quarta-feira, 26 de setembro de 2012

DEMOCRACIA E LIBERDADE


Liberdade e Individualismo

(Rodrigo dos Santos Manzano, Filósofo. Revista de Filosofia nº 62 – Ano VI)

“O conceito de liberdade na atualidade pouco liberta os homens, por estar pautado no egoísmo. Rousseau nos coloca diante da questão na relação com o outro, mostrando que a verdadeira liberdade também é abdicar de parte dela”
A liberdade é um direito garan­tido em quase todas as cons­tituições, principalmente de­pois da Revolução Francesa, está sempre presente no de­sejo humano. Porém, a ideia de liberdade na atualidade é defendida ao extremo. O culto à liberdade que se faz hoje acaba causando uma das formas de se auten­ticar e reforçar uma das características mais marcantes, e talvez mais deletérias, da pós-modernidade: o individualismo.
Diante disso, podemos questionar: o que há hoje é mesmo liberdade? E ela é positiva? E para refletir sobre essa "li­berdade moderna", podemos buscar três linhas filosóficas para nos ajudar a esta­belecer uma definição crítica deste con­ceito: os estóicos acreditam que a liber­dade está na aceitação daquilo que a vida nos proporciona; Rousseau desenvolveu a definição de "bom selvagem", que se articulou com o tema da liberdade e de­monstrou como a sociedade organizada, baseada na propriedade, destruiu a rela­ção entre natureza e liberdade e destacou a importância de se abrir mão de parte da liberdade individual para a garantia do direito a todos. E, por fim, o existen­cialismo de Sartre diz que a liberdade nos leva à responsabilidade e que somos "condenados a ser livres".

DE ACORDO COM A NATUREZA
"Definição de fim segundo Zenão: 'vi­ver de modo coerente'; o que significa viver em conformidade com uma razão única e concorde, ao passo que aqueles que vivem de modo contraditório são infelizes.
Dizemos fim um bem  perfeito, como dizemos que é fim a coerência; mas dize­mos fim também o escopo, como dizemos que é um fim o viver coerentemente e também dizemos fim o último dos bens desejáveis, ao qual todos os ou­tros se reportam.
Fim é a felicidade, para a qual toda coisa se faz, onde ela se faz, sim, mas não para um escopo estranho a ela; consiste em viver virtuosamente, em viver coe­rentemente, e ainda, que é afinal uma coisa só: viver segundo a natureza".[1]
A citação acima nos ajuda a entender a essência do pensamento estoico e a relação que os filósofos des­sa corrente fizeram entre natureza, liberdade e ética. Desta forma, é importante compreendermos, acima de tudo, o que é para o pensamento estoico viver de acordo com a natureza.
O fundador do estoicismo, o filósofo Zenão da ci­dade de Cicio, dizia que, para viver de acordo com a natureza, o conceito-chave era a ideia de ataraxia. A palavra grega ataraxia significa "indiferença". Para os estoicos, a indiferença era a chave para a vida livre. Os homens, ao apegarem-se às coisas, sempre correm o risco de sofrer. Então, caberia ao homem saber viver de modo indiferente à realidade que nos cerca, uma vez que, para eles, há uma racionalidade que guia todos os acontecimentos, o lagos. Assim, os seres hu­manos, como parte de uma natureza racional maior, têm de aprender a aceitar os acontecimentos da vida. O conceito esclarece que o homem é apenas parte da natureza, uma centelha de algo muito maior. De certa forma, querer voltar-se contra isso é agir contra a na­tureza que nos cria, que nos dá a existência, e também voltar-se contra a nossa própria natureza.
Tendo isto em mente, os estoicos acabavam por defender um estilo de vida austero. Viver de modo livre não era deixar-se guiar por paixões, ambições, desejos, pois tudo o que desejamos, o que é externo a nós, não pode nunca nos fazer realmente felizes. Pelo contrário, colocar nossa felicidade no desejo é ilusó­rio, pois, como já foi dito, a realidade sensível é fugaz.
"Como tudo passa célere! Os seres no mundo, sua lembrança no tempo! Os objetos sensíveis que nos seduzem pelas promessas de gozo, que nos ater­ram pela perspectiva do sofrimento ou cujo brilho nos deslumbra! Não nos devemos esquecer o quão são vis, abjetos, putrefatos, mortos! Quem são mes­mo aqueles cujas opiniões e palavras conferem a glória? Que é a morte? Se a considerarmos em si só, se, por uma abstração mental, a separarmos dos fantasmas que lhe associamos, veremos que não passa de uma operação da natureza. É infan­tilidade temer uma operação da natureza. E não é apenas uma operação banal da natureza, mas, sim, uma operação útil à natureza. Como pode o homem atingir Deus? Por que parte de si mesmo? Mediante que disposição dessa parte".[2]
O que podemos perceber é que, para os estoicos, a verdadeira liberdade está no não se apegar ao que é externo, uma vez que há uma razão para as coisas deixarem de existir. Se tudo é fugaz, é bobagem so­frer pelo que se perde, pois a perda é algo inevitável. Desta forma, a razão se sobrepõe à emoção na busca pela felicidade e pela vida virtuosa. E para os estoicos, nada mais virtuoso, nada mais ético, do que aprender a viver de acordo com a natureza, com suas determi­nações, com as vicissitudes que ela nos inflige. Desta forma, liberdade, felicidade e ética se articulam. Livre é aquele que não se escraviza por nada, que não sente a necessidade de nada, pois ele mesmo tem consciência de ser parte da natureza. Cabe aceitar. Liberdade para os estoicos é aceitação, conformação à realidade, à na­tureza. Quem assim vive, é ético.
  
PARA OS ESTOICOS, O HOMEM LIVRE É AQUELE QUE NÃO SE ESCRAVIZA E NÃO SENTE NECESSIDADE DE NADA. SER LIVRE É ACEITAÇÃO
 Para nós, tal visão é importante porque nos colo­ca diante de uma situação importante: conformar-se à natureza. O estoicismo pode ser muito criticável por colocar a racionalidade como o único parâmetro para os homens, e a emoção como algo de segun­do plano, um verdadeiro mal. Porém, o que hoje soa como atual é essa relação entre liberdade e natureza, e, principalmente, a questão dos excessos. Para os estoicos, jamais seriam vistos como ações livres os gestos que as pessoas têm ao abusar de sua liberdade. Liberdade é saber aceitar a vida, saber viver com o que se tem, não buscar cada vez mais, buscar satisfa­zer todas as vontades, de forma egoísta e hedonista. A moderação, algo tão cultuado pelo pensamento estoico, é exatamente o que faz falta na atual noção de liberdade. Essa ideia fará eco no pensamento de Rousseau, pois para o filósofo, os homens só podem ser livres em sociedade se abrirem mão da liberdade individual. Em situação egoísta e individualista, a li­berdade é, para alguns, ilusória.
O HOMEM NASCEU LIVRE
Portanto, assim como os estoicos, Jean Jacques Rousseau buscou relacionar natureza e liberdade. Para o filósofo, os homens no Estado Natural são livres, e esse estado é a melhor fase, o que de melhor pode haver para o ser humano. O famoso ideal do "bom selvagem", que tanto influenciou o Romantismo, como podemos perceber em obras como o clássico da nossa literatura O Guarani, surge dessa visão rousseauniana, expres­sa sinteticamente na famosa máxima "o homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe". O surgimento da sociedade organizada corrompe os homens, levan­do-os a um estado de barbárie. Ironica­mente, podemos concluir disso tudo que, para Rousseau, no estado "selvagem", ou seja, na natureza, o homem é bom, e na civilização, na sociedade organizada, o homem se perverte, torna-se mau.
Mas o que realmente leva o homem a se corromper? Qual o fator que, uma vez que a sociedade organizada surge, os leva às adversidades, disputas e rivalidades? Para Rousseau, ironicamente - uma vez que o autor é iluminista e o movimento buscou defender os interesses burgue­ses - o fator que corrompe os homens é a propriedade. O surgimento da pro propriedade  privada dividiu a humanidade em dois gêneros: os que têm e os que não têm. Desta forma, os que têm escravizam, oprimem, se aproveitam dos que não têm, visando a ter mais. Por outro lado, os que não têm tornam-se cobiçosos, ambiciosos, voltam-se uns contra os outros, buscando ter o que no estado natural era de todos. "Por outro lado, o homem, de livre e in­dependente que era antes (no estado na­tural), passou a estar, em virtude de uma profusão de necessidades, por assim dizer, sujeito a toda a natureza, sobretudo aos seus semelhantes, de quem num sentido se torna escravo, mesmo em se tornando seu senhor; rico, precisa de seus serviços; pobre, precisa de seu auxílio, e a medio­cridade não o coloca em situação de viver sem eles. Logo, é necessário que incessan­temente procure interessá-los em sua sorte e fazê-los encontrar, real ou aparentemente, proveito em trabalhar para o seu próprio; isso torna-o dissimulado e artificioso com uns, imperioso e duro para com outros e torna-lhe imprescindível lograr todos aqueles de que ne­cessita, quando não pode fazer-se temer por eles e não acha de seu interesse servi-los utilmente. En­fim, a ambição devoradora, a gana de aumentar a sua fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para ficar acima dos outros, inspiram a todos os homens uma nefanda inclinação para se preju­dicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para aplicar seu golpe com maior segurança, frequentemente assu­me a máscara da benevolência; em suma, concorrência e rivalidade de um lado, oposição de interesses do outro e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem; todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualda­de nascente"[3].
Como se pode perceber, para Rousseau, a liberdade natural dos homens foi diminuída, e até mesmo eliminada. Assim, somente os ho­mens realmente livres poderiam ter um comportamento bom. A falta de recursos por parte de alguns e o ex­cesso destes por parte de outros aca­bou com a liberdade dos homens. Uns voltaram-se contra os outros, traíram sua natureza bondosa e so­lidária, pois a necessidade os levou a isso. Podemos, assim, concluir que o binômio ética-liberdade no pen­samento de Rousseau traz uma rela­ção muito forte, uma vez que a ação livre era a ação natural.
Como resolver esse impasse?
Qual a proposta de Rousseau? Para ele, a situação é irreversível. Os homens não voltam mais ao estado natural. Porém, para as­segurar a liberdade comunitária, uma volta, pelo menos formal, ao que o estado natural garantia, Rousseau coloca a necessidade de cada um abrir mão de suas vonta­des pessoais, individuais, pelo me­nos de parte dela, visando ao bem comum. Surge, assim, o conceito mais importante na filosofia polí­tica de Rousseau: a vontade geral.
"Como os homens não podem criar novas forças, mas só unir e di­rigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar por agregação uma soma de forças que vença a resistência, com um só mó­vel pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia. ( ... ) Cada um enfim, dando-se a todos, a ninguém se dá; e como em todo sócio adquiro o mesmo direito que so­bre mim lhe cedi, ganho o equivalente de tudo quanto perco e mais forças para conservar o que tenho.
Se afastamos pois do pacto social o que não é da sua essência, achá-lo-emos reduzido aos termos se­guintes: cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vonta­de geral, e recebemos enquanto corpo cada membro como parte indivisível do todo"[4].
Rousseau percebeu que o homem perdeu muito ao sair do estado natural, pois perdeu a liberdade natural que qualquer ser tinha. Porém, a única forma de se retomar pelo menos parte da liberdade, e findar com a oposição na qual os homens acabaram sendo jogados, é que os homens abram mão de parte de sua liberda­de em vista do bem comum, ou seja, da realização da vontade geral. Assim, o contrato social proposto por Rousseau se resume a isso, uma forma de fazer que, de modo geral, a sociedade possa ter a liberdade garan­tida, visando aqui a uma forte crítica ao absolutismo ainda vigente nas nações europeias do século XVIII.
Hoje, o louvor à liberdade traz consigo necessaria­mente a ideia de "passar por cima dos outros", agir sem escrúpulos, agir egoisticamente. A liberdade cultuada hoje é individualista e a que Rousseau defendia era to­talmente contrária a essa visão, pois levava à comuni­dade. Ironicamente, Rousseau, que foi um dos idealiza­dores da sociedade contemporânea, pois influenciou a Revolução Francesa, sendo um dos referenciais teóricos desta, acabou dando origem a uma sociedade que usa a liberdade e o discurso em prol desta para justificar o egoísmo. A sociedade que surge do Iluminismo, princi­palmente o de Rousseau, que tinha alto teor humanista, racionalista, acabou se tornando realmente selvagem, pois se pautou no egoísmo tão apregoado pelos ideais capitalistas liberais.
A CONDENAÇÃO À LIBERDADE
"O  homem é, inicialmente, um projeto que se vive como sujeito, e não um musgo, um fungo ou uma cou­ve-flor; nada existe anteriormente a esse projeto; nada existe de inteligível sob o céu e o homem será, antes de qualquer coisa, o que ele tiver projetado. Não o que vai querer ser, pois o que entendemos ordinariamente por querer é uma decisão consciente que, para a maior par­te de nós, é posterior ao que fizermos efetivamente de nós mesmos. ( ... ) Mas se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência."[5]
Não podíamos encerrar uma discussão sobre liberda­de sem retomar o pensamento do filósofo francês Jean­Paul Sartre. Para ele, não há nenhuma natureza humana predeterminada. Nem boa, como defendia Rousseau, nem racional e indiferente, como defendiam os estoicos. O homem é um projeto, ele se faz, se constrói, é fruto de suas escolhas e de suas opções. Isso nos coloca diante do verdadeiro peso que tem a liberdade. Ser livre não é somente fazer o que se quer, mas sim, assumir a respon­sabilidade pelo que se fez. Queremos toda a liberdade, o direito de fazer tudo, sem nunca pensar nos outros, naqueles com quem convivemos, e nem sempre somos capazes de assumir a responsabilidade das consequên­cias de nossas ações. Ao menor sinal de problemas e de dificuldades, buscamos culpados a todo o momento, seja o sistema político que nos rege, seja a estrutura familiar que tivemos (ou muitas vezes não tivemos), seja a edu­cação que foi falha e não nos proporciona instrumentos para uma vivência desenvolvida e madura em todos os sentidos, entre tantos outros motivos. Queremos liber­dade, mas não temos a capacidade para assumir os fra­cassos em nossas vidas. Como disse no início do artigo, reafirmo agora: a noção de liberdade desenvolvida hoje é a liberdade individualista. E essa liberdade, ou melhor, a busca por esse tipo de liberdade, é extremamente de­letéria, pois necessariamente voltaremos uns contra os outros na certeza de que estamos lutando pelos nossos direitos. A liberdade é um direito de todos, mas ela tem seus limites. Até mesmo na filosofia sartreana, quando vemos que ele coloca o homem como um ser condenado à liberdade, mas que essa liberdade traz a responsabili­dade, ela nos faz pensar em nossas ações. O existencia­lismo, ao jogar toda a responsabilidade de nossas ações sobre nossos próprios ombros, vê a liberdade da forma mais cruel e desconfortável que existe.
Podemos perceber que a liberdade tornou-se mais um  jargão ideológico, alienador, e o pior, que nos di­vide, impedindo de fazer que os indivíduos se unam. A liberdade tornou-se tudo, menos algo que realmente
ajude os homens a se libertarem.

  




[1] Cícero, “sobre os fins”, in Reale, G. Dario, A. História da Filosofia. São Paulo: Paulus. v  1 p. 295-296
[2] Aurélio, M. Meditações. São Paulo: Martin Claret. p. 23-24
[3] Rousseau, JJ. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo, Martins Fontes, p. 217-218
[4] Idem, Do Contrato Social, São Paulo: Martin Claret, p. 29-30
[5] Sartre, J-P. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis: Vozes. p. 26

Nenhum comentário: