes já podem ter guardas
civis armadas (Souza Neto, 2008).
Embora na última década os crimes
de homicídio cometidos por policiais militares em serviço sejam passíveis de
julgamento pela justiça comum, mediante processo investigatório que se inicia
tanto na caserna quanto na delegacia de polícia civil, os policiais militares
ainda estão submetidos à justiça castrense. Seus crimes ou desvios são
investigados e julgados por meio de mecanismos e comissões disciplinares
militares. O policial no seu trabalho civil responde à corregedoria de polícia,
que tem características essencialmente militares e é uma forma de controle
disciplinar interno.
Nos últimos anos, no Brasil, as
ouvidorias de polícia foram criadas, mas estas não têm poder de investigação,
resumindo-se a coletar denúncias e encaminhá-las às autoridades processantes. O
controle externo das polícias militares ainda é pouquíssimo desenvolvido no
país, o que dá a elas amplas margens de arbítrio em uma função essencialmente
civil, que é a da segurança pública.
ob o influxo do chamado
narcotráfico, do contrabando de armas e de bens, do tráfico de pessoas e do
terrorismo, a política norte-americana tem insistido na intervenção direta nos
países produtores de drogas, por meio de uma forte militarização das ações
policiais, com emprego de armas, helicópteros, técnicos especializados em
guerrilhas, pessoal com formação militar, etc.
A militarização da segurança
torna-se tema da pauta política nos debates eleitorais: controle de fronteiras,
fortalecimento dos comandos do Exército nas áreas de passagem e de fluxo de
pessoas e bens, equipamentos eletrônicos de vigilância, investimentos em
equipamentos e renovação das frotas terrestres e aéreas.
As nações indígenas e os
remanescentes de quilombos veem seus direitos históricos à terra e ao
desenvolvimento sustentável, com a manutenção de suas culturas distintas e
únicas, serem condicionados à lógica da segurança nacional, da integridade e
indivisibilidade do território. Os movimentos sociais, particularmente os de
sem-terra, são vistos como ameaça ao Estado e, portanto, vêm sendo monitorados
de perto pelas polícias e pelo setor de inteligência do Exército. As demandas
sociais e políticas esbarram em considerações de segurança estratégica.
Em nossas atuais sociedades
complexas e dinâmicas, o problema da militarização da segurança, portanto, deve
ser colocado em perspectiva. Identifico três aspectos correlacionados para que
possamos compreender o problema e colocá-lo em perspectiva analítica.
Em primeiro lugar, o Exército, e
as Forças Armadas de forma mais ampla, penetra profundamente na organização das
polícias militares, mantendo-as sob sua autoridade. Os secretários de segurança
são provenientes da carreira militar; as guardas municipais estão sendo
comandadas e formadas por membros ou ex-membros das forças e da própria Polícia
Militar; há o atrelamento da Polícia Militar aos comandos regionais do
Exército; o armamento da polícia é controlado pelos militares; e a formação dos
policiais militares ainda tem forte característica de guerra, ou seja, há ainda
nas forças uma doutrina que vincula defesa externa e defesa interna.
Em segundo lugar, a estrutura e a
organização das polícias militares ainda são feitas de acordo com o modelo e a
disciplina militares; a força militar continua sendo essencialmente
aquartelada; há baixo grau de accountabilitye controle social; nas
academias há pouco treinamento específico de caráter essencialmente policial; a
formação continua fortemente militar; a linha hierárquica é muito forte e pouco
flexível; há o sistema de duplo ingresso na carreira policial; os praças têm
baixíssima possibilidade de vir a compor a elite da força policial; os cargos
superiores passam pelo crivo da seleção, pela formação no ensino médio, e
são muito competitivos; o uniforme ainda remete ao modelo militar; os crimes
cometidos pelos policiais são caracterizados como militares; S
; há justiça militar e isolamento
militar.
Em terceiro lugar, o próprio
Exército começa cada vez mais acentuadamente a assumir, por pressão popular e
por acordos internacionais, papéis de policiamento. Os exemplos são diversos, e
não é necessário nos alongarmos muito. O Exército foi chamado para prestar
segurança na conferência da ONU para o meio ambiente, a famosa Eco 92; em
várias oportunidades, interveio em ações nas favelas do Rio de Janeiro; teve e
continua tendo papel na viabilização dos projetos de construção e reforma de
moradias e de acessos às comunidades do Rio de Janeiro, dentro do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC); e tem papel destacado nas missões de
estabilização da ONU no Haiti. Os militares que foram destacados para essa
missão em particular eram treinados pela polícia para lidar com um contexto de
guerrilha urbana e ameaças de gangues de jovens, por exemplo. O tema da
policialização das Forças Armadas merecerá dos pesquisadores mais atenção e
pesquisa nos próximos anos (Brito e Barp, 2005; Mariano e Freitas, 2002;
Fontoura, 2005).
A sociedade brasileira precisa
encontrar o caminho da reforma policial e da construção de políticas de
segurança pública que impliquem um novo modelo de gestão da insegurança e do
crime, que passem pela defesa incondicional dos direitos humanos e da qualidade
de vida para parte fundamental da população (Silva, 2008; Soares, 2000).
A Primeira Conferência Nacional
de Segurança Pública (Conseg, 2009), que representou um marco importante na
discussão de um novo modelo de segurança no Brasil, colocou em debate a
desmilitarização das polícias. O resultado dos debates, que mobilizaram vários
setores da sociedade brasileira e refletiram um consenso jamais atingido antes
na área da segurança, foi a aprovação de duas diretrizes que propõem a
desmilitarização:
− “Realizar a transição da
segurança pública para atividade eminentemente civil; desmilitarizar as
polícias; desvincular a polícia e corpos de bombeiros das Forças Armadas; rever
regulamentos e procedimentos disciplinares; garantir livre associação sindical,
direito de greve e filiação político-partidária; criar código de ética único,
respeitando a hierarquia, a disciplina e os direitos humanos; submeter
irregularidades dos profissionais militares à justiça comum”;
− “Criar e implantar carreira
única para os profissionais de segurança pública, desmilitarizada, com formação
acadêmica superior e especialização com plano de cargos e salários em nível
nacional, efetivando a progressão vertical e horizontal na carreira funcional”.
Nos anos 1990, houve um renovado
ânimo para discutir polícia no Brasil a partir da proposta de unificação das
duas polícias estaduais (estranhamente essas discussões nunca colocam a Polícia
Federal na equação). Mas o debate chegou a um beco sem saída. Talvez hoje seja
o caso de retomá-lo com base em uma análise mais ampla sobre os benefícios da
desmilitarização da segurança.
As festejadas experiências
cariocas das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), por exemplo, são
importantes iniciativas de pacificação dos espaços sociais urbanos na medida em
que introduzem a chave do policiamento de proximidade e permanente nas
comunidades antes dominadas pelos traficantes e pelas milícias. Mas as UPPs
ainda estão fortemente atreladas ao modelo militar da ocupação territorial, e
os policiais estão sempre esperando o momento em que a ordem de cima venha para
sua desmobilização.
O modelo de Polícia Militar
continua fortemente atrelado à ideia de segurança nacional. As metáforas
cotidianas ligadas à segurança são ainda militares: combater o crime, eliminar
o inimigo etc. O controle das drogas e das armas ainda tem conexão com o modelo
militar, com forte influência das estratégias adotadas pelos Estados Unidos na “guerra
às drogas”.
As unidades de polícia
especializadas no Brasil são fortemente militarizadas e apresentam os
indicadores maiores de violência policial e de isolamento institucional.
Aparentemente, o problema não é o militarismo per se, pois é possível criar
estruturas militares responsáveis e mais transparentes. O problema é que o
militarismo, no modelo existente no país, fecha o campo da segurança para
outros modelos e possibilidades. Além de o militarismo considerar a segurança
um problema de Estado de defesa da soberania, ele reforça a ideia equivocada de
que a segurança deve ter uma dimensão meramente policial, de combate aos
criminosos de rua, e não um problema que necessita de estratégias amplas e
versáteis de políticas públicas.
Luís Antônio Francisco de Souza
Professor doutor da Universidade
Estadual Paulista (Unesp) em Marília.
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