Liberdade e Individualismo
(Rodrigo dos Santos Manzano, Filósofo. Revista de Filosofia nº 62 – Ano VI)
“O conceito de
liberdade na atualidade pouco liberta os homens, por estar pautado no egoísmo.
Rousseau nos coloca diante da questão na relação com o outro, mostrando que a
verdadeira liberdade também é abdicar de parte dela”
A liberdade é um direito garantido em quase todas as constituições,
principalmente depois da Revolução Francesa, está sempre presente no desejo
humano. Porém, a ideia de liberdade na atualidade é defendida ao extremo. O
culto à liberdade que se faz hoje acaba causando uma das formas de se autenticar
e reforçar uma das características mais marcantes, e talvez mais deletérias, da
pós-modernidade: o individualismo.
Diante disso, podemos questionar: o que há hoje é mesmo
liberdade? E ela é positiva? E para refletir sobre essa "liberdade moderna",
podemos buscar três linhas filosóficas para nos ajudar a estabelecer uma
definição crítica deste conceito: os estóicos acreditam que a liberdade está
na aceitação daquilo que a vida nos proporciona; Rousseau desenvolveu a
definição de "bom selvagem", que se articulou com o tema da liberdade
e demonstrou como a sociedade organizada, baseada na propriedade, destruiu a
relação entre natureza e liberdade e destacou a importância de se abrir mão de
parte da liberdade individual para a garantia do direito a todos. E, por fim, o
existencialismo de Sartre diz que a liberdade nos leva à responsabilidade e
que somos "condenados a ser livres".
DE ACORDO COM A NATUREZA
"Definição de fim segundo Zenão: 'viver de modo
coerente'; o que significa viver em conformidade com uma razão única e
concorde, ao passo que aqueles que vivem de modo contraditório são infelizes.
Dizemos fim um bem
perfeito, como dizemos que é fim a coerência; mas dizemos fim também o
escopo, como dizemos que é um fim o viver coerentemente e também dizemos fim o
último dos bens desejáveis, ao qual todos os outros se reportam.
Fim é a felicidade, para a qual toda coisa se faz, onde ela
se faz, sim, mas não para um escopo estranho a ela; consiste em viver
virtuosamente, em viver coerentemente, e ainda, que é afinal uma coisa só:
viver segundo a natureza".[1]
A citação acima nos ajuda a entender a essência do
pensamento estoico e a relação que os filósofos dessa corrente fizeram entre
natureza, liberdade e ética. Desta forma, é importante compreendermos, acima de
tudo, o que é para o pensamento estoico viver de acordo com a natureza.
O fundador do estoicismo, o filósofo Zenão da cidade de
Cicio, dizia que, para viver de acordo com a natureza, o conceito-chave era a
ideia de ataraxia. A palavra grega ataraxia significa "indiferença".
Para os estoicos, a indiferença era a chave para a vida livre. Os homens, ao
apegarem-se às coisas, sempre correm o risco de sofrer. Então, caberia ao homem
saber viver de modo indiferente à realidade que nos cerca, uma vez que, para
eles, há uma racionalidade que guia todos os acontecimentos, o lagos. Assim, os
seres humanos, como parte de uma natureza racional maior, têm de aprender a
aceitar os acontecimentos da vida. O conceito esclarece que o homem é apenas
parte da natureza, uma centelha de algo muito maior. De certa forma, querer
voltar-se contra isso é agir contra a natureza que nos cria, que nos dá a
existência, e também voltar-se contra a nossa própria natureza.
Tendo isto em mente, os estoicos acabavam por defender um
estilo de vida austero. Viver de modo livre não era deixar-se guiar por
paixões, ambições, desejos, pois tudo o que desejamos, o que é externo a nós,
não pode nunca nos fazer realmente felizes. Pelo contrário, colocar nossa
felicidade no desejo é ilusório, pois, como já foi dito, a realidade sensível
é fugaz.
"Como tudo passa célere! Os seres no mundo, sua
lembrança no tempo! Os objetos sensíveis que nos seduzem pelas promessas de
gozo, que nos aterram pela perspectiva do sofrimento ou cujo brilho nos
deslumbra! Não nos devemos esquecer o quão são vis, abjetos, putrefatos,
mortos! Quem são mesmo aqueles cujas opiniões e palavras conferem a glória?
Que é a morte? Se a considerarmos em si só, se, por uma abstração mental, a
separarmos dos fantasmas que lhe associamos, veremos que não passa de uma
operação da natureza. É infantilidade temer uma operação da natureza. E não é
apenas uma operação banal da natureza, mas, sim, uma operação útil à natureza.
Como pode o homem atingir Deus? Por que parte de si mesmo? Mediante que
disposição dessa parte".[2]
O que podemos perceber é que, para os estoicos, a verdadeira
liberdade está no não se apegar ao que é externo, uma vez que há uma razão para
as coisas deixarem de existir. Se tudo é fugaz, é bobagem sofrer pelo que se
perde, pois a perda é algo inevitável. Desta forma, a razão se sobrepõe à emoção
na busca pela felicidade e pela vida virtuosa. E para os estoicos, nada mais
virtuoso, nada mais ético, do que aprender a viver de acordo com a natureza,
com suas determinações, com as vicissitudes que ela nos inflige. Desta forma,
liberdade, felicidade e ética se articulam. Livre é aquele que não se escraviza
por nada, que não sente a necessidade de nada, pois ele mesmo tem consciência
de ser parte da natureza. Cabe aceitar. Liberdade para os estoicos é aceitação,
conformação à realidade, à natureza. Quem assim vive, é ético.
PARA OS ESTOICOS, O HOMEM LIVRE É AQUELE QUE NÃO SE
ESCRAVIZA E NÃO SENTE NECESSIDADE DE NADA. SER LIVRE É ACEITAÇÃO
O HOMEM NASCEU LIVRE
Portanto, assim como os estoicos, Jean Jacques Rousseau
buscou relacionar natureza e liberdade. Para o filósofo, os homens no Estado
Natural são livres, e esse estado é a melhor fase, o que de melhor pode haver
para o ser humano. O famoso ideal do "bom selvagem", que tanto
influenciou o Romantismo, como podemos perceber em obras como o clássico da
nossa literatura O Guarani, surge dessa visão rousseauniana, expressa
sinteticamente na famosa máxima "o homem nasce bom, a sociedade é que o
corrompe". O surgimento da sociedade organizada corrompe os homens, levando-os
a um estado de barbárie. Ironicamente, podemos concluir disso tudo que, para
Rousseau, no estado "selvagem", ou seja, na natureza, o homem é bom,
e na civilização, na sociedade organizada, o homem se perverte, torna-se mau.
Mas o que realmente leva o homem a se corromper? Qual o
fator que, uma vez que a sociedade organizada surge, os leva às adversidades,
disputas e rivalidades? Para Rousseau, ironicamente - uma vez que o autor é iluminista
e o movimento buscou defender os interesses burgueses - o fator que corrompe
os homens é a propriedade. O surgimento da pro propriedade privada dividiu a humanidade em dois gêneros:
os que têm e os que não têm. Desta forma, os que têm escravizam, oprimem, se
aproveitam dos que não têm, visando a ter mais. Por outro lado, os que não têm
tornam-se cobiçosos, ambiciosos, voltam-se uns contra os outros, buscando ter o
que no estado natural era de todos. "Por outro lado, o homem, de livre e
independente que era antes (no estado natural), passou a estar, em virtude de
uma profusão de necessidades, por assim dizer, sujeito a toda a natureza,
sobretudo aos seus semelhantes, de quem num sentido se torna escravo, mesmo em
se tornando seu senhor; rico, precisa de seus serviços; pobre, precisa de seu
auxílio, e a mediocridade não o coloca em situação de viver sem eles. Logo, é
necessário que incessantemente procure interessá-los em sua sorte e fazê-los
encontrar, real ou aparentemente, proveito em trabalhar para o seu próprio;
isso torna-o dissimulado e artificioso com uns, imperioso e duro para com
outros e torna-lhe imprescindível lograr todos aqueles de que necessita,
quando não pode fazer-se temer por eles e não acha de seu interesse servi-los
utilmente. Enfim, a ambição devoradora, a gana de aumentar a sua fortuna
relativa, menos por verdadeira necessidade do que para ficar acima dos outros,
inspiram a todos os homens uma nefanda inclinação para se prejudicarem
mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para aplicar seu
golpe com maior segurança, frequentemente assume a máscara da benevolência; em
suma, concorrência e rivalidade de um lado, oposição de interesses do outro e
sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem; todos esses males
constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da
desigualdade nascente"[3].
Como se pode perceber, para Rousseau, a liberdade natural
dos homens foi diminuída, e até mesmo eliminada. Assim, somente os homens
realmente livres poderiam ter um comportamento bom. A falta de recursos por
parte de alguns e o excesso destes por parte de outros acabou com a liberdade
dos homens. Uns voltaram-se contra os outros, traíram sua natureza bondosa e solidária,
pois a necessidade os levou a isso. Podemos, assim, concluir que o binômio
ética-liberdade no pensamento de Rousseau traz uma relação muito forte, uma
vez que a ação livre era a ação natural.
Como resolver esse impasse?
Qual a proposta de Rousseau? Para ele, a situação é irreversível.
Os homens não voltam mais ao estado natural. Porém, para assegurar a liberdade
comunitária, uma volta, pelo menos formal, ao que o estado natural garantia,
Rousseau coloca a necessidade de cada um abrir mão de suas vontades pessoais,
individuais, pelo menos de parte dela, visando ao bem comum. Surge, assim, o
conceito mais importante na filosofia política de Rousseau: a vontade geral.
"Como os homens não podem criar novas forças, mas só
unir e dirigir as que já existem, o meio que têm para se conservar é formar
por agregação uma soma de forças que vença a resistência, com um só móvel
pô-las em ação e fazê-las obrar em harmonia. ( ... ) Cada um enfim, dando-se a
todos, a ninguém se dá; e como em todo sócio adquiro o mesmo direito que sobre
mim lhe cedi, ganho o equivalente de tudo quanto perco e mais forças para
conservar o que tenho.
Se afastamos pois do pacto social o que não é da sua
essência, achá-lo-emos reduzido aos termos seguintes: cada um de nós põe em
comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral, e
recebemos enquanto corpo cada membro como parte indivisível do todo"[4].
Rousseau percebeu que o homem perdeu muito ao sair do estado
natural, pois perdeu a liberdade natural que qualquer ser tinha. Porém, a única
forma de se retomar pelo menos parte da liberdade, e findar com a oposição na
qual os homens acabaram sendo jogados, é que os homens abram mão de parte de
sua liberdade em vista do bem comum, ou seja, da realização da vontade geral.
Assim, o contrato social proposto por Rousseau se resume a isso, uma forma de
fazer que, de modo geral, a sociedade possa ter a liberdade garantida, visando
aqui a uma forte crítica ao absolutismo ainda vigente nas nações europeias do
século XVIII.
Hoje, o louvor à liberdade traz consigo necessariamente a
ideia de "passar por cima dos outros", agir sem escrúpulos, agir
egoisticamente. A liberdade cultuada hoje é individualista e a que Rousseau
defendia era totalmente contrária a essa visão, pois levava à comunidade.
Ironicamente, Rousseau, que foi um dos idealizadores da sociedade
contemporânea, pois influenciou a Revolução Francesa, sendo um dos referenciais
teóricos desta, acabou dando origem a uma sociedade que usa a liberdade e o
discurso em prol desta para justificar o egoísmo. A sociedade que surge do
Iluminismo, principalmente o de Rousseau, que tinha alto teor humanista,
racionalista, acabou se tornando realmente selvagem, pois se pautou no egoísmo
tão apregoado pelos ideais capitalistas liberais.
A CONDENAÇÃO À
LIBERDADE
"O homem é,
inicialmente, um projeto que se vive como sujeito, e não um musgo, um fungo ou
uma couve-flor; nada existe anteriormente a esse projeto; nada existe de
inteligível sob o céu e o homem será, antes de qualquer coisa, o que ele tiver
projetado. Não o que vai querer ser, pois o que entendemos ordinariamente por
querer é uma decisão consciente que, para a maior parte de nós, é posterior ao
que fizermos efetivamente de nós mesmos. ( ... ) Mas se realmente a existência precede
a essência, o homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira decorrência do
existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que é, e fazer repousar
sobre ele a responsabilidade total por sua existência."[5]
Não podíamos encerrar uma discussão sobre liberdade sem
retomar o pensamento do filósofo francês JeanPaul Sartre. Para ele, não há
nenhuma natureza humana predeterminada. Nem boa, como defendia Rousseau, nem
racional e indiferente, como defendiam os estoicos. O homem é um projeto, ele se
faz, se constrói, é fruto de suas escolhas e de suas opções. Isso nos coloca
diante do verdadeiro peso que tem a liberdade. Ser livre não é somente fazer o
que se quer, mas sim, assumir a responsabilidade pelo que se fez. Queremos
toda a liberdade, o direito de fazer tudo, sem nunca pensar nos outros,
naqueles com quem convivemos, e nem sempre somos capazes de assumir a
responsabilidade das consequências de nossas ações. Ao menor sinal de
problemas e de dificuldades, buscamos culpados a todo o momento, seja o sistema
político que nos rege, seja a estrutura familiar que tivemos (ou muitas vezes
não tivemos), seja a educação que foi falha e não nos proporciona instrumentos
para uma vivência desenvolvida e madura em todos os sentidos, entre tantos
outros motivos. Queremos liberdade, mas não temos a capacidade para assumir os
fracassos em nossas vidas. Como disse no início do artigo, reafirmo agora: a
noção de liberdade desenvolvida hoje é a liberdade individualista. E essa
liberdade, ou melhor, a busca por esse tipo de liberdade, é extremamente deletéria,
pois necessariamente voltaremos uns contra os outros na certeza de que estamos
lutando pelos nossos direitos. A liberdade é um direito de todos, mas ela tem
seus limites. Até mesmo na filosofia sartreana, quando vemos que ele coloca o
homem como um ser condenado à liberdade, mas que essa liberdade traz a
responsabilidade, ela nos faz pensar em nossas ações. O existencialismo, ao
jogar toda a responsabilidade de nossas ações sobre nossos próprios ombros, vê
a liberdade da forma mais cruel e desconfortável que existe.
Podemos perceber que a liberdade tornou-se mais um jargão ideológico, alienador, e o pior, que
nos divide, impedindo de fazer que os indivíduos se unam. A liberdade
tornou-se tudo, menos algo que realmente
ajude os homens a se libertarem.
[1]
Cícero, “sobre os fins”, in Reale, G. Dario, A. História da Filosofia. São Paulo: Paulus. v 1 p. 295-296
[2]
Aurélio, M. Meditações. São Paulo:
Martin Claret. p. 23-24
[3]
Rousseau, JJ. Discurso sobre a origem e
os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo, Martins Fontes,
p. 217-218
[4]
Idem, Do Contrato Social, São Paulo: Martin Claret, p. 29-30
[5]
Sartre, J-P. O existencialismo é um humanismo. Petrópolis: Vozes. p. 26
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